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Documentários brasileiros em questão

Cinco dos sete documentários que concorrem no Festival É Tudo Verdade são centrados em personagens

Eduardo Escorel | 06 abr 2022_09h01
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Amostra de documentários selecionados para a competição brasileira do 27º Festival É Tudo Verdade, iniciado em 31 de março e seguindo até o próximo domingo, 10 de abril, formada quase toda por projetos da era a.P. (antes da pandemia), comprova outra vez o longo período requerido para ir da concepção de um filme à sua estreia. As duas exceções, produzidas entre 2020 e 2021, são Quando Falta o Ar, das estreantes Ana Petta e Helena Petta, e Rubens Gerchman: O Rei do Mau Gosto, de Pedro Rossi.

A demora excessiva em vir a público, resultante do nosso sistema de produção, vítima de hipertrofia burocrática, responde pela tradicional sina de predominar entre nós documentários brasileiros sobre personagens e eventos do passado, dedicados em geral a celebridades, músicos e artistas, em detrimento de temas relacionados às urgências do momento presente. Nada indica haver possibilidade de superarmos esse estigma, passando a fazer mais documentários que sejam interlocutores ativos e respeitados no debate público hodierno do país.

Além de outras virtudes, Quando Falta o Ar e Rubens Gerchman: O Rei do Mau Gosto merecem louvores, portanto, pelo simples fato de terem sido realizados durante a pandemia e lidarem, cada um à sua maneira, com questões atuais.

Cinco dos sete documentários selecionados este ano para a mostra competitiva do Festival É Tudo Verdade são centrados em personagens, confirmando o predomínio indicado acima: Toprãmre Krôhôkrenhûm Jõpaipaire, líder do povo indígena Gavião; Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, cantor e compositor; a senhora Eneida Azevedo Passos; Rubens Gerchman, artista plástico; e José Maurício Bustani, diplomata.

Dois desses filmes sobressaem de modo especial, em primeiro lugar por serem sagas pessoais, uma mais restrita, de âmbito familiar, a outra abrangente, percorrendo quatro décadas e tratando de questões atemporais. Além disso, a diretora de Eneida e o codiretor de Adeus, Capitão – Heloisa Passos e Vincent Carelli – são os dois únicos a interagir ativamente, diante da câmera, com os protagonistas de seus documentários.

A diretora Helena Passos e a mãe Eneida – Foto: Divulgação

 

Além do já mencionado filme sobre Rubens Gerchman, estão também nesse grupo Belchior – Apenas um Coração Selvagem, de Camilo Cavalcanti e Natália Dias, além de Sinfonia de um Homem Comum, de José Joffily.

Cavalcanti e Dias mutilam seu próprio filme ao deixar para o final e abordar de passagem o enigma que persiste em relação ao sumiço, ou chamado recolhimento, de Belchior, em 2007, além de não abordarem com atenção as circunstâncias da sua morte dez anos depois. Por si só, nem as apresentações e entrevistas do compositor e cantor, nem seus poemas e letras recitados por um ator (Silvero Pereira), muito menos a interpretação de Elis Regina cantando Como Nossos Pais, conseguem situar Belchior em patamar que sustente Belchior – Apenas um Coração Selvagem. A impressão que fica é mesmo a de um artista de fôlego curto.

Joffily, por sua vez, demonstra ter tido dificuldade em reger sua Sinfonia de um Homem Comum, talvez por lidar com um personagem desprovido de grande magnetismo pessoal envolvido em uma situação política complexa na qual revelou ser o elo mais fraco. O documentário se divide entre o pianista e o embaixador José Maurício Bustani, primeiro diretor-geral da Organização para a Proibição de Armas Químicas (Opaq), nomeado em 1997 e afastado em 2002, por pressão dos Estados Unidos, ao defender a inexistência de armas de destruição em massa no Iraque. Além da posição de Bustani ter se provado correta, sua demissão da Opaq foi considerada ilegal, um ano e meio depois, por um tribunal da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Reconstituir esse exercício de poder dos Estados Unidos sendo obrigado a lançar mão de grande quantidade de matérias jornalísticas televisivas parece ter sido um obstáculo difícil de transpor.

Cena do filme “Pele” – Foto: Divulgação

Concepção original e rigorosa unidade de estilo fazem de Pele, de Marcos Pimentel, um dos marcos mais expressivos da competição brasileira do 27º Festival É Tudo Verdade. Recorrendo à observação, com breves intervenções encenadas, ao contrapor pintura mural e grafites à indiferença dos passantes, assim como aos exercícios variados de liberdade corporal e expressão coreográfica, o documentário compõe, em breves 75 minutos, um mosaico contundente, retratando o espaço urbano em que se vive na(s) metrópole(s) deste país. Registre-se que, entre vários, um dos grafites é Volta Belchior!, outro é Políticos e fraldas devem ser trocados de tempos em tempos pelos mesmos motivos e um terceiro é Só o SUS Salva.

