Uma das primeiras coisas que a agricultora Ana Cláudia dos Santos, de 30 anos, faz ao acordar é ir até a casa da vizinha buscar cerca de oito baldes de água – água que ela, o marido e os dois filhos irão usar naquele dia para beber, tomar banho, escovar os dentes e cozinhar. A água fica na cisterna comunitária, um reservatório redondo de cimento, com capacidade para 16 mil litros e que assegura o abastecimento de uma família de cinco pessoas por até oito meses. Na comunidade da Baixa dos Cajueiros, na zona rural de Jaguaribara, interior do Ceará, duas cisternas abastecem, pelo tempo que a água durar, sete famílias – duas ainda vivem em casas de taipa, com paredes feitas de madeira e barro, sem tijolos. O vaivém dos vizinhos até o reservatório dura o dia inteiro. Não há encanamento, e a água é guardada em baldes e garrafas espalhados pelas casas. A mais nova aquisição da família Santos foi uma geladeira, comprada no ano passado por conta da pandemia. A necessidade surgiu quando evitavam ir ao centro comprar mantimentos por medo do vírus. “Agora a água fica gelada, e a comida dura mais.” Apontando para um galão azul de água mineral no chão de cimento, a dona de casa conta que compra água mineral apenas para o filho mais novo, de 6 anos. Em tempos de pandemia, a lavagem das mãos não é rotina simples. Para lavar louça, a agricultora senta no chão e enche duas bacias com o líquido em cor mais barrenta, vindo de uma terceira fonte: “Essa vem do piscinão”, diz.
O piscinão é o Eixão das Águas, canal que passa a menos de 500 metros da porta da casa de Santos, levando água do Açude Castanhão até Fortaleza. O Castanhão, maior açude de múltiplos usos da América Latina, recebe desde março as águas do projeto de transposição do Rio São Francisco. Os moradores da Baixa dos Cajueiros conseguiram com a Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (COGERH), que administra o Eixão, licença para usar um pouco da água do canal, mesmo que não tratada. É essa água que o marido de Ana Cláudia, o agricultor Antônio Silva, utiliza para regar seu roçado e dar de beber aos animais.
O problema é mesmo o acesso à água potável. “Já melhorou muito, mas ainda é uma peleja”, diz a dona da casa. Esperar pela água da chuva para encher a cisterna não é o suficiente – ainda mais em regiões do semiárido, onde a chuva é visita esperada, mas que aparece por, no máximo, três meses ao ano. Para comunidades como a da Baixa dos Cajueiros, boa parte da água potável vem de caminhões-pipa. Os veículos da Operação Carro-pipa, mantida pelo Ministério do Desenvolvimento Regional, abastecem as cisternas comunitárias construídas pelo Programa Nacional de Apoio à Captação de Água de Chuva e Outras Tecnologias Sociais (Programa Cisternas), criado em 2003 pelo extinto Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
Nos últimos quatro anos, os dois programas minguaram diante da seca de recursos. Em 2019, o valor pago pelo governo ao programa das cisternas foi o menor desde o lançamento do projeto – 13,6 milhões de reais (14,7 milhões, em valores atualizados). Em 2020, o governo empenhou apenas 2,6 milhões de reais para o projeto, que ainda não pagou efetivamente. A Operação Carro-pipa, que já teve investimento de 1 bilhão de reais em 2017, sofre com a progressiva redução de orçamento – 793 mil reais em 2018, corte de 25% com relação ao ano anterior. Em março deste ano, a Operação esteve paralisada por falta de recursos, mas em abril os caminhões voltaram a circular.
Em nota à piauí, o Ministério da Cidadania afirmou que estão previstos 61,2 milhões de reais para o programa das cisternas em 2021 e que “foi necessário instituir medidas de segurança em decorrência da pandemia do Covid-19, o que impactou no volume de entregas no ano [de 2020]”. Sobre a Operação Carro-pipa, cujo nome oficial é no Programa Emergencial de Distribuição de Água, o Ministério do Desenvolvimento Regional, responsável pelo orçamento do programa, respondeu que “o retardo na aprovação do Projeto de Lei Orçamentária Anual 2021 (PLOA) pelo Congresso Nacional desencadeou a paralisação temporária do serviço”. O Exército, responsável pela execução do projeto, disse que a distribuição de água já está normalizada nos 634 municípios do semiárido nordestino cobertos pelo programa.
