Ilustração: Carvall
Nos estados, continuidade rumo à direita
Dezenove governadores disputaram a reeleição e doze já se elegeram no domingo; sete vão ao segundo turno
o primeiro turno da corrida eleitoral para os governos estaduais mostra uma tendência de continuidade. Em 19 das 27 unidades da federação, governadores disputaram a reeleição neste domingo. Desses, 12 levaram já no primeiro turno e 7 vão para o segundo. “Historicamente, quem disputa a reeleição é favorito. Então, faz sentido que governadores razoáveis se mantenham. O contrário geralmente acontece onde eles são muito mal avaliados ou onde existiram erros de articulação”, diz o cientista político Cláudio Couto, professor da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo.
No Rio de Janeiro, a disputa acabou no primeiro turno com Cláudio Castro (PL) reeleito. Segundo Couto, apesar de ter se distanciado da figura de Jair Bolsonaro na campanha, Castro pode ter se beneficiado por ser da base do presidente no estado onde o bolsonarismo apresenta um desempenho melhor. Marcelo Freixo (PSB), mesmo com o apoio de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), alcançou menos de 30% dos votos. “O Rio também tem o maior eleitorado evangélico do país, e Castro vai melhor nesse ambiente, o que pode ter lhe dado essa vantagem.”
Em Minas Gerais, o segundo maior colégio eleitoral do país, Romeu Zema (Novo) também se reelegeu no primeiro turno com votação expressiva. Apesar de Lula ter garantido a maioria dos votos no estado para a corrida presidencial, seu candidato ao governo, Alexandre Kalil (PSD), não emplacou. “Muitos eleitores votam de maneira diferente para o governo estadual e para a Presidência porque levam em conta as necessidades e os problemas locais”, diz Couto. Em 2018, Zema apoiou o discurso antissistema de Bolsonaro, mas dessa vez procurou se afastar do bolsonarismo durante a campanha, valorizando os resultados da sua gestão. “Zema se consolidou não só como um governador bem avaliado, mas como um político profissional. Isso mostra que a onda dos outsiders acabou. Eles não são mais novidade”, diz o cientista político.
No primeiro turno, São Paulo foi a exceção na tendência de continuidade entre os maiores colégios eleitorais do país e o que mais refletiu a polarização da disputa nacional. O candidato do Republicanos, Tarcísio de Freitas, teve mais de 40% dos votos e vai disputar o segundo turno à frente do candidato do PT, Fernando Haddad. Conforme a avaliação de Couto, a candidatura de Lula pode impulsionar a de Haddad e colocar o PT numa situação inédita, com chances reais de vitória em São Paulo. Por outro lado, a rejeição ao PT também pode acabar dando tração à candidatura de Tarcísio, que já teve um bom desempenho no primeiro turno. Ele se transformou no candidato das elites e surpreendeu na reta final da campanha – até a véspera da eleição, aparecia em segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto.
Mas a vinculação de Tarcísio à figura do presidente Bolsonaro, de quem foi ministro da Infraestrutura, também pode tornar a campanha do candidato mais difícil, segundo a avaliação de Couto. Especialmente porque ele é visto como um candidato “forasteiro”, que não tem histórico político em São Paulo. “Apesar de tentar se colocar como um quadro técnico, Tarcísio pode ser lido pelo eleitorado como um peão do bolsonarismo, que vem a mando de uma liderança nacional. Isso, claro, lhe garante um piso [de votos dos apoiadores de Bolsonaro]. Mas também lhe impõe um teto imposto pela parte do eleitorado que rejeita Bolsonaro no estado”, diz Couto. Para ter chances de vencer, ele precisa atrair também os eleitores de centro, que não se identificam com o bolsonarismo. Na avaliação do cientista político Marcos Nobre, presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), São Paulo será o principal campo de batalha no segundo turno. “A situação é muito preocupante”, afirmou ontem no Foro de Teresina Ao Vivo. No estado de São Paulo, Bolsonaro conseguiu ficar à frente de Lula com quase 48% dos votos, ante 41% conquistado pelo petista.
A confusão sucessória dentro do PSDB produziu uma situação difícil para o candidato do partido em São Paulo, Rodrigo Garcia, que ficou em terceiro lugar e está fora da disputa. Dos pleiteantes à reeleição, ele foi o único que não obteve sucesso. Mais do que isso: desde 1994, é a primeira vez que os tucanos não vão ao segundo turno no estado. “É um marco absurdo na história política nacional”, avalia a cientista política Camila Rocha, pesquisadora do Cebrap e autora do livro Menos Marx, Mais Mises: o Liberalismo e a Nova Direita no Brasil. “Pensando no peso que o PSDB tinha para o país, o fato de ficar fora da disputa no seu reduto tradicional é muito relevante.”
O PSDB, desidratado, tem representantes no segundo turno em apenas quatro estados. Em Pernambuco, Raquel Lyra enfrentará Marília Arraes (Solidariedade) no fim do mês. Na Paraíba, Pedro Cunha Lima disputará contra João Azevêdo (PSB) e, em Mato Grosso do Sul, Eduardo Riedel enfrentará Capitão Contar (PRTB). No Rio Grande do Sul, Eduardo Leite por pouco não ficou em terceiro lugar. Numa votação apertada, ele garantiu vaga no segundo turno e disputará o governo do estado com Onyx Lorenzoni (PL), ex-ministro de Jair Bolsonaro, que teve quase 40% dos votos.
