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piauí jogos

    Damares Alves, ao lado da primeira-dama Michelle Bolsonaro, na convenção do Republicanos que lançou o nome da ex-ministra para o Senado - Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

questões eleitorais

“É mentira, mentira, mentira”

Estrela do ultraconservadorismo, Damares Alves, que chegou a ser cogitada para vice-presidente, está cansada e abatida – e mergulhada numa campanha que nunca quis

Monica Gugliano | 23 ago 2022_09h08
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Damares Alves deixara o cargo de ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos havia mais de três meses quando foi chamada para uma reunião no Palácio do Planalto, já no final da tarde de uma segunda-feira de julho. Ela não se sentia bem. Estava incomodada com uma infecção respiratória persistente. A essa indisposição, somavam-se as notícias de que líderes do MDB e do PL do Distrito Federal estavam negociando um acordo que, na prática, moía sua intenção de candidatar-se ao Senado pelo DF pelo Republicanos. Faltava ouvir a posição do presidente Jair Bolsonaro. Segundo o mundinho das intrigas políticas, Bolsonaro dera seu aval à aliança MDB-PL, rifando a candidatura de sua fiel aliada ao Senado. Na conversa no Planalto, Bolsonaro teria lhe pedido que concorresse a deputada federal.

 “É mentira, mentira, mentira”, diz a ex-ministra, garantindo que, na reunião do Planalto, Bolsonaro jamais lhe fez tal pedido. O fato é que, aparentemente, Damares Alves virou candidata a deputada federal pelo Republicanos e, dias depois, em nova reviravolta, voltou a ser candidata ao Senado pelo Republicanos, que fez um arranjo esdrúxulo pelo qual ela concorre ao Senado, um cargo majoritário, sem estar vinculada a uma chapa majoritária. Para Damares, quem a traiu foi o trio formado pelo governador do DF, Ibaneis Rocha (MDB), o ex-governador José Roberto Arruda e sua mulher, Flávia Arruda, a ex-ministra-chefe da Secretaria de Governo de Bolsonaro que é candidata ao Senado pelo PL. Damares tem dito que foi vítima de uma “trama montada com requintes de crueldade”.

O desfecho das negociações não lhe pareceu de todo ruim. Damares afirma que nunca se sentiu confortável com a perspectiva de subir no mesmo palanque que José Roberto Arruda, que já foi preso e apanhado – em vídeo – recebendo pacotes de dinheiro. “Como chamaria o candidato do outro lado a presidente da República de ex-presidiário se eu tivesse um ex-presidiário comigo?” Uma solução prática seria fazer como Bolsonaro, que chama o “o candidato do outro lado” de ex-presidiário, mas não se constrange de subir no palco com Valdemar Costa Neto, o atual presidente do PL que dividiu uma cela na penitenciária da Papuda, em Brasília, com outros mensaleiros.

 

Damares Regina Alves, 58 anos, que chegou a ser cogitada para ser candidata a vice-presidente na chapa de Bolsonaro, anda abatida e cansada – e não esconde seu choque com a voracidade dos companheiros bolsonaristas alojados no Centrão. “Essa atividade político-partidária para mim é muito nova e muito complicada”, diz ela, durante uma conversa com a piauí há poucos dias, em agosto. “Hoje estou meio agoniadinha, meio desanimada, amanhã vou estar bem de novo. É um dia bom, um dia triste, um dia mais cansada, mas amanhã vou estar bem de novo. Vou indo.” Ela chama a política no Distrito Federal de “espetáculo de horror” e diz que Arruda e aliados vivem aos “tapas, xingamentos e baixarias de toda ordem” e nunca discutem propostas.

Sobre Flávia Arruda, sua rival por uma cadeira no Senado, Damares diz: “Ela é uma menina jovem, inteligente, articulada, aprendeu bem esse jogo político. Ainda vai ser uma grande liderança política, independentemente do marido – hoje ela é muito conduzida por ele.” Em casa, diz que tem rezado muito para que, na disputa entre ela e Flávia, “seja feita a vontade de Deus”. Diz que tem conversado com Deus com frequência, sempre pedindo que lhe mostre qual candidatura é mais adequada para “as crianças, os idosos e os que sofrem violências no Distrito Federal e no Brasil”.

Na largada, Damares está em desvantagem. As pesquisas apontam que Flávia está cerca de 20 pontos percentuais à frente, mas Damares acha que tem um trunfo nas mãos para virar o jogo: Michelle Bolsonaro, a mulher do presidente, que é muito sua amiga e está disposta a fazer sua campanha. Quem acredita que Bolsonaro, de fato, não pediu a Damares para desistir da candidatura ao Senado, costuma atribuir a posição do presidente à pressão de Michelle, que ficou bastante irritada com a fogueira da qual sua amiga saiu chamuscada.

As agruras políticas que Damares enfrenta hoje são um aguado contraste com a situação confortável que viveu no último dia em que viajou a bordo de um avião da FAB como ministra.

 

Na manhã do dia 30 de março, Damares estava sentada numa espaçosa poltrona de couro bege do jatinho que a levava para Sete Lagoas, em Minas Gerais, onde a então ministra anunciaria a entrega de novos automóveis para uso do Conselho Tutelar da cidade. No dia seguinte, ela deixaria o cargo de ministra – e estava emocionada. “Eu não queria sair do governo e nem ser candidata a nada”, disse ela à piauí, que a ministra convidou para a viagem. “ Mas cumpro minha missão. O presidente me chamou e disse: ‘Damares, você é muito importante nesta campanha. Preciso de você para ganharmos a eleição.’”

