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    Ilustração: Carvall

colunistas

Sobre assédio, direito e representatividade

Cerca de 11,4% dos processos trabalhistas poderiam ser evitados se os empregadores simplesmente cumprissem a lei

Bárbara Ferrito | 18 out 2022_12h50
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Ao longo dessas quinzenas, eu procurei focar no trinômio trabalho, gênero e raça. No entanto, é óbvio que diversos marcadores de vulnerabilidades podem trazer outras situações particulares e novas violências e opressões. Realidades que eu não vivo, mas que não gostaria de ver apagadas. Podemos pensar na pessoa com alguma limitação física ou cognitiva, precisando se afirmar em uma sociedade capacitista que, antes de conhecê-la, já sabe tudo o que ela pode ou não pode fazer. Ou em uma mãe, que, após muita conciliação da vida laboral e familiar, consegue a oferta de uma sonhada promoção, mas não pode aceitar por não ter a disponibilidade exigida, ainda que tenha a necessária. São pessoas que não se sentem acolhidas pela sociedade e pelas instituições. E é sobre estas que eu gostaria de falar hoje: as instituições. 

Independentemente do resultado das eleições, já vivemos hoje uma crise institucional, uma desconfiança coletiva nas instituições e seus atores e uma descrença na sua própria necessidade. Ainda que seja muito levada pela única experiência que conheço de sociedade, Estado e mundo, tenho para mim que ainda não podemos, de um dia para o outro, abolir as instituições. Elas são, e muito, necessárias. Em um ambiente em que trabalhadores são assediados por votos, como se retornássemos à República da Espada, não podemos dispensar as instituições. Diante da desconfiança que nos assombra, nosso papel não é ceder ao ceticismo, mas trabalhar para o fortalecimento das instituições.

Convido vocês, leitores e leitoras, a um exercício imaginativo. Vamos supor a seguinte situação. Você compra, em algum site famoso da vida, um item indispensável e que está fazendo muita falta na sua casa. O prazo de entrega não era grande, você poderia esperar. Passa o prazo, a empresa não entrega. Você confere o seu cartão, a compra consta lá, foi à vista. Você liga para a empresa e simplesmente não lhe dão ouvidos: você não é importante para ela. Você tenta outros canais de comunicação e nada. Desesperado, porque você realmente precisa do produto, contrata um advogado. O advogado ingressa com uma ação contra a empresa, juntando o comprovante de pagamento da compra e exigindo a entrega do produto. 

Passam-se alguns meses, vem a audiência, a empresa faz alegações superficiais, que não convencem o juiz, que profere uma sentença determinando a entrega imediata do produto. A empresa ainda recorre, mas sem sucesso. Depois de dois anos da compra, você recebe o produto, já desatualizado e tendo se virado sem ele por tanto tempo, que era extremamente necessário para você. Agora, imagine se a maioria das suas compras fosse assim: precisasse ir a juízo para obrigar o fornecedor a entregá-la?

Qualquer pessoa atuante ou não na defesa do consumidor sabe que isso é um absurdo. Nenhum sistema de comércio resistiria a esse arranjo de coisas.

 

Pois bem, eis a novidade: nosso mercado de trabalho funciona desse jeito. O trabalhador presta seus serviços, é mandado embora, e não recebe as verbas rescisórias, ou seja, o pagamento pelo serviço já prestado. A parte do trabalhador já está quitada, mas, para receber, o trabalhador se vê obrigado a ingressar na Justiça, aguardar algum tempo e ouvir o juiz dizer o óbvio: o trabalhador está certo. Afinal, cerca de 11,4% dos processos trabalhistas tratam de verbas rescisórias, segundo o Conselho Nacional de Justiça. São cerca de 2,7 milhões processos que poderiam ser evitados se os empregadores simplesmente cumprissem a lei, que não traz brechas ou dúvidas. A título de comparação, o segundo lugar ficou com a indenização por danos morais, com 1,02% dos processos.

Percebam ainda que, no caso do consumidor, ele, ao contar sua história, receberia a solidariedade de todos: é um absurdo. Ora, se não tem o produto para fornecer, não venda. Simples assim. O trabalhador, a seu turno, precisa ouvir sobre a importância da empresa, a dificuldade de empreender no Brasil ou sobre a crise econômica, como se essa também não afetasse o trabalhador desempregado.

O aumento das lides trabalhistas, portanto, não está relacionado à interpretação legal dos juízes do trabalho, que supostamente estimulariam a litigância. São as infrações trabalhistas que estimulam contenciosos. É extremamente violento trabalhar sem receber. Salário é a garantia mais básica e necessária do trabalhador, sob pena de voltarmos a sistemas escravocratas em que o direito de uns se sobrepunha ao direito de existência de outros.

É importante falarmos honestamente disso, porque não adianta pensar e debater relações de trabalho ou discriminações de raça e gênero sem pensar no fortalecimento das redes de combate às infrações trabalhistas, formadas principalmente pela tríade: Justiça do Trabalho, Subsecretaria de Inspeção do Trabalho e Ministério Público do Trabalho. Acreditar que o problema das relações de trabalho estaria na atuação dessas personagens, seria o mesmo que indicar a polícia como culpada pela quantidade de crimes que investiga: afinal, se abolirmos o direito penal, o crime acaba, não? Fortalecer essas instituições, refletir sobre seus processos e sua importância, resolver gargalos, são prioridades que devem ser adotadas por quem pretender forjar um mercado de trabalho menos violento, discriminatório e excludente.

Por fim, meu segundo ponto sobre as instituições, mirando especificamente a minha, diz respeito à seriedade da questão da representatividade. Não há como dissociar a dificuldade no reconhecimento de situações de desigualdade e discriminação na seara do trabalho, com o fato de o Judiciário ser formado majoritariamente por um grupo social específico: homens brancos. A invisibilidade das questões de gênero e raciais, assim como tantas outras, tangencia, em certa medida, essa formação hegemônica.

A participação de negros e mulheres em todas as instâncias do Judiciário coloca-se como medida de fortalecimento democrático das instituições. Primeiro, porque indica que todos os grupos sociais têm lugar nas arenas de debate e decisão, demonstrando que o poder está, de fato, nas mãos do povo. Por outro lado, a pluralidade enriquece as perspectivas a partir das quais a sociedade é compreendida antes de decidir.

Talvez a grande mentira que nos tenham contado seja a de que o brasileiro é preguiçoso. Quando trabalho, percebo como trabalhadores e muitos empresários se esforçam, em condições muitas vezes desvantajosas, para com honestidade e dedicação fazerem a vida. Mas a falácia da preguiça nos permite justificar a desigualdade e a miséria de tantos. Não acreditemos nela. Que venham tempos de reconstrução da sociedade, da nossa humanidade, das amizades e das instituições.