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Djavan na Espanha

A vasta e caudalosa obra do compositor alagoano

Paulo da Costa e Silva | 20 maio 2016_15h39
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Considero Djavan um dos maiores nomes da música brasileira. Nunca me canso de ouvi-lo. De tempos em tempos, retorno a sua obra sempre com renovado alumbramento (palavra que dá título a um dos seus discos de início de carreira). Djavan é original em todas as dimensões do ofício de fazedor e cantador de canções. Compõe melodias diferentes, cheias de curvas e ondulações, com toques de modalismo agreste, mas quase sempre encaixadas no registro do pop. As harmonias possuem certo ar jazzista, tanto na formação dos acordes (quase sempre com sétimas, sextas e nonas) quanto no modo de encadeamento, que é mais dinâmico e ativo do que geralmente acontece na tradição da bossa nova. De fato, ele parece ter criado um outro modo de incorporação da harmonia do jazz na música brasileira.

Também o jeito de tocar o violão de acompanhamento é bastante original. Djavan criou levadas rítmicas deliciosas, como aquelas que escutamos em Sina, Capim e Pedra. Nessa última, o violão sola uma frase mais rítmico-melódica do que harmônica, em torno da qual a canção inteira se estrutura, de modo semelhante ao que Gilberto Gil faz em canções como Expresso 2222 e Refavela. Mas não é apenas isso: é uma experiência deliciosa ouvir Djavan tocando sambas, com suas microdivisões percussivas, seu senso único do ritmo.

Quando as canções são mais lentas, Djavan apresenta dedilhados de rara beleza, que parecem ser muito simples, mas quase sempre guardam um ritmo interno muito inventivo, que se desenvolve em relação complexa com o ritmo do canto (é o caso, por exemplo, de Outono, de Doidice, ou de sua extraordinária versão de Luz e Mistério). Além disso, ele é um incrível baladeiro, inventor de um romantismo que é a um só tempo esparramado e sofisticado, que roça o mau gosto para despontar em elegância viva – pense apenas em títulos como Topázio, Esfinge, Samurai, Oceano, Amar É Tudo, e outras tantas possíveis cafonices que são transfiguradas em suprema elegância pela fineza de sua sensibilidade.

E a originalidade do alagoano não para aí. Porque seu canto é uma dessas aves raras que fazem a riqueza da música brasileira. Já nos habituamos tanto a ele que mal percebemos o quanto é estranho, singular. A melhor definição foi cunhada por Caetano Veloso, publicada na contracapa do disco Tropicália 2: “Djavan é timbre áspero em nota doce.” Realmente, o timbre é seco, rascante, por vezes esganiçado; guarda algo do jeito de cantar dos violeiros e lavadeiras do Nordeste. As notas agudas são atacadas quase num gemido, e tendem a ser sustentadas longamente, o que traz uma grande carga emocional a suas interpretações. Mas as melodias, e também certos trejeitos do canto, já parecem aclimatados ao conforto do pop. O comentário de Caetano reúne as duas grandes influências na formação musical de Djavan: o canto seco de sua mãe nordestina e a música dos Beatles.

Se às vezes tenho a impressão de que ele não goza do prestígio que merece entre críticos e ensaístas, creio que isso se deve ao aspecto aleatório de algumas de suas letras, que parecem verdadeiras saladas de palavras. Suas canções resistem a elaborações conceituais porque não apresentam um discurso poético minimamente coerente. O exemplo mais clássico disso no repertório de Djavan, e que já entrou para o senso comum, é a letra nonsense de Açaí, com seu “zum de besouro, ímã / branca é a tez da manhã”. Pode não haver coerência de discurso, mas há coerência na interação entre melodia e letra, e foi Chico Buarque (o mestre da coerência poética, seu parceiro em pérolas como A Rosa e Tanta Saudade) quem notou que “a música cheia de tônicas que ele faz pede o uso de monossílabos e palavras soltas”. E essas palavras soltas, ainda que não sejam encadeadas em um nexo linear, sugerem imagens e texturas sonoras que casam perfeitamente às melodias.

A obra de Djavan é vasta, caudalosa, habitada por diferentes núcleos poéticos. Um dos que mais me fascina é aquele do conjunto de canções “andaluz”. Como ele próprio reconheceu numa de suas letras, ele é “um pouco árabe” – volta e meia sua cabeça zanza pela Espanha mourisca. O canto a palo seco, o timbre árido, a voz curtida pelos ecos do tempo, Sevilha e Andaluzia: aqui ele me leva curiosamente a pensar em João Cabral, em sua conexão visceral com Espanha. Uma conexão imersa em modalismos que de certo modo religam a Europa dos mouros ao Nordeste do Brasil e, evidentemente, à América Latina. Dela derivam obras-primas como Andaluz e Milagreiro. É bonito ver Djavan bebendo dessa fonte, se colocando no cruzamento de tantos afluentes que o ultrapassam. Seus incríveis vídeos no Parque Güell, em Barcelona, e sua recente gravação de La Noche são testemunhos definitivos da sofisticação e da amplitude de seu gênio.

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