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    Viaduto Minhocão, em São Paulo, com cartaz de "fora Bolsonaro": os historiadores contarão que, na semana que antecedeu as eleições de 2022, os brasileiros viveram dias de ansiedade permanente Crédito: Ronny Santos/Folhapress

colunistas

Brasil à flor da pele

O pós-Bolsonaro terá Lula mais à direita

Flavia Rios | 27 out 2022_12h17
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Às portas do segundo turno das eleições brasileiras, dois eventos culturais de relevo aconteceram no país, mas não foram notados pela mídia nem pelas redes sociais, porque o clima tenso e extremado da vida política eclipsou qualquer reflexão ou momento contemplativo que a ciência e as artes exigem. Refiro-me ao lançamento do livro PT, uma história, do sociólogo e colunista da Folha Celso Rocha de Barros, e ao documentário Jair Bolsonaro, un autre Brésil, de Ingrid Piponiot e Laetitia Rossi. Lançados na reta final das eleições, esses dois documentos históricos devem ser tomados como interpretações do nosso tempo.

As duas obras não têm qualquer conexão prévia entre si, porém o contexto político as une, bem como a forte preocupação em documentar a história recente brasileira e interpretá-la. Cada uma a seu modo, trazem para o centro da discussão um dos lados da moeda. De um lado, uma história formada por múltiplas histórias de homens e mulheres da “República de São Bernardo” para o Brasil; de outro, um filme que retrata o surgimento de um líder populista de extrema direita numa das maiores economias do Sul global.

O autor de PT, uma história quase escreve um romance político (romance entendido aqui como estilo e não como gênero literário). Narra e interpreta a saga de um partido que nasce fora do Estado, mas coberto pelo manto da Igreja Católica e move-se na política de base da sociedade para as instituições. O autor mostra que o PT, na sua origem, era mais radical que os comunistas; estes tomaram um barco diferente na redemocratização e moveram-se contra a formação do Partido dos Trabalhadores, aninhando-se no PMDB. Longe dos comunistas, o PT construído na análise sócio-histórica de Barros perdeu sua radicalidade na medida mesmo em que adentra a máquina do Estado. Os modos PT de governar – sob Lula e Dilma – são diferentes na forma e no conteúdo, explica o sociólogo carioca, mas não lhes escapa a capacidade de estabelecer diálogo com as bases sociais fora do Estado. O que seria o seu trunfo nas eleições de 2022.

Diferentemente das demais siglas partidárias, o PT de base sindical não possuiria aparelhos dentro do Estado ou dentro do Judiciário ou do Exército ou mesmo dos grandes meios de comunicação. Sua glória também foi sua desgraça: o PT , de DNA basista, teve que retornar às bases populares durante o governo Bolsonaro para se fortalecer contra a extrema direita. Mas para se manter à frente das pesquisas e conter o avanço do bolsonarismo, precisaria fazer acordos nos estratos de cima, não apenas rearticulando as esquerdas políticas, mas especialmente dialogando com os setores liberais, conservadores e das direitas democráticas. Do livro, os personagens pulam para a vida real e concreta, nas ruas, nos noticiários e nas campanhas diárias, nos planos para o futuro. Nunca ler uma história se assemelhou tanto ao fazer a história. Ao ler o livro de Barros, o brasileiro terá dificuldade para saber quando está dentro ou quando está fora da narrativa.

Do livro para o filme, é possível de fato ver um outro Brasil, com uma cara mais conservadora, mais armada e com ideologias antidemocráticas e antiliberais. Entrevistando políticos, jornalistas e influenciadores digitais, como Felipe Neto e Thaís Oyama, o documentário de Ingrid Piponiot e Laetitia Rossi busca contrastar os discursos do governo Bolsonaro ao dos analistas nacionais e estrangeiros. Apresentando ao público francês o cenário da extrema direita no Brasil: seus principais temas, políticas e posições ideológicas. As documentaristas se concentram nas entrevistas realizadas com o senador Flávio Bolsonaro (filho do presidente), Waldir Ferraz (amigo de Bolsonaro) e a ex-ministra Damares Alves, que foram ouvidos e dispõem de longo espaço para explicarem suas posições políticas e trajetória social.

No início de outubro de 2022, o documentário foi exibido na França e em outros países europeus, como Suécia, Suiça e Espanha, além do Canadá. Até então inédito no Brasil, teve exibição há quatro dias das eleições numa sala de cinema em Santa Tereza. O filme contou com rica pesquisa no Brasil, com entrevistas em diferentes cidades e ricos e desoladores cenários das principais regiões e cidades brasileiras. A ideia principal era apresentar ao público europeu as  narrativas e bases sociais da extrema direita e a guinada conservadora no Brasil desde 2018. Por que a tevê pública francesa encomendou esse filme? Qual o interesse do público francês no que acontece no Brasil? 

A resposta para essa pergunta está menos no Brasil e mais no próprio território francês. Com o crescimento da extrema direita francesa e a emergência de políticos controversos como Éric Zemmour, intelectuais e pesquisadores viram muitas semelhanças entre as estratégias e discursos de lá e os daqueles que foram observados no Brasil. Macron foi eleito, a esquerda ficou em terceiro lugar (sem grandes poderes de barganha com o presidente), mas quem ganhou mais espaço foi Marine Le Pen, ultradireitista histórica na França, que ampliou o poder da extrema direita no país. Embora a distância entre eles não tenha sido tão apertada como a que se espera no Brasil, Marine Le Pen registrou votação histórica. Apesar de muitas diferenças entre os contextos políticos dos dois países, há em comum entre eles que a extrema direita cresceu, se institucionalizou e normalizou discursos antidemocráticos.

