Manifestação de mulheres nas ruas de Teerã FOTO: SOPA IMAGES/GETTY IMAGES
Diários de Teerã
Os oito dias que abalaram a capital do Irã, pelos olhos de uma moradora da cidade
Do ataque americano à derrubada do avião ucraniano, passando pela comoção no enterro do general Qassem Soleimani, uma jornalista colombiana narra seus últimos oito dias no Irã.
Sexta-feira, 3 de janeiro
Os rumores começaram a chegar de Bagdá pelas redes sociais. Falava-se de um ataque nas proximidades do aeroporto da capital iraquiana, mas as especulações ainda asseguravam que quem havia sido assassinado era o porta-voz das Forças de Mobilização Popular (FMP) – ou Hashd al-Shabi –, o agrupamento de dezenas de tropas criado no marco da luta contra o Estado Islâmico em 2014. Com o passar do tempo, soubemos que figuras mais importantes foram atingidas por aquele míssil. Coube à televisão iraniana confirmar, já de madrugada, que no carro explodido estava o general Qassem Soleimani. Informaram também que em sua companhia estava Abu Mahdi al-Muhandis, o segundo homem das FMP e a pessoa mais próxima do iraniano em território iraquiano.
Soleimani era um general atípico. Nos últimos anos, especialmente desde a guerra na Síria e a posterior batalha contra o Isis no Iraque, ele se transformou numa espécie de popstar para milhões de iranianos. Sua lealdade, e isso era claro para todos, era devotada ao aiatolá Ali Khamenei, o líder supremo do Irã. Mas, acima de tudo, à República Islâmica. Era assim que grande parte dos iranianos o via, como o grande protetor do Irã perante os grupos extremistas islâmicos. Graças a ele, diziam muitos, podiam dormir em paz. Por isso, a notícia do seu assassinato foi um terremoto que abalou profundamente o Irã.
A notícia chocou o país logo ao acordar. Pouco depois, Khamenei publicou um tuíte pregando uma “dura vingança”. A partir daí essas palavras dispararam como a hashtag mais usada no Irã. “Escute, Donald Trump. Toda esta gente está aqui por sua causa. Porque você começou uma guerra que nós terminaremos. A América vai pagar por isso”, dizia Ahmad Ghassam Feith, um jovem de 32 anos que assistiu naquela manhã à oração das sextas-feiras em Teerã. Ao terminar a prece, milhares de pessoas desfilaram carregando a foto do general. O grito de “Morte à América”, que ecoa no Irã desde a vitória da Revolução há quarenta anos, era ouvido e sentido cada vez mais forte, mais real do que nunca.
Sábado, 4 de janeiro
Primeiro dia de luto – dos três decretados pelo governo – em homenagem ao general Qassem Soleimani, que nesse dia saía de Bagdá coberto de honrarias. Junto com Muhandis e outras oito pessoas que morreram com eles, o féretro do general iraniano foi transportado pelas ruas de Bagdá acompanhado por milhares de iraquianos, muitos deles vestidos com a roupa dos integrantes das milícias xiitas. A cena se repetiu nas cidades sagradas de Najaf e Karbala, onde Soleimani recebeu homenagens semelhantes. A essa altura, as ruas de Teerã já estavam adornadas com milhares de fotos de Hajj Qassem, como é chamado localmente. Aparecia com asas de anjo, ou abraçado por um dos imãs xiitas, ou com um keffiyeh (lenço tradicional) na cabeça e um rádio na mão. Em outras, estava abraçado a Muhandis. A mesma coisa nos jornais, todos com sua foto na capa. Em algumas aparecia sorrindo e vestido de general; em outras, à paisana e pensativo. Fizeram uma montagem em que está olhando para o infinito apoiado em sua metralhadora.
Não pude deixar de me surpreender com a quantidade de gente nas ruas de Teerã. “Para mim ele era um verdadeiro herói, como o Super-Homem para os estrangeiros”, assegurava Mahya, uma jovem de 18 anos que usa o xador das mulheres mais tradicionais. Ela se encontrava na Praça Felestin, ou Palestina, onde dezenas de basij, ou integrantes das milícias paramilitares, marchavam para despedir-se do líder.
“Os estrangeiros querem mostrá-lo como um assassino ou uma pessoa má, mas isso não é verdade. Nós o amávamos muito, porque era muito próximo das pessoas. Como mais um de nós”, assegura Mahya, que carregava outra das tantas versões das fotos de Suleimani.