A senhora à minha frente tem olhos e cabelos escuros, usa óculos de armação retangular e gesticula enfaticamente quando fala. Damares não é uma mulher de atitudes, gestos ou palavras contidas. É uma pastora evangélica da Igreja Pentecostal. Dirige-se às plateias com a desenvoltura adquirida em pregações nos púlpitos. Gosta das demonstrações de afeto, sejam elas dirigidas aos colegas do primeiro escalão, aos subordinados ou a desconhecidos. Chora, ri, abraça e beija sem a afetação de algumas figuras públicas e, com essa naturalidade, acaba conquistando uma parte do público, mas sua massa fiel é formada por gente de uma direita ultraconservadora e quase sempre religiosa.

Diante das plateias, como fez na visita a Sete Lagoas, nunca esquece de fazer uma descrição de si mesma para deficientes visuais: “Tenho cabelos pretos lisos e olhos escuros. Uso óculos e estou vestindo uma blusa verde clara e uma calça preta.” Em tom jocoso completa a descrição anunciando-se como “a ministra mais bonita do Brasil”. Arranca risadas e aplausos do público. Em seguida, relata suas tragédias pessoais e, logo depois, a de cidadãos que foram atendidos pelo seu ministério. Acaba comovendo a plateia.

Em Sete Lagoas, diante de umas cinquenta pessoas, discorreu sobre um assunto permanente: violência sexual. Afirma que o Brasil é o “maior produtor de filmes de pornografia infantil”, informa que vídeos “com essas imagens chegam a ser vendidos por 100 mil reais”, denuncia que “bebês com menos de 1 mês são vítimas de violência sexual em casa” e arremata contando o estupro que ela própria sofreu na infância, o que a levou a pensar em suicídio. O acúmulo de histórias vai criando um clima de apreensão trágica, parte do público se emociona. É a pastora pregando. “Falo tudo isso porque sou uma sobrevivente”, diz, mas logo faz questão de afirmar que não é uma vítima. “Mas Bolsonaro não me escolheu para o cargo porque fui uma menina estuprada.

Bolsonaro escalou Damares para ser a voz mais conservadora na área dos costumes, e a ex-ministra não decepcionou. Fez o bom combate à violência sexual, ao feminicídio, ao abuso contra a infância. E não se esqueceu de trabalhar no diapasão ideológico do governo, opondo-se ao aborto – inclusive de crianças grávidas de estupro –, desprezando a laicidade do Estado, provocando liberais com seu “menina veste rosa, menino veste azul” e recebendo críticas da população LGBTQIAP+, a quem não costuma dirigir palavras de solidariedade. Contrariando as previsões de que sua franqueza seria sua derrota política, tornou-se uma personalidade midiática e uma ministra popular. Com um ano de governo, só era menos popular que Sergio Moro, então ministro da Justiça.

Depois de três anos no governo, tinha esperança de permanecer no posto até que Bolsonaro lhe pediu para ser candidata. No seu mundo ideal, Bolsonaro seria reeleito e ela continuaria sua “missão” no cargo, mas acatou a ordem de concorrer. “Foi a vontade dele”, diz. Mas se exaspera com a ausência no ministério e as enroladas negociações políticas que duram meses. “Nesse tempo fiquei de mãos atadas, brigando por política. E, nesse tempo, quantas crianças salvei? Nenhuma. Fui a quantas aldeias indígenas? Nenhuma. E agora queriam me tirar do jogo?” Logo, ela se recompõe e mira na campanha. “Entrei no jogo já no final. Tem tanta coisa para fazer e eu já não sei se vou conseguir atender a todo mundo que quer falar comigo. Não vou conseguir ir a todas as reuniões, falar com todos os grupos”, diz, para completar em seguida: “Vai me dando uma tristeza. Será que vou conseguir falar de minhas propostas para todo mundo?”

Damares diz que será “um palanque ativo e vivo” para Bolsonaro e se regozija da presença de Michelle. Elas se conheceram ainda antes do começo do governo, se aproximaram pela comunhão de pensamentos e pela religião e, segundo Damares, construíram uma relação fraternal ao longo desses anos. Tornaram-se amigas e confidentes. “Às vezes sou mãe para ela, mas outras vezes também sou filha”, diz. No discurso de despedida do ministério, no dia 31 de março, Damares, com a voz embargada, dirigiu-se à amiga: “Minha primeira-dama, foi você! Obrigada por ter acreditado, por ter confiado. Eu volto um dia, e como a ministra polêmica, que colocou as pautas de uma forma polêmica, eu não poderia sair daqui sem dizer que os filhos pertencem às famílias, sem dizer que menino veste azul, menina veste rosa, e quem manda nos filhos é a família! Deus abençoe o Brasil!”

Três dias depois da reunião com Bolsonaro no Palácio do Planalto, à qual compareceu com o incômodo respiratório, Damares foi internada em um hospital de Brasília com suspeita de pneumonia. Fez novas baterias de exames e o diagnóstico inicial apontou uma infecção pulmonar provavelmente causada por um fungo – o Cryptococcus neoformans – que se desenvolve nas fezes dos pombos e contamina o organismo humano pela inalação. A doença pode ser muito grave em pacientes imunodeprimidos. Ela conta que, quando recebeu alta, passou duas semanas sem sair de casa, orando e pedindo a intervenção divina. Agora, se diz pronta para começar uma campanha que não queria, rodeada por gente de quem desconfia e atrás nas pesquisas. Nem sombra daqueles dias felizes da então potencial candidata à vice-presidente.