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    O confronto entre Bolsonaro e Lula: estratégia dos bolsonaristas inclui reduzir vitória do adversário - Crédito: Reuters/Folhapress

questões eleitorais

Aposta no caos

Bolsonaristas usam estratégia militar para incutir sentimento de derrota nos adversários vitoriosos no primeiro turno

Consuelo Dieguez | 06 out 2022_13h11
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Na sexta-feira, dia 30, antevéspera das eleições, num debate na livraria Janela, na Zona Sul do Rio, o jornalista Guilherme Amado, colunista do portal Metrópoles, foi perguntado se acreditava na vitória de Lula em primeiro turno. Do debate participavam Amado, o ensaísta Francisco Bosco e eu – os três discutindo o futuro do bolsonarismo a partir de nossos livros recém-lançados. Amado foi pragmático. Considerando que as pesquisas tinham margem de erro de dois pontos para cima ou para baixo, as projeções de voto em Lula poderiam variar de 50% a 46%, enquanto as de Bolsonaro, de 36% a 40%. “Se isso ocorrer, o atual presidente pode, certamente, continuar na disputa”, disse Amado, que estava longe de achar que Lula venceria em primeiro turno.

A reação da plateia foi de espanto e desalento. De certa forma, aquela audiência era um microcosmo do pensamento do eleitor de Lula nas camadas de classe média alta: a de que a fatura seria liquidada no primeiro turno. E, quando as urnas foram abertas, muitos se decepcionaram. A ponto de desconsiderarem que Lula teve quase 6 milhões de votos de vantagem (o petista Fernando Haddad perdeu de Bolsonaro por mais de 10 milhões no primeiro turno de 2018). Esta é a primeira vez que um presidente da República chega ao segundo turno atrás de seu oponente. Significa que Lula já ganhou a eleição? Não. Costuma-se dizer que o segundo turno é um novo pleito. Mas essa máxima também não significa que Lula vá perder.

Evidentemente, para Lula e seus eleitores, o ideal teria sido a vitória em primeiro turno. Mas o travo amargo no eleitorado lulista parece ter muito mais a ver com o excesso de expectativas do que com a realidade. É como um time de futebol que faz dois gols em cima do adversário e depois toma um gol. Isso significa que vai perder? Não. Mas afeta o moral.

Outro grande choque dos apoiadores de Lula foi a eleição, para o Congresso, de vários ex-ministros de Bolsonaro. O ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles – cuja gestão resultou em aumento do desmatamento – e o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que contribuiu para a morte de milhares de brasileiros durante a pandemia da Covid, receberam votações expressivas (Salles teve mais de 600 mil votos, e Pazuello, mais de 200 mil, sendo o segundo deputado federal mais votado do Rio de Janeiro). “Como pessoas com um currículo tão desprezível puderam ser eleitas?”, era a pergunta que muitos eleitores se faziam nas redes. A eleição de personagens tão distópicos talvez tenha dado a impressão de que o país embarcou definitivamente na marcha da insensatez.

Passado o susto, alguns analistas trataram de refletir com calma sobre a nova composição do Congresso. O cientista político Christian Lynch tuitou na segunda (3): “Chega de histeria. Reduzamos as coisas ao que são. Os partidos de direita são os que apoiam ou fazem parte do governo Bolsonaro: PL, PP, Republicanos, PTB.”. Lembrou que essa bancada na Câmara tinha 181 deputados – agora terá 188. Os partidos de esquerda, que se opõem a Bolsonaro e apoiam a candidatura Lula, tinham 97 deputados e terão 111. “A esquerda, portanto, elegeu mais deputados do que a direita.” Os demais partidos, lembrou ele, são de centro-direita (como a União Brasil, o PSD, MDB, etc), ou de centro-esquerda (PSB) com os quais qualquer governo poderá contar.

