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    O turco Eray Uç em uma foto antiga e depois de ser preso no Brasil, em junho do ano passado Imagem: Polícia Civil de São Paulo

questões policiais

Como um foragido turco enganou a Justiça brasileira – e foi descoberto

Condenado por tráfico de drogas no Paraguai e procurado pela Interpol, Eray Uç foi preso no Brasil em 2023. Sua identidade só foi desvendada nove meses depois

Vinícius Madureira, do Rio de Janeiro | 08 abr 2024_08h51
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Desde o ano passado, a Polícia Civil de São Paulo tinha sob sua custódia um homem turco procurado pela Interpol, condenado por tráfico de drogas no Paraguai e investigado nos Estados Unidos por vinculação com o Hezbollah. Ele se chama Eray Uç. Foi preso no Brasil em junho de 2023 e condenado por tráfico de drogas, mas usava a identidade de seu irmão. Até onde a polícia sabia, seu nome era Garip, não Eray. