“I’m always provoking family’s drama”, diz um dos desenhos do artista plástico Leonilson. Nele, vemos uma figura humana empunhando uma bandeira, cuja haste atravessa o peito de outra pessoa, deitada como uma tábua em posição horizontal. Nas quatro arestas da composição, marcações indicam os pontos cardeais. A frase escrita no papel com um pequeno erro de grafia – “Eu estou sempre provocando drama familiar”, em tradução livre – data de 1990, mas poderia muito bem estar estampada num meme. É ao mesmo tempo lamuriosa e irônica, uma das tônicas da cultura digital, que Leonilson, morto em 1993, aos 36 anos de idade, não conheceu.
Nascido em Fortaleza, o artista tinha 4 anos de idade quando se mudou com a família para São Paulo. Morou na Vila Mariana, bairro de classe média. Ingressou no curso de artes plásticas da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), mas não colou grau. Teve como professores e colegas figuras proeminentes do circuito das artes, como Nelson Leirner (1932-2020) e Leda Catunda, também grande amiga. Trabalhou no teatro, colaborando com o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, do qual a atriz e apresentadora Regina Casé fazia parte.
Apesar da morte precoce, causada por complicações decorrentes da Aids, Leonilson pôde desfrutar em vida de algum reconhecimento por seu trabalho, quase sempre autobiográfico e que flertava com a escrita em forma de diário. Nos últimos trinta anos, ganhou status relevante no cânone dos artistas brasileiros, e hoje vem passando por algumas releituras.
Em dezembro, virou tema de uma mega-mostra na Pinacoteca do Ceará, que compilou 117 de suas obras sob um título poético: “Leonilson: Montanhas protetoras e ao longe, vulcões, rios, furacões, mares, abismos e Das amizades”. Em cartaz até maio de 2024, na cidade natal do artista, a exposição tem curadoria de Ricardo Resende e Aline Albuquerque. A expografia ficou a cargo de Gisele de Paula, que desempenha a mesma função na mostra “Uma Poética do Recomeço: César Bahia e o Acervo da Laje”, instalada no Museu de Arte do Rio (Mar).
Três meses depois de concluída a mostra, Leonilson será tema de uma exposição de grande porte no Masp, em São Paulo. Serão exibidas 150 obras, dispostas no primeiro andar, um dos espaços mais nobres e amplos do museu. Adriano Pedrosa, diretor artístico do Masp e curador-geral da 60ª edição da Bienal de Veneza, assina a curadoria junto ao assistente curatorial Teo Teotonio. A exposição será chamada “Leonilson: agora e as oportunidades”.
O artista, em Fortaleza e em São Paulo, é visto sob prismas diferentes, algo que parece espelhar sua dupla identidade de migrante. No Ceará, a família conhecia Leonilson como Leó, com acento agudo no final do nome. Em São Paulo, o artista era chamado de Léo.
Leonilson ao lado de uma de suas obras na Galeria Luisa Strina, em São Paulo, em 1987 (Foto: João Caldas/Folhapress)
A mostra em Fortaleza, embora também comporte as paixões e dúvidas existenciais de Leonilson, põe em foco a relação do artista com a natureza, assunto que não costuma ser muito comentado em sua obra. Assim compreendemos que as paisagens emocionais que ele construiu também se nutriam de paisagens materiais. Em Incêndio a Bordo (1987), a silhueta de uma criatura que tem seu coração em chamas se confunde com a paisagem montanhosa. Olhando num primeiro momento, é difícil distinguir o que é humano, o que é natureza.
“Muito se fala da vida do Leonilson em São Paulo, das viagens para fora do Brasil. Mas nunca se falou sobre as temporadas dele em Fortaleza”, comenta Ricardo Resende, um dos curadores. O ângulo é pertinente, segundo ele, porque as paisagens da cidade ajudam a entender a estética de Leonilson. “Há um diálogo muito forte com a paisagem que ele vivenciava aqui, em que as montanhas são vistas da perspectiva do litoral, ao longe”.
Entre as 117 obras, há algumas da década de 1970, o que permite entender o amadurecimento artístico de Leonilson – na época, recém saído da adolescência. A maturidade, do ponto de vista de sua produção, só chegaria nos anos 1980. Sua arte com o tempo se tornou mais sintética, concisa, à medida que ele fazia uso de técnicas de bordado e depurava o desenho.
A exposição da Pinacoteca deixa clara a relação desse aspecto da obra de Leonilson com a tradição do bordado no Ceará. A peça Montanhas Sob a Neve (1989), uma toalha caqui com bordados no estilo richelieu, é exemplar de como artista se valia desse tipo de técnica. “Dizem que ele comprou essa peça em Fortaleza, em um mercado de artesanato, não se sabe qual. A bordadeira teria dito para ele que a toalha não estava pronta [em parte do tecido, havia somente um esboço do que viria a ser um desenho de flores]. Mas o Leonilson insistiu, disse que queria daquele jeito mesmo”, conta Resende. “Depois, ele trabalhou sobre a toalha e fez suas intervenções, criando pequenas montanhas à esquerda, na parte superior.”
Fortaleza não está em foco na mostra que será montada em São Paulo. O curador Adriano Pedrosa, que foi amigo de Leonilson, optou por destacar os últimos cinco anos da vida do artista, fase mais consagrada. Serão cinco salas, cada uma representando um ano, de 1989 a 1993. O acervo mostra uma criatura angustiada pelo medo. No desenho Agora e as oportunidades (1991) que dá título à futura exposição, as pernas e braços que se amontoam, grudados, não sugerem riqueza ou movimento, mas sim um estado de dúvida permanente diante da vida. Tudo envolto pela solidão que Leonilson nunca escondeu.
Pedrosa, vale lembrar, foi curador de uma mostra panorâmica do artista em 2014, na Pinacoteca de São Paulo, chamada Leonilson – Truth, Fiction. A exposição examinava os pormenores da produção do artista, considerado expoente da Geração 80, que colocou a pintura novamente em foco no cenário sudestino. Leonilson, contudo, não se restringia a essa bolha. Era um grande admirador dos bordados de Arthur do Bispo do Rosario (1909-1989).
Em 1991, Leonilson testou positivo para o vírus HIV, que abalou rapidamente sua saúde e escancarou, para a família, sua sexualidade até então mantida em segredo (o “drama familiar” que ele dizia provocar naquele desenho de 1990 parece, por isso, algo profético). A iminência da morte, que viria dois anos depois, e a angústia existencial tornaram-se então o principal tema da obra de Leonilson, ao mesmo tempo funesta e irônica.
Os anos finais de sua vida foram bastante profícuos. O documentário Leonilson: Tantas Verdades, dirigido por Cacá Vicalvi e lançado em 2003, registrou uma frase do artista que acabaria se tornando famosa e pareceu dar o tom de seu ânimo até o final: “Eu estou cheio de vontade. Um homem-peixe com todo o oceano para nadar. Eu estou totalmente pronto.”