Assim, o filme sobre o Bolsonaro e seu governo é mais do que uma peça exótica sobre os trópicos, é antes um alerta do que pode vir a ser a França caso embarque completamente no projeto da extrema direita. Com os resultados das eleições presidenciais, Macron teve que se mover mais à direita. Cena não muito diferente se verá no Brasil, caso Lula seja eleito, defende também o autor de PT, uma história.

Na reta final da campanha, o PT ganha mais apoio da antiga direita, a exemplo do ex-presidente Sarney, que declarou voto em Lula. E o partido ganha apoio também da liga de ex-bolsonaristas, liderada por Alexandre Frota. Some-se a aliança com Geraldo Alckmin já presente desde a largada do processo eleitoral. Registre-se além disso o entusiasmo da ex-candidata do MDB, Simone Tebet, na campanha de segundo turno, garantindo com efetividade a transferência de uma grande parcela de seu eleitorado para o Lula. O próprio Lula já acenou ainda mais à centro-direita indicando que o partido não tem como governar apenas com as bases petistas e da própria esquerda – e disse que deverá ser um governo do povo. Como termo polissêmico, entenda-se aí que povo comporta também as próprias elites políticas e econômicas. Ou seja, se eleito, Lula terá um governo que espelhará as forças que se aliaram para derrotar a extrema direita no poder executivo. Não à toa, os companheiros centrais de Lula nesta semana são Tebet e o ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles, representantes de setores do capital fundiário e do capital financeiro, respectivamente.

Na reta final, o PSDB, espremido pela extrema direita, perdeu sua identidade no próprio ninho dos tucanos. Com isso, as eleições para o governo do estado de São Paulo viraram espelho das eleições presidenciais. E os tucanos paulistas se dividiram entre o apoio ressentido a Lula para a Presidência da República e o apoio pragmático a Tarcísio de Freitas (Republicanos) para o governo do estado. Triste erro. Os tucanos brincam de ser democratas. Calculam que com a vitória de Tarcísio poderão se apossar novamente da máquina do estado mais rico do país e se esquecem da sanha bolsonarista em direção ao planalto paulista. Na política dos extremos, PSDB ainda se permite performar ambiguidades. Colocar a perna em cada lado do jogo político em campos extremos é mais do que um passo em falso, pode ser um tombo espetacular.

O clima da reta final se elevou mesmo quando Roberto Jefferson resolveu protagonizar mais uma vez uma cena de terrorismo interno. O homem-bomba recebeu a polícia federal a bala de fuzil. Com um arsenal nada desprezível em casa, Jefferson fez sair do controle as suas ações e até Bolsonaro teve que renegar sua amizade íntima com o ex-deputado.

Como se fosse pouco, ainda na reta final, a campanha de Bolsonaro contratou a empresa Audiency Brasil Tecnologia para realizar auditoria durante o segundo turno do processo eleitoral. Ao TSE entregou nesta semana uma denúncia sustentando a existência de fraude eleitoral na veiculação de inserções de rádio na região Nordeste. A estratégia de política desesperada acabou por ser um tiro no pé, já que nem a empresa tem autorização para tal feito tampouco a denúncia foi marcada pela existência de provas. Em resposta às ações judiciais do TSE contra a proliferação e expansão massiva de notícias falsas nas campanhas eleitorais e em empresas de mídia abertamente bolsonaristas, as direitas voltaram às ruas em protestos contra as instituições judiciárias. E São Paulo tornou-se, mais uma vez, palco das tensões entre a política das ruas e a política institucional nesta última terça-feira.

Com a sequência desses eventos não há razões para acreditar que o clima político do país deixará de ser potencialmente explosivo nos próximos dias. Os estilhaços dos tiros de Roberto Jefferson atingiram muito mais do que os agentes e a corporação policial. O atentado contra as autoridades do Estado demonstra com eloquência o quanto a direita extremista não tem nenhum respeito pelos valores e pelas normas democráticas.

Nos extensos dias que nos separam do 30 de outubro de 2022, não faltarão casos de violência política relatados nas páginas dos jornais e nas redes. Casos emblemáticos desta semana ligam os alertas nacionais. O bispo evangélico Hermes Fernandes declarou deixar o país em razão de perseguição política. O Ministério Público do Trabalho vê aumentar o número de denúncias de assédio eleitoral dos trabalhadores, e o Congresso já pensa numa CPI de crimes eleitorais. Ministério Público vê crescimento de violência política de gênero. Depois de um longo período armada nas redes, a direita voltou às ruas protestando contra o TSE e o STF em plena Avenida Paulista. Com esses antecedentes, ninguém sabe se Bolsonaro respeitará o resultado das eleições. A extrema direita cansou de dar sinais de que é antidemocrática. Suas ações durante o período eleitoral e depois dele dependerão tão somente da correlação de forças políticas, sociais e militares que terão para reencenar ou não o Capitólio norte-americano no Sul das Américas. 

Na longa semana que antecedeu as eleições de 2022, contarão os historiadores do futuro, os brasileiros viveram dias extremos. Ninguém sabia o que de fato iria acontecer, embora as pesquisas acenassem a vitória apertada de Lula. Um misto de ânimo e desespero oscilava várias vezes ao dia na cabeça das pessoas. Pesquisas eleitorais determinavam o humor do dia ou da noite. O tique-taque do relógio nos fazia querer acelerar os ponteiros. A temporalidade da política nos faz viver cada segundo, sentidos a conta-gotas. Independentemente do resultado eleitoral do próximo domingo, a catarse coletiva que emergirá dos estilhaços bolsonaristas ecoará na história do Brasil por gerações – e não apenas em páginas de livros e em roteiros de filmes europeus.