Domingo, 5 de janeiro
Desde a madrugada os canais de televisão em Teerã começaram a transmitir imagens da cidade de Ahvaz, onde se realizava a primeira parada dos funerais do general Soleimani no Irã, que se estenderiam ainda por três dias. Já aí houve muitas surpresas. Em uma decisão de última hora, as autoridades optaram por adiar o enterro de Muhandis no Iraque, mais exatamente na cidade sagrada de Najaf, e levar o corpo para o Irã, para que as multidões desse país também pudessem se despedir dele. Havia um grande simbolismo nessa decisão. Muhandis – de mãe iraniana – vivera exilado no Irã durante a ditadura de Saddam Hussein.
Outra surpresa foi a quantidade de gente que saiu às ruas de Ahvaz para o funeral. Isto surpreendeu as autoridades, pois nos últimos anos essa província foi palco de muitos protestos contra o regime dos aiatolás. A população, de maioria árabe, sente-se abandonada pelo sistema. Ainda assim, centenas de milhares tomaram as ruas. O mesmo aconteceu horas mais tarde em Mashhad, a segunda cidade na rota seguida pelo cortejo. “Viemos dizer que, enquanto dormíamos, assassinaram o nosso general. Mas agora estamos acordados e prontos para a vingança”, disse Hussein, um jovem de 16 anos.
Segunda-feira, 6 de janeiro
As lágrimas do Líder Supremo quando realizava a prece diante do caixão de Qassem Soleimani resumiram o sentimento vivido em Teerã, nas proximidades da Avenida Enqelab, onde uma multidão impossível de calcular fez absoluto silêncio no momento em que, pelos alto-falantes, se escutava a oração do aiatolá Ali Khamenei. E na qual ele não conseguiu evitar que sua voz se embargasse.
“Labayka ya Hussein”, gritaram quando se rompeu o único momento de paz de uma cerimônia marcada pelo desespero da multidão – calculada pela TV estatal em dois milhões de pessoas, total questionado por veículos independentes – para chegar à mesma avenida que há 41 anos acolheu a Revolução. Todos procuravam ficar o mais perto possível da Universidade de Teerã. “Nós iranianos temos muitos problemas”, me disse Hassan, com um keffiyeh amarrado no pescoço, que utilizava para enxugar as lágrimas. Tinha ficado preso em uma das transversais da Avenida Enqelab, apesar do esforço que fazia para abrir passagem.
As manifestações por Soleimani, dizem testemunhas, só se comparam com as que o aiatolá Khomeini recebeu ao morrer, em 1989. Ninguém na cidade se recorda de uma multidão tão grande desde então. Muitas dessas pessoas vieram de cidades próximas a Teerã, como Ali Reza, que saiu de sua aldeia às 4 da madrugada. “Estou pronto para pegar em armas, se for preciso”, me dizia este homem de 41 anos, que guarda apenas uma vaga lembrança da guerra Irã-Iraque, ainda presente na memória dos iranianos. Principalmente dos mais velhos. Chegava ao fim o terceiro dia de luto.
Terça-feira, 7 de janeiro
Muito, muito cedo, embarquei para Kerman. No avião estavam muitas pessoas que conheciam Soleimani, e muitas choravam. Quando cheguei à Praça Central da cidade, vi que já estava repleta. Pude perceber que milhares de pessoas não só do lugar, mas também de outras povoações do Irã, tentavam encontrar o melhor lugar para ver o féretro do general Soleimani, que registrara o desejo de ser sepultado na cidade de sua infância. Com o passar das horas, a situação tornou-se insustentável. As pessoas que estavam presas no centro da praça queriam sair, o que provocou um choque com aquelas que ao mesmo tempo tentavam se aproximar para ser testemunhas daquele dia histórico.
A confusão piorou quando aqueles que tentavam escapar toparam com as grades de proteção colocadas para controlar o acesso. A pressão entre as pessoas que lotavam a praça fez com que alguns se asfixiassem e caíssem no chão. Outros foram pisoteados. Um evento parecido ocorreu na Praça Shariati, onde uma grande multidão também se formou. “Muitos outros se salvaram porque conseguiram quebrar as vidraças de alguns comércios e se abrigaram ali dentro”, contou Mahdi, um kermani de 25 anos que se encontrava no local.
O resultado foi de 56 mortos – na cidade cogita-se que foram mais – e mais de duzentos feridos, evacuados da praça quando começou a retirada da caravana com o corpo do general. O tumulto não impediu que a procissão seguisse até o cemitério, onde a multidão voltou a congestionar o lugar. Tanto que, às três da tarde, os moradores de Kerman receberam uma mensagem de texto avisando que o enterro fora cancelado. Por fim, às 19 horas, já em uma cerimônia mais reservada, o general foi enterrado ao cair da noite.
