Ilustração: Carvall
Louvor, fofoca, notícia e fake news
A força de portais e redes sociais evangélicos que, com milhões de seguidores, fazem campanha aberta para Bolsonaro
Às 19h38 do dia 6 de outubro, a caixa de mensagens do portal Gospelmente recebeu um e-mail do Facebook referente a uma postagem feita dias antes. “Olá, devido a um processo judicial, desativamos ou removemos o acesso ao seguinte conteúdo publicado por você no Facebook.” E dava o link da publicação. Mais adiante, a rede social informava: “Tenha em conta que os dados de sua conta podem ter sido revelados às autoridades”, e dava o número do processo instaurado pelo Tribunal Superior Eleitoral a respeito do mesmo conteúdo. Trata-se de um vídeo publicado inicialmente pelo influenciador Vicky Vanilla, que se autodenomina satanista. Ele previa a vitória do PT em primeiro turno e associava o satanismo ao partido de Lula. O Gospelmente reproduziu o vídeo em sua página no Facebook, onde tem 3 milhões de seguidores. O PT entrou com uma representação junto ao TSE para que fossem removidas publicações em sites e redes sociais associando Lula e o satanismo. O TSE determinou a remoção por entender se tratar de fake news.
O Gospelmente tem um posicionamento político-eleitoral bastante claro. “Olha, nós temos compromisso com a verdade, com o nosso público – e o nosso público é formado por 90% de pessoas evangélicas. Eu sou filho de pastor. Se uma pessoa que fala a minha língua e aquelas pessoas que são referência para mim apoiam essa pessoa… É lógico que eu tenho que olhar pra ele e ver uma referência”, justifica o amazonense Gésson Nunes, de 31 anos, criador do Gospelmente, sobre seu apoio editorial e pessoal a Jair Bolsonaro. “Eu tenho plena convicção de que ele não é perfeito, mas sei que está pautado nas palavras de Deus. Eu concordo com tudo? Não. Tenho críticas à forma como ele fala. Mas hoje, ele é o melhor caminho para o Brasil.”
Não se trata de qualquer apoio. Nunes usa a sua força de mídia – 2,5 milhões de seguidores no Instagram, 264 mil no TikTok, 137 mil no Twitter e 89 mil no YouTube, além dos 3 milhões no Facebook – a favor de seu candidato. Uma postagem no Instagram no dia 9 de outubro enaltece os militantes bolsonaristas: “quero parabenizar a todos os cantores, pregadores e influencers evangélicos que estão se posicionando neste período. NÃO TEMOS MEDO DO CANCELAMENTO. NÃO TEMOS MEDO DE PERDER SEGUIDORES (…).” No dia 13 de outubro, no Twitter, o Gospelmente saiu em defesa de Damares Alves: “500 mil pessoas estão passando pano para abusadores de crianças! Esse é o Brasil!!!” O objetivo era criticar a petição online pela cassação de Damares Alves antes mesmo que ela tome posse como senadora. Durante um culto, a ex-ministra de Bolsonaro afirmou, sem provas, que crianças estariam tendo seus dentes arrancados para facilitar a prática de sexo oral, na Ilha de Marajó. Questionado sobre o fato de publicar conteúdos falsos, ele rebate: “Temos muito compromisso com a verdade. Por que eu não posso hoje dizer que o diretor da Nicarágua parabenizou o Lula? Isso é uma verdade, porém é proibido falar”. Para Nunes, tudo que for contrário a Lula pode ser visto como “fake news” pelo TSE e pelo STF.
Descendente de indígenas e nascido filho de pastor da Assembleia de Deus em uma comunidade no município de Anamã, a 162 km de Manaus, Nunes criou o perfil @gospelmente no Twitter em 2012. A página nasceu com o objetivo de fazer humor e memes para o público evangélico. Nunes, que na vida adulta se mudou para Fortaleza para trabalhar em uma igreja, percebeu um comportamento por parte do usuário: ele queria rir de memes e também se informar sobre assuntos variados, como política, economia e esporte. Ao longo da graduação em marketing, ele se deu conta de que o hobby de postar poderia se transformar em um negócio (faturar com publicidade). E, tal como no modelo de negócios dos influenciadores, passou a cobrar cachês por suas postagens. O Gospelmente tem hoje contratos com as gravadoras Sony Music e Universal, cujos catálogos incluem cantores seculares e gospel, e a MK Music, maior gravadora evangélica do Brasil. “Alguns clipes e músicas são lançados exclusivamente por mim”, orgulha-se Nunes. Além de perfis no Twitter, Facebook e Instagram, o Gospelmente lançou em fevereiro deste ano um portal de notícias. Nunes mora há três anos em Curitiba, por ser mais próximo ao mercado publicitário, e hoje frequenta a Assembleia de Deus Vitória em Cristo, liderada por Silas Malafaia.
