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    Ilustração: Carvall

colunistas

Lula terá de reconstruir país a partir dos escombros deixados por Bolsonaro

Politização das forças de segurança é um dos elementos que tornam o novo mandato um dos mais difíceis desde a redemocratização

Pablo Nunes | 01 nov 2022_07h00
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Comecei a escrever estas primeiras linhas no calor dos últimos dias da campanha eleitoral, após o debate da TV Globo. Foram semanas intensas até o resultado das eleições na noite de ontem, 30 de outubro. Chegaram às urnas dois projetos de país, um baseado fundamentalmente na construção democrática do país, reunindo até os antigos adversários políticos, e outro que precisava da chancela das urnas para continuar seu plano autoritário de desmantelamento do estado democrático. Os eleitores decidiram, e os próximos quatro anos serão de reconstrução dos escombros deixados pelo governo de Jair Bolsonaro.

Apesar do orçamento secreto e dos bilhões de reais despejados durante as eleições, das PECs aprovadas pelo Congresso que desequilibraram sobremaneira a disputa a favor do candidato da situação, apesar de toda a violência política fermentada nesses últimos anos que fez com que apoiadores de Lula tivessem medo de expressar sua posição, do aparelhamento de instituições de Estado, como a Polícia Rodoviária Federal (PRF), apesar de tudo, os eleitores escolheram pôr um fim na trajetória de Bolsonaro na Presidência.

Afora as questões criminais, que Bolsonaro precisa enfrentar para que a justiça brasileira mantenha um mínimo de respeitabilidade, os quatro últimos anos impuseram retrocessos que ainda não se podem medir completamente. 

O aparelhamento das instituições brasileiras precisará ser colocado como uma das primeiras tarefas do novo mandatário. Sem dúvida, a Polícia Rodoviária Federal representa de maneira mais completa como uma instituição de Estado pode ser desviada de seus deveres constitucionais para perseguir desejos do governo de turno. 

Vimos nos últimos anos sinais claros de que a PRF pouco a pouco se transformava em uma força policial a serviço do presidente. A força policial que se notabilizou, infelizmente, pela morte de Genivaldo após sessão de tortura em maio deste ano, conduziu de maneira inesperada diversos bloqueios de estradas que acabaram por dificultar a chegada de eleitores aos seus locais de votação. As ações, metade delas no Nordeste do país, estavam em completo desacordo com a decisão do TSE que proibiu esse tipo de ação durante a votação.

Em entrevista coletiva, o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, se apressou em dizer que não havia até ali nenhum sinal de que as ações da PRF impactaram no exercício do direito ao voto dos eleitores. Porém, já é sabido que cinco dos dez estados com maior número de veículos parados pela polícia viram seus níveis de abstenção superarem a média nacional

 

Os anos de Bolsonaro no comando do Planalto foram marcados também pela explosão no número de armas em circulação no país, ao mesmo tempo em que o controle desses armamentos foi afrouxado. Segundo Bruno Langeani, do Instituto Sou da Paz, o que Lula herdará de Bolsonaro é o “pior dos mundos para o controle de armas”. Todos os efeitos dessa política ainda serão sentidos pela população, mas já há mostras do que a política armamentista legou ao país. Os CACs (colecionadores, atiradores e caçadores) já possuem arsenal de 1 milhão de armas, número que supera o armamento de todas as polícias militares e civis do Brasil. Aqui e acolá já surgem diversos casos de CACs com ligações estreitas com a criminalidade, como no Rio, onde já há registro de atuação desse grupo nas milícias. Além de aumentar em número, as armas que os CACs colocaram nas mãos da criminalidade também são mais potentes e modernas, segundo Cecília Olliveira.

A violência política fomentada pelo bolsonarismo foi turbinada por essa montanha de armas que entraram em circulação no Brasil. Segundo dados da Justiça Global, em 2022 foi registrado um caso de violência política a cada 26 horas. Em 2018, a média era de um caso a cada oito dias. São histórias que se interrompem e projetos de país que são interditados pela violência. O caso do apoiador do PT morto durante sua festa de aniversário em Foz do Iguaçu é o retrato da regressão civilizatória a que assistimos nesses anos.

O atentado de Roberto Jefferson contra policiais federais que buscavam cumprir mandado de prisão expedido em seu nome produziu efeitos negativos para a campanha de Bolsonaro, mas, principalmente, deu um péssimo sinal de como esses setores radicalizados podem se comportar nos próximos anos. A cena de Carla Zambelli correndo atrás de um homem negro, apoiador de Lula, com arma em punho pelas ruas de São Paulo também se soma a esse ambiente de violência homicida que bolsonaristas chamam de “liberdade”.

Outra marca que os quatro anos de Bolsonaro deixou ao país foi o afastamento determinante do governo das periferias e favelas brasileiras. Durante o início das medidas de isolamento postas em curso por conta da pandemia de coronavírus, as favelas e bairros pobres do país se viram solitárias em suas medidas para prevenir a expansão do vírus no território. O governo federal pouco fez para que itens de higiene fundamentais chegassem até a casa dos que mais precisavam. Coube à sociedade civil se organizar para promover o acesso a ferramentas de prevenção, como álcool em gel, sabonetes e máscaras de proteção, à casa dos mais humildes.

A omissão, por um lado, foi acompanhada de operações policiais frequentes e letais. Sob a condução de Cláudio Castro, o Rio de Janeiro registrou as operações policiais mais letais de toda sua história. A barbárie foi recebida com normalidade pelo governo, tanto federal quanto estadual, e foi até mesmo justificada. Hamilton Mourão, vice-presidente e senador eleito, se adiantou em dizer que os mortos na chacina do Jacarezinho eram “todos bandidos”

O impulso rápido do bolsonarismo de enquadrar todo morador de favela como um criminoso ficou marcado pelas reações à visita de Lula ao Complexo do Alemão. O presidente repetiu diversas vezes que não entendia como o presidente eleito entrava em favelas sem policiais e também o acusava de se reunir com traficantes. O descolamento da realidade das favelas é tão abissal que ao verem Lula com a sigla “CPX” na cabeça logo começaram a espalhar que as três letras se referiam a um grupo do tráfico de drogas. Essa postura tem outro nome: racismo. 

Apesar de todas as ilegalidades cometidas, Bolsonaro perdeu as eleições. Isso não quer dizer que tudo o que destruiu nesses últimos quatro anos e todo ódio que espalhou pela sociedade brasileira irá se desfazer na virada do ano. A politização das forças de segurança, a circulação desenfreada e descontrolada de armas e munições e a criminalização das favelas tornará o novo mandato um dos mais difíceis desde a redemocratização. O governo de Lula terá uma tarefa gigantesca para os próximos quatro anos, enfrentando os problemas herdados sob pressão dos bolsonaristas eleitos para Câmara, Senado e governos estaduais. Será preciso que a ampla coalizão que o apoiou durante as eleições esteja dedicada à tarefa de auxiliar o presidente eleito a recolocar o Brasil no trilho da democracia e justiça social.