O cientista político Jairo Nicolau, embora acredite que a direita se fortaleceu, não considera que isso inviabilizaria um governo Lula. Entende que há espaço para aproximação com muitos parlamentares que estão no jogo democrático, embora admita que o campo do centro sofreu desfalques importantes com as derrotas de José Serra e José Aníbal, ambos do PSDB-SP, e Miro Teixeira (PDT-RJ).

O que preocupa Nicolau são os ataques da esquerda à direita democrática, que podem acabar dificultando futuras alianças no Congresso. “Essa história de chamar Bolsonaro de fascista e genocida nas redes sociais faz com que seu eleitor também se sinta agredido e se afaste cada vez mais do centro”, diz ele. Muitos dos eleitores de Bolsonaro, na opinião de Nicolau, estão longe de ser reacionários. São conservadores, religiosos, com valores ligados à família e que rejeitam as pautas mais progressistas, como aborto, casamento homoafetivo ou ideologia de gênero. “Não acredito, no entanto, que sejam a favor da ditadura e da tortura. Essa ultradireita bolsonarista violenta e autoritária não representa mais do que 10% do eleitorado do atual presidente”, estima. “O resto dos eleitores têm diferentes visões. Chamar de fascista é exagero. Fascista é quem não acredita no regime democrático. Portanto, ao invés de atacar os não radicais, melhor seria tentar incluí-los no debate público.”

 

Muitos analistas se impressionaram com o pessimismo exagerado dos eleitores lulistas e da própria imprensa após a vitória de Lula no primeiro turno. O antropólogo Piero Leirner, especialista nos temas Defesa e Forças Armadas, postou, na manhã do dia 4, um texto no Facebook, intitulado Paralisia estratégica: “ Gostaria de sugerir aqui uma hipótese que diz respeito a uma disfunção provocada ou induzida”, escreveu. “Ela diz respeito à atual sensação de derrota ‘apesar da vitória’, e ao clima de auto implosão que pode ocorrer – se é que já não está ocorrendo – na campanha de Lula.” E prosseguiu. “Vou falar do campo que me atinge e como acho que ele pode ter contribuído para uma situação que está se construindo, ou destruindo. Me refiro ao que, mais uma vez, é uma operação com características militares e, assim, os mesmos protagonistas agem como agiram em 2018.” 

Para ele, toda a conversa de Bolsonaro em torno da auditoria militar nas urnas visava desestabilizar patamares anteriores de percepção de um fato e criar consensos opostos sobre ele. Na teoria militar, explicou Leirner, isso se chama “aplicação da destruição criativa”. Ou seja, bagunçar a cabeça do “inimigo” disparando contradições em série para paralisá-lo na tentativa de resolvê-las. Antes que se resolva, dispara-se outra, e assim por diante, dando espaço para se realizar a manobra que se deseja enquanto o outro perde energia.

A estratégia, segundo ele, começou em 2018, quando Bolsonaro, na eleição em primeiro turno, disse que tinha havido fraude. A segunda parte da manobra ocorreu em 2021 e envolveu colocar militares como “certificadores” do processo eleitoral, quando eles já faziam a certificação das urnas (quem realiza a criptografia da urna é uma empresa do sistema de Defesa). Assim, se a vitória de Lula se desse em primeiro turno, se espalharia a ideia de fraude. Como isso não ocorreu, e os militares, ele supõe, já deveriam saber que não ocorreria em função dos trackings, fabricou-se a desmoralização das pesquisas e da imprensa. Para Leirner, desmoralizar as pesquisas significava atacar o sistema de informação usado por toda a esquerda. “É preciso se perguntar por que houve sentimento de derrota mesmo com Lula encostando nos 50% já que, em uma situação normal, seria uma quase vitória, jogo em casa com vantagem de dois gols.”

Agora, diz ele, todos os eleitores de Lula e os pesquisadores estão se perguntando o porquê da não vitória em primeiro turno, achando que houve uma derrota. A ideia do grande “fiasco” das pesquisas está se sustentando, segundo ele, especialmente pelo que aconteceu em São Paulo (Lula e Haddad venceriam); no Rio Grande do Sul (Lula ganharia em Porto Alegre) e, em parte, no Rio de Janeiro. Curiosamente, diz o antropólogo, esses estados favoreceram candidatos militares e seu entorno – capitão Tarcísio de Freitas e tenente-coronel Marcos Pontes, em São Paulo; general Hamilton Mourão, no Rio Grande do Sul; e general Eduardo Pazuello no Rio. Olhando para os municípios, afirma ele, o quadro é diferente do que se pinta. “Em tese, esses ‘ataques em pinça’ dependem sobretudo da velocidade da iniciativa. E isso os militares e Bolsonaro tiveram de sobra. Tudo o que estamos vendo é uma reação descontrolada às iniciativas deles. Se eu fosse da campanha de Lula, a primeira coisa que eu teria dito é que ‘tem alguma coisa estranha entre as pesquisas e o resultado’, e não explicaria mais nada. Isso iria atrapalhar Bolsonaro.”

Leirner afirma que bastava ajustar os números das pesquisas com a demografia aproximada das abstenções que se chegaria a algo bem próximo do que se viu, como fez a análise do Fundo Legacy, a partir dos números do Ipec. De acordo com a análise, Lula teria 40% dos votos, Bolsonaro 31% e um total de 20% de abstenções. No total dos válidos, Lula 50% e Bolsonaro 46%, ou seja, menos de 2% de margem de erro.

Não bastasse a sensação de derrota pela “quase vitória” de Lula, que ficou a menos de 2 pontos de ganhar em primeiro turno, logo a imprensa e as redes apoiadoras do petista começaram a divulgar os resultados para o parlamento afirmando que havia sido um desastre para a esquerda. Que Bolsonaro mostrou a sua força. 

“Fiquei impressionado com a histeria da imprensa e das redes de apoio a Lula. De como fizeram o jogo de Bolsonaro”, me disse Rodrigo Morais, que foi dirigente do PSL em São Paulo quando Bolsonaro assumiu a legenda em 2018, e que ajudou a organizar o partido na capital paulista. Rompido com o governo, hoje ele tem um escritório de consultoria política. “A imprensa fica divulgando o tempo todo que o Congresso será bolsonarista e isso é reverberado nas redes sociais. Que bolsonarista? O Congresso é do Centrão e o Centrão joga com todo político da situação. Seja ele Lula ou Bolsonaro, esquerda ou direita”, me disse.

Morais recitou de cabeça nomes dos deputados e senadores eleitos e colocados na cota Bolsonaro, fazendo a avaliação de cada um. Os bolsonaristas raiz, diz ele, são Carla Zambelli e Ricardo Salles, de São Paulo. Os outros, ele não considera, de forma alguma, candidatos de Bolsonaro. Pontes, Mourão e Pazuello são do que ele chama de “partido dos militares”. “Não são bolsonaristas. Estão bolsonaristas por falta de opção.”

Alguns bolsonaristas raiz, como Douglas Garcia e Sérgio Camargo, perderam, lembra ele. “Na Bahia? Veja bem, os caras eleitos são do Centrão, não são do Bolsonaro. E essa gente sempre existiu.” Morais muito menos aceita na cota bolsonarista para o senado a ex-ministra da Agricultura, Tereza Cristina, que se elegeu por Mato Grosso do Sul, e o ex- jogador Romário, pelo Rio de Janeiro, ou o palhaço Tiririca. “Você acha que essas pessoas vão se recusar a negociar caso Lula seja presidente? É óbvio que não. Basta ver o histórico deles.”

 

O deputado paulista Júnior Bozzella, do União Brasil, uma fusão do DEM com o PSL, também acha exagero se achar que o Congresso se tornou bolsonarista, embora credite algumas derrotas e vitórias de parlamentares a Bolsonaro. A dele, por exemplo, justamente por ter se afastado do presidente. Deputado por Santos, Bozzella se desentendeu com os bolsonaristas que ocuparam o PSL em 2018 em São Paulo. Próximo ao presidente do partido, Luciano Bivar, que rompeu com Bolsonaro em 2019, fazendo com que o chefe do Executivo e seus filhos largassem o partido que os acolheu nas eleições de 2018, Bozzella atribui sua derrota aos ataques que fez ao presidente e à sua família. “Eu me surpreendi com a força de Bolsonaro nesta eleição. Ele ainda tem grande influência. Tanto que um vereador, que teve apenas mil votos na eleição passada, conseguiu uma vaga na Assembleia este ano porque colou nele nesta eleição.”