Quarta-feira, 8 de janeiro
A vingança chegou antes do esperado. Os iranianos foram informados na madrugada da quarta-feira que mais de uma dezena de mísseis tinha sido lançada contra duas bases iraquianas que abrigavam militares norte-americanos. Uma delas, Ain al-Assad, está localizada na província de Anbar, na região oeste do país. A outra, perto de Erbil, a capital do Curdistão Iraquiano. A mídia iraniana informava que os mísseis foram lançados de Kermanshah, perto da fronteira com o Iraque. Depois de duas rodadas de ataques, um tuíte do ministro das Relações Exteriores, Mohammad Javad Zarif, dizia dar por encerrada a revanche. “O Irã adotou e concluiu medidas proporcionais de legítima defesa”, escreveu o chanceler, assegurando que não se buscava a escalada a uma guerra, mas que o Irã se defenderia contra a agressão. O sentimento geral era que agora a bola estava com Donald Trump, e restava esperar sua resposta, anunciada para o dia seguinte. Muitos estrangeiros, inclusive eu, receberam ligações de suas famílias, preocupadas com a segurança.
Mas a noite não terminava ali. Pouco depois das seis da manhã, o Boeing 737-800 da companhia Ukrainian Airlines caiu seis minutos após a decolagem do aeroporto Imã Khomeini de Teerã. As primeiras versões dos iranianos davam conta de que a queda fora causada por uma falha no motor do avião. Os arredores estavam cobertos de restos de fuselagem, poltronas queimadas, roupas e dezenas de objetos pessoais que ficavam como memória dos 167 passageiros e nove tripulantes mortos no desastre. Tinha início outra história. Com a informação da tragédia, surgiram dezenas de especulações que falavam de um possível ataque, tachadas de “ridículas” pelo porta-voz das Forças Armadas iranianas.
Quinta-feira, 9 de janeiro
Amanheceu nevando em Teerã. O dia parecia tranquilo. Mas, com o passar das horas, a história do avião sofre uma reviravolta inesperada. O dia terminou com a notícia de que Donald Trump decidira não responder ao Irã. Um vento de tranquilidade envolveu o país. Foi o primeiro dia em que consegui parar um pouco, depois de muitos dias viajando.
O governo ucraniano, que em um primeiro momento aceitara a versão iraniana de que a queda se devia a uma falha no motor, mudou de opinião. Deixou aberta quatro opções, entre elas um ataque terrorista e um ataque com mísseis russos. Isto depois de vir a público um vídeo onde se via um avião, supostamente o ucraniano, sendo atingido por um míssil antes de cair. Essas suspeitas eram respaldadas por agências de inteligência ocidentais que cada vez mais confirmavam a teoria de que dois mísseis iranianos, lançados por engano, tinham se chocado com o avião. O Irã, por sua vez, negava essa informação e insistia na versão da falha no motor. No final do dia, assegurou que convidara a Boeing para participar das investigações. A suspeita estava aberta, aumentando a dor das famílias das vítimas.
Mulher caminha nas ruas de Teerã nesta sexta
Sexta-feira, 10 de janeiro
Passou-se uma semana desde o assassinato do general Soleimani, mas hoje a atenção está no avião. Depois de várias declarações desencontradas, as autoridades iranianas parecem ter chegado a um acordo para transmitir uma mensagem unificada: é mentira que o avião ucraniano tenha sido atingido por mísseis. Anunciaram também que levarão a cabo uma investigação segundo os padrões internacionais e que, além da Ucrânia, estavam convidados a participar dela a Boeing, a Administração Federal de Aviação norte-americana e a França. Um vídeo mostrava as caixas-pretas, que segundo os iranianos teriam ficado inutilizadas.
O processo de coleta de dados começou ontem, mas as autoridades asseguraram que, se os problemas técnicos se mostrassem graves, aceitariam a ajuda de países que tivessem manifestado apoio, como a Rússia e a França. Contudo, no fim da tarde, já se temia pelo futuro da investigação. Destroços do avião espalhados na área da queda foram recolhidos pelas autoridades iranianas, as quais asseguraram que tudo foi armazenado para auxiliar no trabalho. Alguns peritos apontam, no entanto, que isso será muito difícil, se antes da coleta não tiver sido feito um minucioso inventário de cada pedaço encontrado. O resultado da investigação só será conhecido dentro de alguns meses, ou anos, a depender da velocidade com se realizar. Ao mesmo tempo, depois de muita tensão, o clima parece mais tranquilo. Escrevo este diário após dias intensos de trabalho. Os restaurantes estão abertos, as pessoas andam pelas ruas. Teerã também tenta retomar sua rotina.
Tradução: Rubia Goldoni e Sérgio Molina.
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