Formado em Artes Cênicas, o sul-mato-grossense William Aragão, de 31 anos, realizou um estágio remoto e não remunerado no site Bastidores da TV, focado em notícias de entretenimento. Evangélico criado na Igreja Batista e hoje integrante da Assembleia de Deus Missão Pentecostal, seu objetivo era dar espaço e voz aos cantores e artistas gospel. “A mídia secular tem muito preconceito e não cobre quase nada do que acontece no universo evangélico”, justifica ele, que viu no trabalho uma chance de preencher parte dessa lacuna. Após fazer reportagens com diversos cantores para o Bastidores da TV, percebeu que seu caminho estava traçado.
Em 2015, criou no Facebook a página Coisas pra Crente. O objetivo inicial: fazer postagens de humor. Mas, assim como no caso de Nunes, a brincadeira virou negócio. Hoje com 4,5 milhões de seguidores no Facebook e outros 615 mil no Instagram, o Coisas pra Crente se tornou o seu ganha-pão. Pastores e igrejas pagam para divulgar postagens de louvor e mensagens motivacionais. Ele comprou a casa onde mora em Dourados, a 235 km de Campo Grande, graças às redes sociais. Hoje se define como influenciador e, no TikTok, seu perfil pessoal já tem 142 mil seguidores.
A campanha para Bolsonaro está intensa neste segundo turno no Coisas pra Crente. “Dia 30 teremos festa nas igrejas e não nos presídios”, escreveu Aragão no Instagram. Ele conta que a rede social derrubou postagens contrárias ao candidato Lula durante a corrida eleitoral. “Nós, eleitores do Bolsonaro, não temos o direito de expressar a nossa opinião e posicionamento”, explicou em um vídeo. Para além de ser apoiador de Bolsonaro, tem uma questão comercial em jogo: as publicações sobre política têm engajamento 80% maior.
Embora defenda em suas publicações Bolsonaro e a ministra Damares Alves, duas pessoas assumidamente homofóbicas, Aragão diz respeitar a diversidade. Ele justifica. Um de seus melhores amigos é um homem trans. Essa amizade, aliás, já o fez cair na maledicência alheia. Por ter publicado uma foto ao lado do colega seguido da legenda “Te amo”, Aragão virou tema de matéria do portal Fuxico Gospel, que cogitou que ele, o influenciador evangélico, estivesse saindo do armário.
O Fuxico Gospel é um dos sites mais conhecidos do mundo evangélico. A linha editorial, como o próprio nome diz, não trata de louvores nem de fé – mas de fofoca de personagens célebres nos púlpitos Brasil afora. Divórcio de pastores e briga de cantores integram a linha editorial. Em 2017, o Fuxico Gospel deu a seguinte notícia: “Pastor famoso se casou com a esposa do pai. A história tem tudo para ser um bom romance de filmes de ficção, mas é uma das notícias gospel mais polêmicas de todos os tempos.” Tecla SAP do babado gospel: o pastor Patrick Moura se divorciou de sua mulher, Viviane Ribeiro, e passou a viver com Roberta, sua ex-madrasta. Logo depois, abriu a Igreja Evangélica Ministério Influenciando uma Geração, que há três anos mudou o nome para Influchurch. Patrick é filho do bispo Saulo Moura, da igreja Ministério Atraindo as Nações ao Altar de Deus.