Bozzella também afirma que o novo Congresso é muito mais do Centrão que de Bolsonaro. “A maior parte dos candidatos do PL foi eleita graças a Valdemar Costa Neto. E o Centrão, vamos combinar, não é ideológico, é fisiológico. Se Lula ganhar, eles correm para fazer acordo com o novo presidente. Sempre foi assim.”

Se do lado petista o sentimento de derrota era grande, do lado Bolsonarista, a situação não era muito diferente. Em 2018, quando Bolsonaro foi para a disputa em segundo turno, embora esperassem que ele ganhasse no primeiro, o sentimento era de vitória. As redes bolsonaristas, neste primeiro turno, demonstraram também desalento. “O gigante foi morto por seu próprio povo”, disse um internauta. “Independente do resultado, é um dia triste para o Brasil. Um ex-presidiário ter quase metade dos votos de uma população”, postou outro. A maioria, no entanto, se dizia certa de que a derrota tinha relação “com a fraude nas urnas e com o erro das pesquisas.”

O general Paulo Chagas apoiou Bolsonaro nas eleições passadas e depois rompeu com o presidente. Ele concorreu a deputado por Brasília este ano e perdeu. Chagas, no entanto, parecia mais preocupado com uma possível derrota de Bolsonaro em segundo turno. Não porque goste do atual presidente. Pelo contrário. Mas por ter “aversão” a Lula. Tanto que ele, apesar de todas as críticas ao presidente, irá apoiá-lo. “Todos os militares da ativa e da reserva certamente fecharão com Bolsonaro”, me disse.

Contudo, o general não considera Bolsonaro uma liderança política. E, ao contrário de muitos seguidores do atual presidente, que enxergaram fraude no processo eleitoral, Chagas acredita que Lula só chegou na frente com quase 6 milhões de votos por “absoluta incompetência de Bolsonaro.” O bom desempenho de Lula, diz ele, só foi possível por causa dos erros que o presidente cometeu durante seus quatro anos de governo. E enumera as falhas. “Ele não é um liberal, ele não é de direita, ele não é conservador. Eu sou um liberal de direita. Ele nem sabe o que é isso”. E foi além. “Ele não é um sujeito ideológico porque não tem capacidade para sê-lo. Ele é um espalha bosta no Congresso, que não sabe o que é ter uma posição política. Fica pulando de cá para lá.” 

As previsões sobre o resultado das eleições são ainda muito cautelosas. Nicolau e Leirner acreditam que Lula tem chances de vencer, mas tudo dependerá da composição de forças. O apoio de Ciro Gomes e de Simone Tebet dá um bom alento à campanha, embora não seja possível apostar quantos desses eleitores irão para o lado lulista. Também é preciso levar em conta o comportamento das redes de esquerda. Atacar as pessoas que não foram votar, como vem sendo feito, chamando essa turma de isentões, por exemplo, não ajuda a atrair simpatia para o candidato petista, diz Nicolau. Também não ajuda se atacar políticos de centro dispostos a ajudar na campanha.

Rodrigo Morais aponta outro fator que pode ajudar Bolsonaro. Acha que a imprensa erra ao atacá-lo incessantemente, lhe dando palco. “Quanto mais a imprensa bate, mais ele cresce, porque o eleitor dele também se sente atacado”, avalia. E acrescenta: “Falando uma besteira por dia para vocês repercutirem, as chances de Bolsonaro certamente aumentam. O que a imprensa ainda não entendeu é que ele é um elemento disruptivo. Ele cresce apostando no caos.”