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    Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa de caminhada em Guarulhos (SP) Foto: Marlene Bergamo/Folhapress

colunistas

O futuro do lulismo

Para vencer abstenção, o PT precisa ressuscitar algo que ficou enterrado nos anos 1980: o poder de mobilização dos trabalhadores

Camila Rocha | 20 out 2022_12h38
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Há alguns anos o PT passava por sua pior crise. Em 2015 uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo apontou que a extinção do partido era considerada por quase metade da população brasileira

Mas o lulismo salvou o PT na época, e continua a salvar até hoje. 

Em 2018, o ex-metalúrgico aparecia em primeiro lugar na corrida presidencial, e, agora, foi capaz de superar seu principal adversário no 1o turno em 6,2 milhões de votos e ampliar sua bancada no Congresso. 

Parte dos analistas explica o fenômeno tendo em vista a memória dos benefícios de transferências de renda, dos aumentos do salário mínimo e da expansão da oferta de crédito realizados durante os governos Lula. Políticas que teriam beneficiado a população mais pobre do país e colocado em marcha um processo de ascensão social em massa entre os anos de 2006 e 2014. 

De fato, nesse período, além da redução do número de pessoas consideradas miseráveis, houve um aumento dos níveis de renda e consumo de cerca de 39,5 milhões de trabalhadores. Em 2009, 43,9% dos trabalhadores que ganhavam cerca de 1,5 salário mínimo possuíam carteira assinada, dez anos antes eram 37,1%.

Em vários bairros da periferia da cidade de São Paulo a bonança econômica se materializou a olhos vistos. O aumento do trânsito de carros e motos, a expansão do comércio local, a abertura de novas agências bancárias e o entusiasmo de muitos moradores para iniciar reformas em casa, adquirir eletrodomésticos, aparelhos eletrônicos e fazer viagens e cursos universitários eram facilmente perceptíveis. 

Tal fenômeno logo foi interpretado como o surgimento de uma “nova classe C”, tendo em vista as divisões por faixa de renda A, B, C, D e E realizadas em pesquisas de mercado. Houve até quem falasse em uma “nova classe média”, ideia que logo foi criticada por sociólogos como Jessé Souza e Ruy Braga, os quais procuraram caracterizar tais setores como “batalhadores” e “precariado”, respectivamente. 

Logo após Lula ter deixado a Presidência, entre 2011 e 2012, entrevistei várias pessoas que residiam no bairro da Brasilândia, zona norte da cidade de São Paulo, e haviam experimentado tal ascensão social. Curiosamente, quase nenhuma delas relacionava a melhora em seus padrões materiais com políticas do governo federal, nem mesmo aqueles que habitavam apartamentos construídos pelo Programa de Aceleração do Crescimento, bandeira do governo Dilma. O esforço individual era a explicação central – como também constatou pesquisa posterior da Fundação Perseu Abramo.

Para além disso, tais melhoras eram sentidas como um pequeno alívio em um cotidiano permeado por graves adversidades. 

Problemas que já existiam nas décadas de 1980 e 1990 permanecem até hoje. A lista inclui a violência decorrente da proximidade com o crime organizado, as condições precárias de trabalho (alta rotatividade, terceirização e rotinas exaustivas), a falta de opções de lazer, a precariedade de serviços e equipamentos públicos, as dificuldades com a locomoção urbana, o aumento do custo de vida, o aumento do endividamento e a crescente especulação imobiliária que dificulta a locação e a compra de imóveis. 

Uma insegurança estrutural continuava a perpassar o cotidiano dos trabalhadores. Mesmo entre aqueles que conseguiram maior acesso a bens de consumo e escolaridade mais alta, a sensação era de que, a despeito de todo esforço, sangue, suor e lágrimas que poderiam ser mobilizados para ascender socialmente, parecia ser impossível avançar um centímetro em direção a um padrão de classe média de fato. 

Uma das entrevistadas, por exemplo, havia se graduado em comércio exterior, mas ganhava por mês menos que sua mãe que trabalhava como empregada doméstica. Outra, uma professora não concursada de escola pública, precisava trabalhar em duas escolas para ganhar cerca de dois salários mínimos mensais e ainda assim precisou se mudar para o município de Franco da Rocha, pois não conseguiu juntar dinheiro suficiente para sair da invasão em que morava e comprar uma casa na Brasilândia. 

As desigualdades sociais pareciam apenas continuar a ser repostas, e o sistema político era percebido como essencialmente corrompido. 

No entanto, a despeito do cenário de distopia e insatisfação crônica, por que parte expressiva desse eleitorado continuava a preferir o Partido dos Trabalhadores? 

Acredito que as respostas que recebi há dez anos, em alguma medida, continuam a ser as mesmas hoje. Como bem sintetizou uma entrevistada:

Eu prefiro o PT. Por mais coisa errada que eles façam, eles pensam um pouquinho nos pobres. Mas eu gosto do PT não é só por isso não, é por causa da minha cidade lá no Nordeste, o PT fez muito lá. Então, muita gente pode dizer assim: “ah, o PT fez uma esmola no Nordeste”, mas se você for para o Nordeste, como eu passei quinze dias quando eu fui buscar minhas filhas, você vai dizer: “o PT é um deus grego.” O povo do Nordeste idolatra o PT. Porque o que eu tenho aqui para o povo do Nordeste é como se eu fosse milionária, e eu passo o maior sufoco. (Entrevistada)

E por que você acha que eles fizeram e os outros não? (Entrevistadora)

Eu acho que foi mais pelo presidente Lula, pela condição de vida que ele teve, eu acho que foi por isso que ele fez. O povo, todo mundo gostava dele. Eu gosto porque ele fez alguma coisa pelo meu povo. Não foi nem por mim, mas foi pelo meu povo. (Entrevistada)

No entanto, o voto por solidariedade não alivia o sufoco. E uma coisa é anunciar a preferência; outra, de fato votar.

Hoje o futuro do lulismo recai nos votos de pessoas como as que entrevistei há dez anos: trabalhadores que ganham acima de dois salários mínimos e residem no Sudeste do país – região em que o lulismo experimenta fragilidades importantes.

A primeira delas é a falta de discurso para essa fatia da população. Seja em termos existenciais, seja em termos materiais. Sobretudo considerando trabalhadores informais, grupo historicamente ignorado pelo PT. Hoje, muitos se tornaram “nanoempreendedores de si mesmos”, nas palavras da socióloga Ludmila Costhek Abílio, e seu cotidiano de exploração continua a ser invisibilizado.

A segunda fragilidade diz respeito à dificuldade em oferecer respostas satisfatórias sobre os escândalos de corrupção atribuídos ao PT. O que acaba desanimando boa parte das pessoas que ainda estão indecisas.

E a terceira é a fadiga da política que boa parte do eleitorado vem sentindo há anos por conta dos escândalos, acusações, brigas e fake news que invadem redes sociais e o dia a dia no trabalho, nos estudos e nas relações familiares. O que faz com que o apelo da emenda de feriado possa ser mais forte do que o das urnas.

Como já anunciaram especialistas, os índices de abstenção vão ser decisivos para o resultado final. 

A convocação feita por Lula no Flow Podcast foi um passo importante nesse sentido. 

Porém, a vitória do lulismo, agora, depende de algo que ficou enterrado com o PT dos anos 1980: o poder de mobilização junto aos trabalhadores.