“Com franqueza, quando olhamos as candidaturas estaduais, é um quadro favorável ao Bolsonaro no segundo turno, com a vitória de Zema em Minas, de Cláudio Castro no Rio, e a disputa de Tarcísio em São Paulo e Onyx no Rio Grande do Sul”, avaliou o cientista político Sergio Fausto, diretor-executivo da Fundação FHC no Foro de Teresina Ao Vivo. Com candidatos ligados ao bolsonarismo nos principais colégios eleitorais do país, alguns inclusive já eleitos, o presidente pode aproveitar os palanques para melhorar seu desempenho no segundo turno – o que dificulta a candidatura de Lula. “O Brasil dobrou à direita em 2018 e aquilo não foi uma coisa episódica. O país dobrou a aposta agora”, disse Fausto.
A reeleição de governadores no primeiro turno ocorreu em nove unidades federativas, além do Rio de Janeiro e Minas Gerais. No Paraná, Ratinho Junior (PSD) liquidou a disputa, assim como Helder Barbalho (MDB) no Pará, Fátima Bezerra (PT) no Rio Grande do Norte, Ronaldo Caiado (União Brasil) em Goiás, Carlos Brandão (PSB) no Maranhão, Wanderlei Barbosa (Republicanos) no Tocantins, Gladson Cameli (PP) no Acre, Antonio Denarium (PP) em Roraima, Mauro Mendes (União Brasil) em Mato Grosso e Ibaneis Rocha (MDB) no Distrito Federal.
Em outros sete estados, os atuais governadores vão ao segundo turno e, portanto, ainda têm chance de vencer. “Desta vez, as pessoas simplesmente não buscaram trocar o certo pelo duvidoso. Por isso é uma eleição mais típica”, diz Cláudio Couto. Segundo ele, a avalanche do discurso antipolítica e antissistema de 2018 não se repetiu porque o cenário agora é diferente, o que levou a menos rupturas nos executivos estaduais. De acordo com os especialistas consultados pela piauí, há razões para isso.
Uma delas foi a decepção com a gestão bolsonarista. “Em 2018, nas pesquisas qualitativas, alguns eleitores falavam que a eleição de candidatos da direita radical, como Bolsonaro, eram uma espécie de granada que se jogava no sistema político. Mas agora é o oposto”, avalia Camila Rocha. “Como a gente continuou envolto em várias crises e ainda veio uma sanitária, as pessoas parecem querer candidatos comprometidos a fazer políticas públicas.” Desta vez, diz ela, os eleitores não estão dispostos a explodir o sistema político – pelo contrário, priorizam a segurança. E, com o fim da onda antipolítica, houve o retorno de políticos de perfil mais tradicional.
Com o resultado do primeiro turno, o mapa político estadual revela um fortalecimento da direita e da centro-direita. Em 6 dos dos 27 estados, candidatos do União Brasil (fusão do DEM com o PSL) garantiram vaga no segundo turno ou liquidaram a disputa já no primeiro. O PL, que abrigou o presidente Bolsonaro, repetiu o feito em outros cinco estados. Levando em conta outros partidos (PP, PSC, PSD, Republicanos, MDB e o PSDB), são 21 estados em que legendas de direita ou de centro direita já conquistaram o executivo ou vão disputar o segundo turno. “Isso tem mais a ver com a dinâmica local”, avalia Couto. “Normalmente as forças políticas estaduais estão localizadas mais à direita, o que se reflete na intenção de voto.” Segundo ele, a articulação política nos estados é mais forte nesse campo graças à base desses partidos, que fortalece a rede. Além disso, o PL deve se manter como uma das maiores bancadas do Congresso.
Para Camila Rocha, o que está em jogo é a continuidade do bolsonarismo no sistema político por meio dessas candidaturas de direita. “Para eleições estaduais e prefeituras, o União Brasil, por exemplo, representa essa ‘direita de máquina’”, diz Rocha, referindo-se à estrutura de que o partido dispõe para as campanhas. “A gente tinha uma espécie de polo progressista histórico nesse campo, o PSDB, que contrastava com a direita mais atrasada. Mas parece que isso está acabando, o que me preocupa bastante.” Enquanto há o fortalecimento da “direita de máquina” nos estados, o esvaziamento do PSDB abre espaço para candidatos cada vez menos progressistas nos próximos pleitos, como aconteceu com os do PL nesta eleição. A cientista política lembra que o candidato do Novo à Presidência, Felipe D’Avila, que flertou com o bolsonarismo durante a campanha, migrou do PSDB.
Nos estados que terão segundo turno, a direita vai se valer do antipetismo para ganhar votos, diz Rocha. “O problema são os candidatos que recorrerão ao eleitorado bolsonarista para se eleger. Se eleitos, o que eles vão fazer? Vão continuar apostando na pauta ideológica do bolsonarismo ou abandoná-la?”, questiona. Os expoentes dessa continuidade ideológica serão Cláudio Castro, no Rio de Janeiro, e, caso eleitos, Tarcísio de Freitas, em São Paulo, e Onyx Lorenzoni, no Rio Grande do Sul.
Doze candidatos ao executivo estadual evitaram mostrar Bolsonaro durante a campanha local, mesmo tendo relações com o bolsonarismo, o que não significa que irão rejeitar objetivamente as ideias antidemocráticas, explica Rocha. É isso que pode dar continuidade à radicalização do bolsonarismo. Ao todo, seis candidatos da base de Bolsonaro ou apoiadores do presidente vão ao segundo turno, além dos que já ganharam no primeiro. “O extremismo não pode fazer parte do jogo político. A direita tem de barrá-lo. Mas até agora não vi nenhuma liderança de direita mais relevante, que dispute um cargo político, fazendo isso”, diz ela. A continuidade dos movimentos de extrema direita depende de como o sistema político vai conseguir barrar essas ideias no campo democrático. Essa ainda é a grande incógnita.