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Deslembro – de quem é essa voz?

Ausência da protagonista adulta não permite que filme decole

Eduardo Escorel | 26 jun 2019_08h06
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Quase um ano depois de estrear, em agosto de 2018, na seção Horizontes do 75º Festival de Veneza – dedicada a “filmes que representam as tendências estéticas e expressivas recentes do cinema internacional”, Deslembro foi lançado há uma semana no Brasil. O filme de Flávia Castro chega credenciado por extensa e bem sucedida carreira em vários festivais, iniciada em Veneza e que prosseguiu em Havana, Biarritz, São Paulo, Rio de Janeiro, Joburg, Santiago de Compostela e Bruxelas, onde será exibido esta semana. Nesse percurso, além dos prêmios da crítica em Biarritz e no Rio, recebeu ainda o prêmio do público, também no Rio.

Considerando Deslembro “obviamente autobiográfico”, uma crítica assinalou dias depois da exibição em Veneza o paralelo existente entre a vida de Castro, conforme revelada em seu documentário Diário de Uma Busca (2010), e a transfiguração ficcional centrada na busca da adolescente Joana (Jeanne Boudier, magnífica atriz estreante) por informações sobre seu pai Eduardo/Tiago – um chamado desaparecido político, vítima da ditadura brasileira na década de 70.

Assisti a Deslembro, pela primeira vez, há três semanas. A par de suas evidentes qualidades, e de alguns defeitos menores, tive a impressão de que falta algo crucial, difícil de definir, para o filme levantar voo. Mesmo depois de assistir outra vez, custei a identificar qual é o sintoma que causa meu incômodo nessa história que tem início em Paris, prossegue no Rio de Janeiro e acontece em um período de tempo curto, posterior à chamada Lei de Anistia, de 1979.

A princípio, ocorreu-me a possibilidade de que a ausência de Joana quando adulta do filme seja a causa do meu mal-estar. Deslembro não resultaria mais vigoroso se incluísse a perspectiva da personagem principal quarenta anos depois dos eventos narrados de sua adolescência?

Castro, além de diretora, também roteirista de Deslembro, e seus quatro consultores – Anaïs Castro, Ángel Díez, Lucas Paraízo e Miguel Machalski – devem ter cogitado em algum momento incluir Joana adulta. Mas, a personagem na maturidade, apesar de representada de modo parcial por Lucia (Eliane Giardini), avó paterna idealizada de Joana, ficou mesmo de fora. Isso, apesar da larga experiência, em especial de Paraízo e Machalski, sendo esse último autor de Stick to Your Story – Perspectives on Storytelling in Films (disponível em edição eletrônica) e consultor renomado do Binger Filmlab, em Amsterdã, do qual o projeto de Castro participou.

É claro que é legítima a opção de excluir da narrativa a personagem principal quando adulta, embora o preço dessa escolha me pareça ser alto. Por mais bem encenada que a crise de amadurecimento de Joana seja, mesmo levando em conta a originalidade do seu contexto familiar, creio que faz falta a Deslembro um ingrediente capaz de diferenciar o filme de inúmeros outros já feitos sobre adolescentes problematizados.

Minha impressão de que a presença de Joana adulta seria benéfica a Deslembro não resulta de uma idiossincrasia pessoal arbitrária externa ao projeto. Deriva, isso sim, do próprio título e da forma em que ele é apresentado duas vezes. Primeiro, após o prólogo, e depois, no final, após os principais créditos – a palavra “lembro” é formada, letra por letra, de trás para a frente; em seguida, é acrescentada a sílaba inicial “des”.

Resta explicitado, dessa maneira, haver no filme uma voz narrativa oculta cuja memória opera em duas etapas quase simultâneas – lembra e deixa de lembrar. Mas, a quem pertence essa voz? Admito minha dificuldade em identificar com segurança a repositária das lembranças narradas em Deslembro. Em se tratando de obra ficcional, não se deve confundir a autora e sua personagem, apesar dos vínculos existentes, de fato, entre Deslembro e Diário de Uma Busca. Castro e a ausente Joana adulta não seriam, portanto, quem conduz a narrativa.

Uma nota breve, publicada também dias depois da exibição no Festival de Veneza, comenta “não ser um filme sobre os opositores à ditadura militar do Brasil que foram desaparecidos da face da terra sem deixar uma pista, nem um drama familiar, ou sequer em primeiro lugar um conto de amadurecimento ou história de amor. O elegante filme de estreia de Flávia Castro combina todos esses elementos clássicos em um espetáculo bom de assistir, mas que nunca chega ao ponto de incendiar a história”.

Está aí. Constato aliviado não ser o único a sentir que falta alguma coisa a Deslembro – algo que incendeie a história, escreve Deborah Young, do Hollywood Reporter, sem identificar o que seja.

Pouco usual, deslembro é a primeira pessoa do singular, do presente do indicativo, do verbo transitivo direto deslembrar, registrado no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Castro colheu o termo em Fernando Pessoa, nos primeiros versos de um poema – “Deslembro incertamente. Meu passado/Não sei quem o viveu. Se eu mesmo fui,/Está confusamente deslembrado/E logo em mim enclausurado flui. […]”.

Foi só depois de ter assistido ao filme pela terceira vez, e passado noites em claro refletindo a respeito, que me ocorreu a explicação que agora parece óbvia – quem deslembra é a própria adolescente Joana. Seria ela mesma quem tem as lembranças incertas no imediato pós-anistia, em 1979, que é o tempo presente de Deslembro. Mas, o filme pode mesmo ser compreendido dessa forma? Tenho minhas dúvidas.

Caso essa tenha sido a intenção do roteiro, sinto-me compelido a deixar claro que para mim o aspecto menos satisfatório de Deslembro parece ser justamente as cenas desse passado “confusamente deslembrado”, na forma de rápidos e recorrentes flashbacks, sem que tenha sido estabelecido de maneira inequívoca de quem são essas deslembranças. Havendo um acentuado desnível de qualidade entre a encenação dessas rememorações e as demais sequências do filme, por mais paradoxal que pareça os fragmentos de memória acabam não justificando terem sido incluídos.

A ausência de Joana adulta me parece decisiva. É o que falta, a meu ver, para Deslembro decolar, pois força o mal-estar da Joana adolescente a se manter inalterado, sem rupturas ou grandes transformações até a penúltima sequência, quando vemos a personagem sentada na pedra, de costas para a câmera, diante do mar revolto.

É só na sequência final que Joana está apaziguada. No lugar do carona, ela compartilha um cigarro com sua mãe, Ana (Sara Antunes), que está dirigindo – discreto sinal de que talvez tenha deixado para trás as aflições da adolescência.


Esclarecimento: Deslembro é produzido por Walter Salles, Gisela B. Camara e Flávia Castro, através das empresas Videofilmes, Tacacá Filmes e Flauk Filmes; coproduzido pelo Canal Brasil, Telecine, Globo Filmes e Imovision, em sociedade com Yaël Fogiel da Les Films du Poisson; patrocinado pela RioFilmes, conta com apoio de fundos estrangeiros e recursos do BNDES e do Fundo Setorial do Audiovisual – FSA, gerido pela Agência Nacional do Cinema – Ancine.

Sem nenhum vínculo pessoal com o filme, João Moreira Salles, editor fundador da Revista piauí, é irmão de Walter Salles e sócio da Videofilmes.

Quanto a mim, sou amigo de Flávia Castro que, por sua vez, é co-roteirista do documentário Imagens do Estado Novo 1937-45 (2016), que eu dirigi. Espero que nossa amizade persista depois da publicação desta coluna.

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