O programa de construção de cisternas comunitárias foi criado pelo governo federal em 2003, com o objetivo de reduzir a insegurança alimentar grave e o êxodo rural. Em 2013, atingiu seu auge, com 111.532 reservatórios construídos. Espalhou-se por 1,5 mil municípios em todas as regiões do país. Prevê a construção de reservatórios por meio da contratação de empreiteiras ou de repasses a organizações sociais – essas coordenadas pela ASA (Articulação Semiárido Brasileiro), rede de organizações da sociedade civil. O projeto venceu o prêmio Política para o Futuro, oferecido pelas Nações Unidas, e serviu de modelo para outros países que enfrentam a estiagem. Nos últimos anos, foi encolhendo. Em 2020, a verba repassada pelo governo federal só bancou a construção, por meio de empreiteiras, de 7.188 cisternas – o menor número de equipamentos instalados anualmente desde o início do programa. Segundo a ASA, não houve repasses para as organizações sociais.
A última Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, do IBGE, mostra que 9,6 milhões de casas brasileiras ainda não estão ligadas à rede de água. A cada 100 dessas casas, 50 estão no Nordeste. Falta de água potável e fome costumam andar juntas. Pesquisa da Rede PENSSAN mostrou que a fome voltou a ser parte do cotidiano de 19,1 milhões de brasileiros, 9% da população; nas áreas rurais do país, a proporção é ainda pior, 12%. A mesma pesquisa mostra que o fornecimento irregular ou a falta de água potável atingiu cerca de 40% dos domicílios do Nordeste em 2020. Segundo a pesquisa da Rede PENSSAN, a proporção de domicílios classificados como em situação de insegurança alimentar grave dobra quando não há disponibilidade adequada de água para a produção de alimentos (de 21,1% para 44,2%) e alcança patamares de quase o dobro quando não há água suficiente para o consumo dos animais (de 24% para 42%). O semiárido brasileiro se espalha pelos nove estados do Nordeste e parte Norte de Minas Gerais. Cerca de 1.262 cidades estão localizadas nessa área.
O coordenador da ASA, Alexandre Pires, diz que, segundo levantamento da organização em 2019, cerca de 350 mil famílias do semiárido estão na fila de espera por uma cisterna para chamar de sua – enquanto o programa perde força. “Num ano de pandemia, em que, em tese, o governo federal deveria ter investido maciçamente, os recursos caíram. Inimaginável também a desestruturação da gestão do Programa Cisternas”, diz Pires. Sem repasses federais, as organizações buscaram parcerias com o Consórcio Nordeste de governadores e com a iniciativa privada – ainda em negociações iniciais, não conseguiram realizar a construção de nenhuma cisterna com a parceria. Na avaliação de Pires, o projeto das cisternas teve contribuição relevante para tirar o Brasil do Mapa da Fome. “O acesso à água é fundamental para a segurança alimentar. Existem casos em que as pessoas têm comida, mas não têm água para cozinhar. Os dados da pesquisa da PENSSAN de 2020 mostram claramente que não ter água é ter fome.”
Na Baixa dos Cajueiros, a redução das viagens dos carros-pipa teve impacto direto na vida dos moradores. A comunidade tem duas cisternas, mas apenas uma é cadastrada na Operação Carro-pipa. Por sugestão da comunidade, criou-se um sistema de revezamento. Assim, quando o caminhão da água chega, só abastece um dos reservatórios, em regime de rodízio. “É assim, eles vêm, uma vez enche aqui, outra vez lá. Quando falta aqui, a gente pede emprestado lá e assim vai”, conta Ana Cláudia Santos. A solidariedade entre os vizinhos falou mais alto e ninguém precisa pedir licença para o “empréstimo” da água. Quando Ana Cláudia chegou na comunidade da Baixa dos Cajueiros, há cerca de dez anos, as cisternas já existiam. Quando falta água nos reservatórios, algo que tem acontecido raramente, o ritual é o mesmo de antigamente: buscar água tratada no Poço do Barro, percorrendo um caminho de quase 5 km, a bordo de um jumento.
