Diane Kruger, protagonista de Em Pedaços no papel de Katja Sekerci, recebeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes FOTO: DIVULGAÇÃO
Do nada – desesperança amarga
A força de Em Pedaços parece vir da atualidade do tema e da proximidade do diretor com os fatos reais que serviram de inspiração ao roteiro
Sala cheia sábado à tarde para assistir a Aus dem Nichts, título original do filme que recebeu, entre nós, o disparatado nome Em Pedaços, fruto provavelmente do sarcasmo de péssimo gosto de alguém da empresa distribuidora brasileira.
Os cerca de sessenta espectadores deviam estar sob o impacto dos assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes, ocorridos três dias antes. Será que sabiam que desde o início do ano passado 23 vereadores e prefeitos foram executados no Brasil, pelo menos seis deles por motivação política? Teriam ido ao cinema para fugir da trágica realidade das ruas? Se estavam em busca de entretenimento leve, seriam surpreendidos pelo filme dirigido por Fatih Akin, a partir do roteiro que ele escreveu com Hark Bohm.
Antes da sessão começar, a funcionária do cinema dirige-se à plateia e pergunta, para surpresa geral, se a temperatura do ar condicionado está boa. Diante das respostas afirmativas, antes de se retirar recomenda que quando forem embora, depois da projeção, ninguém “deixe nada cair”. Ouvem-se risos discretos, mas constrangidos, e um comentário: “Ela deve ter trabalhado antes em um asilo de velhos.” A média de idade da plateia parece alta. Predominam cabeças brancas. Um único menino de uns 13 anos, com o pai, chega para assistir a um filme inadequado para sua idade.
Com a luz da sala ainda acesa, a sessão começa com a projeção de fotos coloridas e dados pessoais de crianças e jovens desaparecidos, além do número de telefone para o qual deve ligar quem tiver alguma informação a fornecer. Na plateia, celulares continuam ligados e a maioria do público não presta muita atenção nesses avisos.
Notícia publicada no G1, há um ano, informa que 115 jovens desaparecem a cada semana no Rio. Em 2016, de acordo com o Fórum de Segurança Pública, houve 71.796 desaparecidos, no Brasil. “A cada ano, em média 250 mil pessoas desaparecem no Brasil sem deixar rastro. Dessas, 40 mil têm menos de 18 anos, de acordo com estimativas oficiais.” Quantos terão sido assassinados?
Seguem-se os trailers de A Luta do Século, de Sérgio Machado, e de Zama, mais recente filme de Lucrecia Martel. A Luta do Século, apresentado pelo próprio diretor, é mais um dos vários documentários brasileiros lançados simultaneamente, na brecha entre o Oscar e o Festival É Tudo Verdade. Antes do filme de Fatih Akin começar, é preciso aturar ainda comerciais de três grandes empresas de telecomunicações, subsidiárias de empresas estrangeiras que controlam mais de 30% do mercado brasileiro.
Alemão, descendente de turcos, Akin traz no currículo prêmios de melhor filme (Contra a Parede, 2004) e melhor roteiro (Do Outro Lado, 2007), recebidos nos festivais de Berlim e Cannes. Em 2017, Diane Kruger, protagonista de Em Pedaços no papel de Katja Sekerci, recebeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes. São credenciais de peso que criaram expectativa positiva em relação ao filme.
O enredo é estruturado em torno de Katja, a partir do seu casamento na prisão com Nuri Sekerci (Numan Acar), imigrante turco, preso por tráfico de drogas. Dividido em três atos, identificados com legendas (A família, Justiça e O mar), a narrativa de Em Pedaços guarda para o final de cada uma dessas etapas um evento de impacto.
Os dois primeiros fatos imprevistos fazem de Katja uma mulher e mãe corajosa, decidida a fazer justiça com as próprias mãos. O terceiro é menos previsível, e mais amargo, indicando a perda de sentido em pretender reparar o mal e continuar vivendo.
Guilherme Genestreti assinalou com razão, na Folha de S.Paulo (Ilustrada, 16 de março de 2018), a semelhança que há entre Katja e Mildred Hayes (Frances McDormand) de Três Anúncios Para um Crime. Poderia ter incluído também Latrice Butler (Regina King), da série de televisão Seven Seconds (2018) – mãe do adolescente Brenton, ela pede uma arma por que “precisa matar o homem que matou” seu filho.
Genestreti destaca o que considera diferenciar Katja de Mildred – a ira voltada contra os criminosos, de uma, e o rancor direcionado à polícia, da outra. Sem entrar no mérito dessa explicação, o que a mim mais parece distingui-las é a desesperança extrema, de Katja, e a conciliação reconfortante, de Mildred. Não terá sido por acaso que o filme de Akin não foi selecionado para a lista final de concorrentes ao Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira, enquanto Três Anúncios Para um Crime concorreu a sete Oscars, e ganhou os de Melhor Atriz e Melhor Ator Coadjuvante.
A força de Em Pedaços, fora o magnetismo de Kruger, parece vir em boa medida da atualidade do tema e da proximidade de Akin com os fatos reais que serviram de inspiração ao roteiro. No final do filme, uma legenda dirigida a espectadores jovens e, em especial, a estrangeiros de qualquer idade pouco familiarizados com a realidade alemã, informa que entre 2000 e 2007, um grupo de três neonazistas matou dez pessoas, na Alemanha, sendo nove imigrantes, oito dos quais com antepassados turcos ou curdos.
Akin considera que ele poderia ser um alvo para essas pessoas. O irmão dele conhecia uma das vítimas e o assassinato ocorreu no bairro em que eles moravam. “Então, foi perto de mim. Eu tinha que expressar minha raiva e meu medo.” E daí, a partir dessas execuções feitas do nada, surgiu o filme.
“Nós somos bons em esquecer coisas, ou em não falar sobre coisas, ou não estar interessado em coisas”, declarou Akin. “É por isso que tentei fazer o filme o mais popular possível – para não alcançar apenas o público que sempre alcanço, mas um público mais amplo na Alemanha.” (A entrevista completa está disponível aqui)
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