 

Gravado em plena pandemia, Quando Falta o Ar percorre unidades do SUS (Sistema Único de Saúde) em cinco estados, Amazonas, Bahia, Pará, Pernambuco, além de São Paulo, onde fez gravações no Hospital das Clínicas. O documentário registra enfermeiros, agentes comunitários de saúde e médicos em ação, prevenindo e cuidando de pacientes acometidos de Covid. O documentário não se preocupa em revelar as condições arriscadas para a equipe em que foi feito, mas não é difícil imaginá-las. A câmera se mantém na posição de quem observa o que ocorre fora do seu controle, sem intervir. Há um claro sentido de missão no projeto, a iniciativa de fazer Quando Falta o Ar tendo partido da codiretora e médica Helena Petta, atenta a centrar o foco na atuação heroica dos chamados profissionais da linha de frente que “resistiram e enfrentaram a pandemia”, em especial no período anterior à vacinação. Igualmente importante é o fato de o documentário não deixar de assinalar fator decisivo da crise sanitária no Brasil – a desigualdade social, incluindo seu componente racista. Deixando claro, além disso, nas legendas finais que o presidente da República “ignorou as medidas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde, boicotou o uso de máscaras, orientou o uso de medicação sem comprovação científica e atrasou deliberadamente a vacinação”. O catálogo do festival traz ainda um lembrete adicional importante das diretoras: “No momento em que se inicia esta edição do É Tudo Verdade, o Brasil ainda conta seus [mais de 660 mil] mortos, e profissionais do SUS continuam resistindo.”

Sem deixar de ser uma exaltação ao personagem título, falecido em 2008, Rubens Gerchman: O Rei do Mau Gosto evita a armadilha fatal de ser uma hagiografia de Gerchman ao estabelecer conexões entre fatos ocorridos em julho de 1978 e a conjuntura política do país a partir de 2017 e predominante desde a posse do presidente da República, em 2019. Ligações tornadas explícitas por um comentário, em off, feito por uma voz feminina não identificada.

A primeira ocorrência do final da década de 1970 que ecoa no presente, rememorada em Rubens Gerchman: O Rei do Mau Gosto, é o incêndio do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Não foi esclarecida a causa do sinistro, no qual foram destruídas as obras da exposição Arte Agora III, América Latina: Geometria Sensível, entre as quais oitenta telas do uruguaio Joaquín Torres García, além de parte do acervo e das instalações do museu. Passados apenas dezoito dias, ocorreu o segundo fato relembrado no documentário de Rossi – foi concluído, em Belo Horizonte, o processo da Justiça Militar de Minas Gerais contra quatro integrantes do júri do 4º Salão Global de Inverno e Lincoln Volpini, um dos artistas jovens premiados por seu pequeno quadro Penhor da igualdade, apreendido pela Polícia Federal por suspeita de que fizesse referências “atentatórias à segurança nacional”.

Embora os jurados tenham sido absolvidos, Volpini foi condenado a um ano de prisão. Por ser réu primário, ele cumpriu a sentença em liberdade, o que não ameniza a truculência e suscitou agora o comentário mencionado acima, feito em Rubens Gerchman: O Rei do Mau Gosto: “… hoje é muito parecido, por isso as pessoas ficaram em alerta. Porque quando começou a ditadura não era uma coisa muito explícita, depois vieram todos os AI1, AI2… AI5… Então, não sei se te respondo, mas esse clima de alerta, e que não é um alerta só para o Brasil, é um alerta no mundo. A gente está numa posição que, realmente, a gente tem que estar com muito cuidado. Se você escuta o noticiário internacional, ou se você lê o jornal, cada vez mais, supostamente, você é excluído só pelo fato de você pensar diferente, pelo fato de ser artista. Pelo fato de você ler livros que eles não leriam… você fica logo sendo uma pessoa perigosa para a sociedade. É uma sensação muito desagradável, por que … a liberdade é um bem supremo… E estamos, no momento, vivendo radicalização muito grande de todas as partes. E é sempre assim que começa nas grandes guerras.”