“Não somos site de fofoca nem de religiosidade”, já vai logo avisando a advogada e pastora Sentileusa Moraes. Ela fundou a Exibir Gospel em 2009, marca que engloba revista e site, com o desejo de fazer jornalismo de qualidade. Nascida em uma família ligada a um jornal local de Mogi Das Cruzes, na Grande São Paulo, ela sentia falta de um veículo evangélico responsável por abordar temas variados. A revista nasceu para ser publicada seis vezes por ano, mas com a crise do impresso precisou realizar ajustes para sobreviver. Agora, só envia para a gráfica uma edição quando tiver anunciantes cobrindo todos os custos. Neste ano, foram impressas duas edições, cada uma com tiragem de 10 mil exemplares.
Criada na Congregação Cristã do Brasil e com passagens pela Assembleia de Deus de Madureira, há sete anos Moraes fundou sua própria denominação evangélica, chamada Ministério Curando Vidas. Ela e seu veículo de comunicação são também assumidamente bolsonaristas. “A minha preocupação é que o PT não volte nunca mais. Eu acredito piamente que o PT causou um dano para o nosso país. Não consigo entender o que muitas pessoas não enxergam”, diz. No dia 13 de outubro, a homepage da Exibir Gospel exibia matérias como “André Valadão e Nikolas Ferreira são alvos de ataques da esquerda”, “Esquerdista ameaça matar Damares Alves” e “Record é alvo de ataques de hackers pela segunda vez em poucos dias”. Nunes, Aragão e Moraes repetem em coro: a imprensa secular vira as costas para o mundo evangélico – seja ignorando completamente os assuntos ligados a esse universo ou fazendo uma cobertura enviesada e preconceituosa. “Os jornais e sites seculares acham que os evangélicos não têm muita cultura, são todos burros. Pensam que só sabemos ler a Bíblia”, diz Moraes.
Para além da cruzada política em prol de Bolsonaro, muitos desses sites apelam para conteúdos de desinformação, mostra o Coletivo Bereia, que reúne pesquisadores especializados na checagem de portais voltados para a audiência evangélica. “Sites como Gospel Prime e Pleno News têm alcance enorme e, também, são os que mais publicam fake news”, diz Magali do Nascimento Cunha, editora-geral do Coletivo Bereia e doutora em Ciências da Comunicação. Cunha diz que, até 2013, os veículos religiosos basicamente abordavam temas intramuros, ligados à vida interna das igrejas. As pautas diziam respeito a louvores, músicas e agenda de pastores. Desde essa época, porém, notícias relacionadas à perseguição contra cristãos (como os evangélicos preferem ser chamados) já atraíam a atenção dos leitores.
Em 2013, manifestações contra o aumento de passagens de ônibus tomaram as ruas de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. A partir de então, pautas relacionadas à política e à economia passaram a dominar os sites evangélicos. Essa cobertura ficou mais intensa com o surgimento da Operação Lava Jato e do processo de impeachment de Dilma Rousseff. “Quando Jair Bolsonaro se lançou candidato à Presidência, automaticamente passou a ser reverenciado por esses espaços. Primeiro, fizeram campanha para ele vencer; depois, se tornaram canais oficiais de comunicação. Sempre com a veiculação de muitas mentiras”, diz Cunha. “De dois anos para cá, os sites deixaram de adotar o termo evangélico”, explica ela. De olho em uma audiência maior, portanto mais cliques e faturamento, a estratégia discursiva implica em adotar o termo ao mesmo tempo genérico e amplo “cristão”. “Assim, os sites dialogam também com católicos e uma parcela do público espírita.” A mesma palavra foi incluída no discurso político.
A ligação da Pleno News com a família Bolsonaro vai além da fé e da ideologia. O site pertence ao Grupo MK, dono de um império gospel que inclui gravadora (MK Music), rádio (93 FM) e editora de livros (MK Books). O fundador da empresa foi Arolde de Oliveira, nome tradicional da direita fluminense eleito senador em 2018 na onda bolsonarista depois de nove mandatos consecutivos como deputado federal. Oliveira morreu em 2020 de Covid. A MK Network, especializada em administrar redes sociais de personalidades, é responsável por cuidar do canal de YouTube do senador Flávio Bolsonaro desde agosto de 2018. Procurados pela piauí para comentar sua ligação com Flávio e o valor do contrato do senador com o grupo evangélico, Grupo MK e Flávio não se manifestaram. Os sites Gospel Prime e Fuxico Gospel foram procurados, mas não responderam.
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