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    Ilustração: Carvall

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Mamãe faz 200 anos

No bicentenário da independência, a escravidão como herança e uma música para presentear a aniversariante

Marcelo Paixão | 30 ago 2022_08h19
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Após a Revolução de 1789, os franceses passaram a identificar sua pátria e seus valores de igualdade, liberdade e fraternidade com uma mãe representada pela figura de Marianne, uma mulher do povo. Essa imagem da nação como mãe iria progressivamente se consolidar por todo mundo. Não por coincidência, o hino brasileiro, composto por Joaquim Duque Estrada e Francisco Manuel da Silva, talvez em seu momento mais emotivo nos evoque o Brasil como uma “mãe gentil”. De qualquer forma, o título deste artigo também remete ao filme dirigido pelo diretor espanhol Carlos Saura, Mamãe Faz Cem Anos, lançado em 1979. Através da figura de uma matriarca, o roteiro faz uma analogia com a Espanha vivendo seus primeiros anos livres das garras do generalíssimo Francisco Franco.

Pois bem. A velha senhora chamada Brasil também faz aniversário, completando 200 anos de vida independente. Motivos para celebrar? Decerto. Dentro ou fora de suas fronteiras, por que não ficar comovido com o aniversário do próprio país, depositário de nossas mais cálidas memórias e vivências afetivas, assim como de nossas mais encorajadoras angústias, apuros e aflições?

Contudo, ao contrário de pessoas, países devem ser pensados para além de bolos e carnavais. Em nada ajudaria à senhora aniversariante lhe dizer que está tudo bem. Não está. O melhor presente que seus filhos e filhas poderão lhe dar, portanto, é a lucidez e a serenidade. Duzentos anos após o “Grito do Ipiranga”, uma lembrancinha que remeta às razões de termos parado nesse brejo melancólico, que combina depressão econômica, estagnação social e um pestilento cheiro de ódio vindo das ondas da Internet e se espraiando por logradouros, ruas e instituições. A história é construída pelas pessoas, e se é bem verdade que a nossa poderia ter sido muito diferente, o fato é que ela não foi. Por quê?

Nos anos 1940, o intelectual austríaco Stefan Zweig, exilado em Petrópolis, tentou nos elogiar através do epíteto de “país do futuro”. Mas desde aqui do futuro, talvez tenhamos razões para uma pontinha de inveja daqueles que lutaram pelo dia Sete de Setembro de 1822, que ao menos tiveram o gosto de se perguntar qual seria o futuro deste país recém criado. Assim como aqueles que tiveram a honra de estarem no vibrante 1922. O que mais dizer de um centenário marcado pela Semana de Arte Moderna, o começo da luta pelo voto feminino, a Revolta dos Tenentes, a heroica marcha dos 18 do Forte, a Coluna Prestes, a fundação do Partido Comunista e o avanço do movimento negro, especialmente em São Paulo? Se muitas dessas esperanças eram infundadas ou equivocadas, isso não importa tanto neste momento. O fato é que ali se desenharia o jogo político do país pelas próximas décadas.

Seria verdade dizer que em 2022 há um clima de total desesperança no ar? Não creio que tenhamos chegado tão baixo. Ainda seguimos possuindo mídia livre, movimentos sociais independentes e uma oposição política expressiva com seu principal candidato apresentando efetivas chances nas vindouras eleições de outubro. Mas certamente seria um não menor hiperbolismo supor que estejamos completando o nosso segundo século voando em céu de brigadeiro. Temos vários indicadores socioeconômicos disponíveis para exemplificar essa observação, que de resto é quase autoevidente. Todavia, ficar lendo estatísticas em plena festa de aniversário parece chato. Se a nação é realmente uma mãe, falemos portanto um pouco de seus filhos. E dos descaminhos daquilo que se entende como nossa identidade nacional.

O fim da Guerra Fria sugeriu que o Estado-Nação perderia sua força. Pensando sob a lógica da internet e do capital financeiro, isso tem lá seu fundo de verdade. Mas a tal “dona” globalização – imaginando que os leitores me permitam usar este termo assim tão livremente – está longe de ter transformado o planeta numa grande família universal. A esquerda mundial andou chiando bastante, mas na falta de um projeto coerente aplicável aos dias atuais, quem realmente segurou esse bastão com garra e vontade foi a extrema direita, que de modo agressivo e xenófobo se diz antiglobalista. Com isso, o Brasil tornou-se um dos principais vórtices planetários do discurso de ódio e intolerância étnico-racial, de classe, de gênero, ambiental e religiosa. Contudo, a questão que fica pairando no ar é se sozinha a globalização responderia pela estupidez reinante no país, onde um número expressivo de compatriotas insiste em desacreditar o conhecimento científico, deixa de se vacinar e vacinar seus filhos, concorda com a absurda devastação da Floresta Amazônica e acredita que que sua vontade deve prevalecer através da força bruta. Porém, no caso brasileiro, o crescimento da extrema direita parece vir temperado com uma amarga especiaria cultivada em solo pátrio desde muito tempo atrás.

 

Pousando em 2022, a máquina de calcular da história nos mostra que um terço de nossa bissecular caminhada como país soberano ainda carrega a cicatriz do verdugo da escravidão. No seu marcante O Abolicionismo, publicado em 1883, Joaquim Nabuco disse que aquele regime era a marca do “nosso temperamento, a nossa organização toda, física, intelectual e moral”. Não bastava acabar com a escravidão, dizia Nabuco, era necessário encerrar sua obra. Nosso país já abrigou notáveis esquerdistas e revolucionários. Mas talvez nenhum deles tenha chegado a tão radicais e preciosas definições.

Naturalmente, falar da moderna identidade nacional brasileira evoca Gilberto Freyre e sua copiosa obra, a começar pela mais conhecida Casa Grande & Senzala. O português surge como um colonizador ávido por riquezas, mas concomitantemente tolerante, plástico e flexível. Através da miscigenação, ou da “grande porra fundadora”, como diria sugestivamente, em tradução livre, a antropóloga norte-americana Angela Gilliam, eles teriam progressivemante integrado indígenas e negros às hostes da comunidade nacional. Dali emerge uma ideia derivada. A de que o Brasil não abriga consciência racial nem sentimentos racistas, no máximo um leve preconceito de cor. Falar da obra de Gilberto Freyre em um parágrafo seria como falar da história gloriosa do meu Botafogo ou da minha Portela em apenas um livro. Não dá. Mas que fiquem aos leitores as seguintes perguntas: pode uma nação se dizer indiferente à ideia de raça e se orgulhar de uma democracia que, afinal, seria racial? Como poderia uma sociedade supostamente infensa à ideologia racialista sublinhar tanto o valor de sua mestiçagem? Afinal, a palavra mestiço não implica no cruzamento de pares de raças distintas? 

Freyre, assim como o conjunto da geração modernista brasileira, imaginou que a ideologia da mestiçagem bastaria para um projeto revigorado de Estado-Nação. O sociólogo pernambucano frequentemente citava Nabuco em seus textos. Decerto pelo tanto que o admirava. Mas quiçá também para exorcizar um fantasma. Tal como no Sangue Latino cantado pelos Secos e Molhados, os ditames de nossa “alma cativa” acompanharam nosso processo de transformação socioeconômica ao longo do século passado, especialmente entre 1930 e 1970. Para além de um projeto de Estado-Nação, a narrativa da democracia racial proviu um poderoso combustível ideológico para um projeto de desenvolvimento dependente, periférico e conservador de nossas hierarquias étnicas e raciais. Exagero?

Fernando de Azevedo, em seu consagrado A Cultura Brasileira, primeiramente publicado em 1944, sem maiores pechas proclama: “A admitir-se que continuem negros e índios a desaparecer, tanto nas diluições sucessivas de sangue branco como pelo progresso constante de seleção biológica e social e desde que não seja estancada a imigração, sobretudo de origem mediterrânea, o homem branco terá no Brasil, o seu maior campo de experiência e cultura nos trópicos.” Ora, se um pensador progressista que tantas contribuições legou em prol do ensino público no Brasil portava esse tipo de mentalidade, o que dizer dos que não eram assim tão inclinados à democracia? Décadas antes, em seu Populações Meridionais do Brasil, publicado em 1918, Oliveira Viana, um pensador influente no Brasil até o final da Segunda Guerra, foi direto ao ponto: “Parte desses mestiços, sob a influência regressiva dos atavismos étnicos, é, com efeito, eliminada pela degenerescência ou pela morte, pela miséria moral ou pela miséria física.”