Se alguém tiver dificuldade para entender essas palavras, basta assistir a Quem Tem Medo?, a ser exibido dias 9 e 10 na mostra O Estado das Coisas do Festival. Em 70’, o documentário de Ricardo Alves Jr., Dellani Lima e Henrique Zanoni faz um inventário de performers, atores e dramaturgos que não só tiveram obras censuradas mas foram violentamente ameaçados e atacados por deputados federais e através da internet, pelo menos nos casos dos performers Wagner Schwartz e Maikon K, este último preso pela Polícia Militar, em Brasília, por “ato obsceno”, ainda em 2017, quando se apresentava nu dentro de uma esfera plástica transparente, no projeto “DNA de Dan”. Schwartz, por sua vez, recebeu ameaças de morte e foi obrigado a prestar depoimento de quase três horas na 4a Delegacia de Polícia de Repressão à Pedofilia. “A catástrofe é que, a partir da adesão a uma ficção, criou-se pelo menos uma vítima real: Wagner Schwartz”, conforme Eliane Brum escreveu (El País, 12 fev 2018).

 

Além de Pele, Eneida e Adeus, Capitão sobressaem entre os participantes da mostra competitiva. Eneida é um drama familiar em que mágoa profunda causa sofrimento irremediável. Muito bem conduzido e fotografado, acompanha em tempo real a tentativa frustrada de reconciliação entre Eneida e sua filha mais velha, rompida com a família há mais de vinte anos. É um documentário incomum no panorama do cinema brasileiro, que abre nova vertente de grande potencial.

Cena do filme “Adeus, Capitão” – Foto: Divulgação

E para finalizar esta extensa coluna, algumas palavras a mais sobre Adeus, Capitão, história de uma relação iniciada no começo dos anos de 1970 que perdurou décadas, mesmo depois da morte de Krôhôkrenhûm – o Capitão –, em 2017. Dois anos depois, na primeira sequência após o prólogo, Carelli vai ao encontro de Pojarêtêti – Madalena –, viúva mais velha do Capitão, decidido a “concluir o projeto de uma parceria de anos – difundir os registros do seu legado para as futuras gerações”, conforme a narração. Recorrendo às suas próprias gravações feitas em épocas diferentes, além de a uma grande variedade de registros feitos por colaboradores em diversos suportes, Carelli reconstitui em detalhes e sem pressa as etapas da sua amizade a partir de 2010, quando ele volta à aldeia do povo indígena Gavião, após quinze anos de ausência, “chamado pelo Capitão para filmar o encerramento de um ritual”, depois de ter “acompanhado com dificuldade, através de sua filha, os dez dias que ele passou acamado, com dificuldades respiratórias”. À noite, em pleno ritual, o Capitão diz diante da câmera: “Eu quero assim. Para segurar e mostrar que estamos nascendo e estamos crescendo. Estamos aumentando, né? Então, eu não quero abandonar, porque um dia eu vou embora e eu quero que as pessoas vejam que eu estou dançando e cantando pro povo. Agora parece que o pessoal tá acordando. Vamos ver, né?” Ele canta, dança e prossegue: “Eu lembro de antigamente, do meu povo que já morreu todo… Eu fiquei sozinho… quero até chorar. Agora você já viu como é o movimento do meu povo. Era atrasado, não valia nada, mas na brincadeira ela funciona. As meninas também estão funcionando… Eu tava até triste, parado lá… Elas foram e me levantaram. Queriam, no final, esta festa. Então, graças a Deus eu estou fazendo assim. E graças a Deus quero que vocês filmem bem direitinho porque eu quero segurar pro povo, pro povo ver a minha sombra, que eu estou cantando.” Carelli, então, comenta na sua voz em off: “Esta foi a última noite em que o Krôhôkrenhûm cantou do entardecer ao amanhecer. Senti em seu recado o tom de uma despedida antecipada.” No final, passadas 2h43min, é Carelli quem se despede: “Adeus, Capitão. Você partiu, mas ficou a sua sombra cantando para o povo.”

Filmes como Adeus, Capitão são raridades, costumam marcar época e se tornam perenes ao reunir compromisso político e afeto. 

*

A História da Guerra Civil (1921-2021), de Dziga Vertov e Nikolai Izvolov, foi exibido domingo, 3 de abril, na mostra Clássicos É Tudo Verdade, após ter sido “restaurado quadro a quadro, trecho a trecho”, segundo o pesquisador responsável por esse trabalho, Nikolai Izvolov, que assina o filme como correalizador. Impossível assistir às ruínas das cidades russas há um século sem pensar na destruição e nas mortes ocorrendo na Ucrânia.

Hoje, 6 de abril, será exibida entrevista gravada de Izvolov a Luis Felipe Labaki que poderá ser vista nas plataformas www.itaucultural.org.br e www.etudoverdade.com.br. Izvolov é historiador e chefe do departamento de história do cinema russo do Cinema Art Institute de Moscou. Colaborou com Chris Marker em Elegia a Alexandre (1993), sobre Aleksandr Medvedkin, conhecido como “o cineasta do trem”.

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