Antes da legalização do uso do canal, a fiscalização severa repreendia moradores que tentassem pegar água lá. “Eu queria ter uma cisterna só pra mim. Mas se tivesse água encanada também seria melhor ainda”, reflete Ana Cláudia. O coordenador da ASA defende que o ideal seria que cada família tivesse sua cisterna. “Nós, da Articulação, defendemos que cada família tenha a sua. Um espírito que move o povo do semiárido é a solidariedade, às vezes a família tem a cisterna mas entende que não pode ser só dela, então partilha”, acrescenta.
Jaguaribara, a 230 km de Fortaleza, tem pouco mais de 11 mil habitantes, segundo estimativa do IBGE. As ruas e avenidas são largas, sem necessidade de asfalto, de tão perfeito é o calçamento de paralelepípedos. A história da cidade passa também pela memória da água e pelo que, por causa da água, foi construído ou destruído. Em 2001, a antiga sede do município foi demolida para dar lugar à obra do Açude Castanhão, e as ruínas foram inundadas pelos 6,7 bilhões de m3 das águas da barragem. A excessiva organização da cidade tem um motivo: Jaguaribara é a primeira cidade totalmente planejada do Ceará. A nova sede foi entregue com diversas melhorias e modernizações, dentre elas, o saneamento básico adequado em 100% da cidade. Mesmo assim, há quem tenha pesadelos com água desde que essa mesma água engoliu lares e histórias. “Apesar de gostar de morar aqui na nova cidade, até um tempo atrás, tudo que eu sonhava era sempre na antiga Jaguaribara. E sempre são pesadelos com enchentes, com muita água”, conta a professora Hilda Aciole.
Desde 2017, ela coordena, na única escola de ensino médio do município, o projeto de pesquisa “Águas para quem?”, relacionado à distribuição de águas do Castanhão. Confidencia que o que mais a estarrece é lembrar das promessas de desenvolvimento antes da mudança de cidade e, ainda hoje, ver a necessidade de as famílias precisarem comprar água morando tão próximo ao açude, desviando um dinheiro que poderia ir para alimentação. A professora relembra um episódio, ainda antes da pandemia, em que ouviu de uma aluna que a justificativa para estar faltando às aulas era a falta de água para lavar o uniforme. “Ela dizia que a mãe estava juntando dinheiro para comprar a água e que a farda estava suja. Acho que com essa imensidão de água, não era pra faltar pra ninguém. Se aqui é assim, fico imaginando as cidades que não têm essa água toda. Mas, na verdade, essa água nunca foi nossa.”
Por causa do Castanhão, a água é a principal fonte de renda da cidade, uma das maiores zonas de produção de tilápia do país, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). No centro da cidade, todas as casas que foram construídas pelo governo têm água encanada. Vinte anos depois da inundação, Jaguaribara se espalhou para além da área planejada, e hoje apenas 58% da cidade é saneada, segundo o IBGE Cidades. Fora dessa estatística está a comunidade da Baixa dos Cajueiros, onde cada casa tem um cano saindo de cada privada e pia – e todos deságuam em esgotos improvisados.
Com os olhos brilhando e sorriso no rosto, a agricultora Ana Cláudia fala sobre um papel que assinou recentemente, quando se inscreveu num programa de habitação popular do governo estadual para ganhar uma casa de alvenaria. “Eu gosto tanto desse lugar, que se eles forem me dar outra casinha, tem que ser aqui. Só falta água encanada.” No último ano, com as aulas virtuais, a dona de casa e seu marido precisaram unir os esforços para garantir o acesso à educação dos filhos e colocaram wi-fi na casa. O sinal costuma falhar muito, e de dentro de uma rede estendida na sala com o celular na mão, a filha mais nova pergunta: “Não vai ligar a internet, não?” “É, aqui tem internet, mas não tem água encanada”, responde rindo à frente da porta de entrada da casa, de onde enxerga as águas do piscinão sob o sol escaldante. Ana Cláudia, sua família e seus vizinhos já passaram sede várias vezes. É uma sensação que seca a boca e faz doer a cabeça, diz ela. “Só sabe o valor da água quem já passou sede e fome”, completa.