O Brasil chegou a 2010 abrigando  no entorno de 900 mil indígenas. Em 1500, estima-se que formassem 5 milhões de pessoas vivendo no que é hoje o território nacional. Entre 1872 e 1991 o peso relativo dos pretos na população nacional caiu progressivamente de 11%, para 5%, só voltando a crescer a partir de 2000. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que 43.171 brasileiros foram assassinados por forças policiais entre 2013 e 2021. Neste último ano, entre as vítimas que tiveram sua cor ou raça identificadas, 84,1% eram pretas ou pardas, um percentual que fundamentalmente vem se mantendo desde que a série começou a ser coletada. Não é muito prudente se subestimar projetos de limpeza étnica quando proclamado a sério por pessoas poderosas e influentes.

 

Nosso maestro Tom Jobim teria dito que o Brasil não era para principiantes. Ter sido amamentada por uma senhora de pele escura é um traço distintivo da história da elite branca brasileira. Qualquer sorte de trabalho manual em nosso país é considerado pelos filhos e filhas da aristocracia nacional (na verdade, alguns nem tão aristocratas assim) como um perigosíssimo traço de indistinção social. No Brasil atual, o emprego doméstico é a profissão de quase 11 milhões de pessoas. Entre as mulheres ocupadas, 13% são domésticas, e dessas, praticamente dois terços têm a cor de pele preta ou parda. Um verdadeiro regimento à disposição dessa rapaziada bonita e jovial que ignora como se frita um ovo, como se passa uma roupa ou se limpa um banheiro, de resto algo tão recorrente para um jovem, inclusive universitário, mundo afora. No Brasil, ao contrário do Haiti do final do século XVIII ou dos Estados Unidos da Guerra Civil (1861-65), jamais ocorreu um movimento dos antigos escravizados que colocasse em questão a ordem social vigente no plano nacional. Por que tratar mal o Zé Povinho, a malta de pele escura (e os de pele mais clara que por algum motivo resolvem viver entre eles), se ele forma uma massa fundamentalmente obediente, iletrada, malnutrida, analfabeta e inerme? Essa gentalha é apenas repugnante e perigosa, mas não há motivos para ojeriza. Aos olhos daquela elite, sabendo onde é o seu lugar, os pretos e os pardos não precisam ser tratados com ódio, mas apenas com cordial desprezo. Luiz Melodia, nosso negro gato, parecia mesmo sacar as coisas quando dizia que “o couro que me cobre a carne não tem planos”.

Para a oligarquia patropi a paz pública seria ameaçada caso a “negrada” fosse deixada ao livre governo de seus instintos. Todavia, se calada e obediente, ela até poderia ser apreciada, ou mesmo antropofagicamente apropriada, tal como as manifestações culturais e artísticas do samba e da capoeira. Afinal, meio a contragosto, o baronato brasileiro tinha que reconhecer que aquele era o seu povo. Muito bonito isso. Talvez o motor da democracia racial brasileira. Porém, forjando uma improvável parceria entre Joaquim Nabuco e Luiz Melodia, a pergunta que paira é: na terra onde a escravidão é a indelével marca da identidade nacional, o que ocorre quando os negros gatos não se comportam direitinho? Ah, amigo leitor, minha editora na piauí vem se preocupando muito com o tamanho dos meus textos. Corre lá para internet (ou para sua estante de livros se ainda a tiver) e abra um bom Atlas da história brasileira. A resposta está lá.

A festa está para começar e cerca de um em cada cinco filhos da velha senhora chegará ao convescote dos 200 anos portando muita maldade no coração. Que feio, né? Mais uma vez reportando aos termos da minha Lenda da Modernidade Encantada, o preço a ser pago pelo povo preto e pardo para ter um tratamento menos agressivo por parte de suas elites era suportar a moeda do desapreço. Se esse equilíbrio é ameaçado, emerge o tempo da cotovelada. Conflito gerado não pelos de baixo que, vamos e convenhamos, não estão pedindo nada de mais. Mas pelos grã-finos, pelos bacanas. Não sou o único a falar sobre isso. Em artigos mais recentes e com argumentos não menos originais, a professora Patrícia Pinho, da Universidade da Califórnia, Santa Cruz, vem abordando as razões que levaram a Casa Grande a surtar, tal como em suas palavras.

