Quem assistiu a Filho de Saul (2015), primeiro longa-metragem de László Nemes, deve ter criado uma expectativa favorável em relação ao seu próximo filme. De forma geral, porém, Entardecer (2018) decepcionou ao estrear, em setembro do ano passado, no 75º Festival de Veneza, chegando a ser considerado imerecido o prêmio que recebeu da Fipresci – Federação Internacional de Críticos de Cinema.
Há quatro anos, Filho de Saul foi coberto de láureas em diversos quadrantes, além de ter obtido relativo sucesso comercial. Ganhou desde o Grand Prix do Festival de Cannes até o Oscar de Melhor Filme não falado em inglês, sem esquecer o Golden Globe na mesma categoria. Como se não bastasse, rendeu 9,7 milhões de dólares, cerca de 5,7 vezes seu custo de produção.
Aqui no site, saudei Filho de Saul em fevereiro de 2016 como sendo um filme que “destaca-se no panorama do cinema contemporâneo”. E escrevi que “vão se tornando cada vez mais escassos filmes que escapam da banalidade da linguagem convencional e, mesmo assim, além da consagração em festivais e prêmios variados, conseguem obter resultado de bilheteria expressivo. Ainda mais quando são deliberadamente ambíguos […]. E, além disso, entreabrem a porta para o imaginário, rompendo o tom realista predominante em um final belo e pungente”.
Era grande, portanto, minha própria expectativa pelo longa-metragem seguinte de Nemes. Mesmo assim, quando Entardecer estreou no Rio, em 2 de maio, demorei a ir assistir ao filme, sugestionado talvez pela recepção tépida em Veneza e por comentários pouco favoráveis captados aqui e ali. Os dados iniciais do portal Filme B mostravam, ainda por cima, pouco interesse do público, confirmado após quatro semanas: apenas 14657 espectadores assistiram a Entardecer, atualmente sendo exibido em 10 cinemas, um resultado sofrível.”
Apesar da minha esperança de assistir a outro grande filme estar meio abalada, finalmente lá fui eu, quarta-feira passada, para conferir se Entardecer está ou não à altura de Filho de Saul. Minha impressão, depois de uns trinta minutos de projeção, foi que Nemes havia sido vítima de uma patologia bem conhecida, ao menos no meio cinematográfico, que leva diretores de excelentes filmes de estreia a fracassarem no seguinte – bem mais difícil do que fazer um bom primeiro filme, costuma-se dizer, é realizar em seguida outro à altura.
A primeira manifestação dessa doença é o aumento considerável do orçamento de produção, associado à queda da receita de bilheteria. Entardecer custou estimados 10 milhões de dólares para ser produzido, seis vezes mais do que Filho de Saul, e teve renda de apenas 728 mil dólares em cinemas, treze vezes menor do que a do filme anterior de Nemes.
Outro sinal patológico de Entardecer é a duração de 2h22min, excessiva para um filme enigmático que acompanha de perto a jovem modista Írisz Leiter (Juli Jakab, que faz o principal papel feminino em Filho de Saul), órfã desde seus 2 anos de idade, na jornada em que ela tenta desvendar o enigma do seu próprio passado. A ação se passa em Budapeste, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, no fim dos anos de esplendor que foram de 1892 a 1913, considerados o período áureo do império Austro-Húngaro.
“Uma das principais questões de Entardecer é o que está acontecendo em um momento tão sobrecarregado, por que e como a queda começa” – descrição perfeita de Mátyás Erdély, diretor de fotografia do filme, assim como de Filho de Saul (entrevista completa disponível aqui). Sem que essa tenha sido sua intenção, Erdély indica justamente qual é a maior fragilidade de Entardecer – a dificuldade para o espectador conseguir entender “o que está acontecendo […], por que e como a queda começa”.
Nemes, porém, contradiz Erdély, seu mais importante colaborador, ao deixar claro, em entrevista sobre Entardecer, que considera ser fácil às vezes “retratar em filmes eventos que são específicos”, mas não acredita “ser assim que a história humana opera. É algo mais difuso, mais embaixo da superfície, mais invisível. E eu queria dar alguma sensação dessa força invisível debaixo da civilização”.
Não é “necessário entender tudo, por que na vida, você não entende tudo”, diz Nemes. Para ele, “ter uma experiência significativa não resulta de racionalizar, provém da sensação causada pela atmosfera e pela situação, talvez sem entendê-la. Aí talvez eu tenha que mudar como estou pensando sobre ela, e tentar entendê-la. Mas, de certo modo, usando a inteligência do espectador. E sem tentar racionalizar tudo. Se você racionaliza tudo, aí você fica completamente perdido, por que você está em pânico” (a entrevista completa está disponível aqui).
