O poeta do Castelo
Domingos de Oliveira – um personagem
Na ampliação pendurada na parede, Domingos está em primeiro plano. Só ele e Manuel Bandeira representam. Os outros quatro que estão na foto tentam parecer naturais. Em posição de destaque, Domingos banca o desconsolado. Esboça um sorriso, com a cabeça apoiada na mão direita. Na esquerda, segura uma pequena lousa na qual está escrito 1959. Um pouco recuado, o poeta segura um livro. É o único do grupo a olhar diretamente para a lente da câmera fotográfica.
Na ampliação pendurada na parede, Domingos está em primeiro plano. Só ele e Manuel Bandeira representam. Os outros quatro que estão na foto tentam parecer naturais. Em posição de destaque, Domingos banca o desconsolado. Esboça um sorriso, com a cabeça apoiada na mão direita. Na esquerda, segura uma pequena lousa na qual está escrito 1959. Um pouco recuado, o poeta segura um livro. É o único do grupo a olhar diretamente para a lente da câmera fotográfica.
Apoiada no tripé, a câmera de filmar enquadra Bandeira de cima para baixo. Como pode ser visto no segundo curta-metragem de Joaquim Pedro de Andrade, , o poeta veste um robe de chambre sobre o pijama listado e está de chinelo. Só Domingos, assistente de direção aos 23 anos, usa paletó e gravata. Ao fundo, no eixo central da fotografia, Joaquim Pedro, na época com 27 anos, está sentado diante do batente da janela de cara enfezada. À esquerda, Afrodísio de Castro, veterano diretor de fotografia de Ganga Bruta (1933), de Humberto Mauro, também usa gravata, mas sem paletó. À direita, no canto da sala, Sérgio Montagna, sócio de Joaquim Pedro na Saga Filmes, observa Bandeira. E à direita, na Cameflex 35mm, está Jorge Veras.
Apesar de ser o mais jovem, o menos experiente e aquele cuja função tem importância relativa na hierarquia da equipe, é Domingos quem ocupa o centro da cena, atraindo o olhar e ofuscando até o discreto Manuel Bandeira. A foto sugere que Domingos já estava criando o personagem Domingos de Oliveira.
Cinquenta e seis anos depois, eis de novo o mesmo personagem, agora com o elenco de Infância, filme que Domingos escreveu e dirigiu, adaptando uma peça de sua autoria. Passadas mais de cinco décadas, Domingos de Oliveira cedeu a posição central para Fernanda Montenegro, a matriarca Dona Mocinha com que está de mãos dadas. Como na foto de 1959, ele sorri. Mas agora é um sorriso largo de quem parece satisfeito consigo mesmo.
Em entrevista a Luiz Carlos Merten, Domingos aceita que Infância seja um filme confessional, mas reluta em admitir que é autobiográfico. “Eu minto muito”, afirma. E completa: “O fato não existe, não é mesmo? Existe a impressão do fato, que é diferente para cada um. Existiu uma cachorra que morreu, minha mãe, meu pai e minha avó se parecem com as personagens no filme. E eu tinha um primo que queria me comer, mas as semelhanças param quase aí. Muitas vezes para contar a história de verdade você tem que mentir”. Faltou reconhecer ao menos a semelhança física entre ele e o Domingos de Oliveira que aparece no filme.
O Rodriguinho de Infância, portanto, é e não é o “menino baixinho, tímido e orelhudo” que Domingos diz ter sido. Inclusive por que, no início da década de 1950, época do filme, Domingos estava no final da adolescência, enquanto Rodriguinho é uma criança.
O fato do narrador de Infância, cuja voz em off também é do Domingos, dizer que a narrativa de vida do filme incorpora lendas à rememoração autobiográfica não impede, porém, para espanto dos espectadores desavisados, que Domingos surja em cena no final, sublinhando a simbiose entre ele e Rodriguinho. Dada a trajetória do personagem Domingos de Oliveira desde , seria difícil imaginar que Domingos resistisse à tentação de incluí-lo como um Deus ex-machina no encerramento de Infância.
Domingos nunca tentou camuflar o cabotinismo de Domingos de Oliveira. Muito pelo contrário, fez sempre questão de alardear seu enorme prazer em atrair atenção sobre si mesmo. Em uma entrevista de 2011, ele aparece no apartamento de Domingos sentado numa cadeira nas costas da qual está escrito em letras maiúsculas “Autor”, “Diretor”, “Ator”, “Poeta”, “Cantor”, “Homem do mundo”.
Foto: SELMY YASSUDA
Nessa mesma entrevista, Domingos define Domingos de Oliveira como sendo “o Woody Allen brasileiro. Temos identidades parecidas, mas ele é muito mais rico que eu. Imito ele sempre que posso.” Para completar o autorretrato do personagem diz também: “Sou uma barata tonta que corre o tempo todo para todos os lados, atrás de dinheiro, da arte e de mulheres. Desesperadamente. Confusamente. Desbaratinadamente.” Difícil saber até que ponto Domingos realmente se identifica com o personagem Domingos de Oliveira que criou ou se, no íntimo, ainda mantém alguma distância dele quando não está atuando.
Domingos é um espécime raro. Prolífico, realizou uma vasta obra, admirada por muitos, no cinema, no teatro e na televisão. Desde 1967, ano em que lançou Todas as mulheres do mundo, dirigiu 13 filmes a partir de roteiros que também escreveu, de maneira geral contendo elementos autorreferentes. É dos poucos realizadores que criticam abertamente a “gente que cismou com essa besteira de que o cinema brasileiro é indústria” (idem entrevista a Luiz Carlos Merten citada acima), sem deixar de qualificar sua afirmação: “Claro que é, porém, secundariamente. [É] principalmente um instrumento de educação, moral e ética, sendo esta sua função principal. Imprescindível à sanidade geral. As duas escolas de cinema que formaram minha geração, a nouvelle vague e, principalmente, o neorrealismo, nunca tiveram orçamentos altos. Dinheiro atrapalha.”
Há certa incongruência entre esse propalado voto de pobreza e Infância, por ser um filme de época. A falta de recursos pode ter imposto uma gravação rápida, acentuando o confinamento da ação em uma única casa e a extrema fragilidade dos dois atores meninos. A dificuldade de entender as intervenções do narrador também prejudica o filme. Em compensação, Paulo Betti deixa sua marca no papel de Henrique, genro de Dona Mocinha que torrou seus apartamentos do Andaraí.
Um reparo final: repete-se algumas vezes em Infância que “o Leblon é o fim do mundo”. A piada faria mais sentido se o filme se passasse na década de 1930.
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