Não é imaginável que seja mera coincidência que a classe média e alta brancas tenha vindo com tudo para as ruas, literalmente para botar e quebrar, um ano depois da aprovação da Lei das Cotas nas universidades federais em 2012 e no contexto de aprovação da lei de proteção ao emprego doméstico um ano depois. Com todo respeito aos que se somaram às mobilizações de 2013, no seu início buscando causas justas tal como me foi muito bem lembrado por meu querido professor da UFF Marcelo Parada Figueiredo. No decorrer daquelas manifestações, veio crescendo a indignação contra o subversivíssimo fato de que a gentalha pudesse viajar de avião, ir a um restaurante um pouco mais caro ou frequentar algum espaço cultural descolado. A reclamação de que o preço dos serviços manuais de cada dia, outrora aviltantes, tinha ficado insuportável. Ah, eles foram longe demais!

E com isso lá vem chumbo na Marielle, no Anderson, no Bruno, no Dom, na nossa juventude negra e nos nossos indígenas. Soltem-se os cachorros e que venha o pé na porta na casa de favelados e gente humilde. Tortura e morte de moradores da periferia em porta-mala de carros transformado em câmara de gás por psicopatas disfarçados de policiais rodoviários. Despudoradamente, na frente de todo mundo. Daí chegamos aos aplausos por parte de muitos aos que celebram assassinatos encomendados e aos que destroem placas e monumentos erigidos em suas memórias. E com isso lá vem o sorriso nazistoide aos desatinos do atual mandatário que trouxe por sequela centenas de milhares de mortes evitáveis pela Covid, pela violência policial e pela fome. Desalinhos da globalização? Seguramente. Mas seria incorreto não reconhecer que isso também foi gerado pelos seculares rancores do “Brasil profundo”. É esse que “gosta de mandar dar surra”, tal como nas palavras do insuspeito Freyre. É do âmago deste país secularmente injusto que parte a ordem para puxar o gatilho. 

Mamãe Faz Cem Anos traz no enredo a visita de Ana, uma antiga babá, e seu marido, à casa onde havia trabalhado alguns anos antes, visando a celebração do centenário da matriarca. Os filhos e netas da centenária senhora, econômica e moralmente falidos, ao mesmo tempo que a adulam, tramam em suas costas um plano para envenená-la e se apoderar de sua chácara e casa que seriam posteriormente vendidas, loteadas e demolidas. O filme é antigo e me perdoo se conto seu final. Com a ajuda de Ana, a senhora termina o filme viva. E dessa condição, agrega ao seu redor seus filhos e netas – ali alegoricamente personificando os empresários, o exército e a igreja – para lhes dizer algumas verdades: “Quanta besteira, quanta estupidez, quanta mesquinharia, quanto egoísmo, quanto sacrifício inútil.” É um filme já antigo e meio sonolento, reconheço. Mas um dos finais mais bonitos a que já tive a oportunidade de assistir.

O Sete de Setembro é dia de festa, e os brasileiros são conhecidos por gostarem de uma bagunça. Temos razões de sobra para celebrar a força das tradições culturais de nossa gente e sua longa história de resistência e luta, seguramente nosso maior patrimônio e legado destes 200 anos que ora se completam. Como diz Jurema Werneck, “nossos passos vêm de longe” e, comparado ao modo como uma boa parte de nossos antepassados chegaram a este país, no porão fedorento e escuro de um navio, nossa situação atual até parece confortável. Teve muita gente que tombou antes de nós para que não chegássemos a 2022 em um quadro ainda pior. E é dentro desse espírito que este artigo finda.

Um dia o Brasil será de verdade a generosa mãe gentil de cada um dos 213 milhões de brazucas que vivem no Brasil ou espalhados, como o autor destas linhas, por esse mundão de meu Deus. E como é sempre recomendável vir a uma festa de aniversário trazendo uma lembrancinha, para a aniversariante deixo como recordação uma música. Bem Baixinho. Composta por Luiz Tatit e comoventemente cantada pelo seu autor e por Geraldo Leite, ambos do Rumo, um grupo musical da antiga. Lá da minha saudosa, de nossa desvairada Sampa. Por incompreensível injustiça, nunca a ouvi tocar no rádio. Suave, é uma canção que evoca os motivos para nos sentirmos à vontade e com ânimo nos festejos da bicentenária matriarca.

 “E essa nação é assim com todo mundo, grandalhona, meio velha mas uma musa e tanto. E quando você menos espera ela diz: ‘Estou livre outra vez.’”

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Texto atualizado em 10 de setembro de 2022.