De certo modo, Entardecer pode ser considerado uma contrafação de Filho de Saul. Nemes retoma o mesmo bem-sucedido estilo ao mostrar o mundo do ponto de vista de um único personagem, com a câmera na mão e predomínio de planos próximos – o resultado, porém, não é equivalente ao do filme anterior e tampouco tira bom proveito da fascinante concepção teórica revelada na entrevista à revista Film Comment. Talvez pelo simples fato de que as circunstâncias nas quais Saul e Írisz se encontram são radicalmente distintas.
Enquanto Saul está preso e integra uma Sonderkommando – unidade de prisioneiros forçados a dispor das vítimas da câmara de gás de Auschwitz –, Írisz está livre, é senhora do seu destino, vive seu pesadelo pessoal por opção e é descrita assim na mesma entrevista citada de Nemes: “Írisz é como uma pessoa solitária, como se ela fosse um planeta na escuridão do cosmos como todos os outros planetas e as estrelas, confrontada com a luz, a sombra e a escuridão à sua volta.”
São proposições de Nemes como essa que parecem ter levado o crítico e professor J. Hoberman a escrever no The New York Review of Books que Entardecer poderia se chamar “Mistérios de Budapeste ou até Dream Story, comoa novela de Arthur Schnitzler […], devido ao seu pano de fundo fantasmagórico.” (A crítica de J. Hoberman está disponível aqui.) Dream Story foi editada no Brasil, em 2000, com o título Breve Romance de Sonho, e adaptada para o cinema por Stanley Kubrick e Frederic Raphael no filme De Olhos Bem Fechados (1999), dirigido por Kubrick.
A resenha de Hoberman, a par de algumas restrições, traz também um viés favorável a Entardecer que, em retrospecto, ilumina de ângulo imprevisto o filme e permite ter uma visão mais favorável a seu respeito.
“Em um sentido, Entardecer é o prólogo de Filho de Saul”, escreve Hoberman – “uma descida ao turbilhão que prevê o iminente colapso do império dos Habsburgos. Em outro sentido, o filme parece quase uma continuação [do anterior]. Por seu nome e sua situação, Írisz pode ser uma refugiada judia voltando à sua cidade natal para recuperar a propriedade familiar confiscada. O fato de seus pais terem morrido em um incêndio (o que equivale a dizer que foram consumidos por um holocausto) também é sugestivo. Assim como o fato de que o seu misterioso, até então desconhecido, irmão (o ator polonês Marcin Czarnik, também um veterano de Filho de Saul) é um oponente fanático do status quo habsburgo, em geral, e Leiter [a lendária chapelaria que foi dos pais de Írisz], em particular.”
Para Nemes, conforme declarou em entrevista à Variety citada por Hoberman, Entardecer retrata o crescimento do extremismo “que ressoa de muitas maneiras com os dias atuais. Em outra publicação ele escreveu sobre sua crença apocalíptica que ‘vivemos em um mundo que não está longe do que antecedeu a Grande Guerra de 1914. Um mundo totalmente incapaz de ver as forças destrutivas que alimenta em seu cerne. Não estamos distantes dos processos que ocorreram na monarquia Austro-Húngara’”.
Mas, para Hoberman parece estranho “que o realizador, que cresceu e vive em Paris, pareça ser um dos principais beneficiários do regime crescentemente autoritário, abertamente xenofóbico, culturalmente reacionário de Viktor Orbán […]. Filho de Saul e Entardecer foram subsidiados pelo governo […]. Se, de fato, conforme Nemes assinalou, Entardecer não é nada patriótico e não pode ser entendido como favorável ao nacionalismo húngaro, o filme pode, por outro lado, ser tomado como um relato de alerta – o império poliglota dos habsburgos no lugar da União Europeia – e visto como propaganda da cultura autóctone em oposição ao cosmopolitismo decadente”.
Em conclusão, Hoberman escreve que “talvez Nemes – um artista muito mais à vontade discutindo seus filmes do que sua posição política – esteja falando através do personagem que diz sobre as elaboradas criações da [chapelaria] Leiter: “o horror do mundo se esconde debaixo destas coisas infinitamente belas”.
Do que não devemos esquecer é a distância existente entre as boas intenções dos diretores e o que muitas vezes resulta para assistirmos. E é preciso lembrar, também, da diferença que pode haver entre a experiência de assistir a um filme e a de refletir depois a seu respeito.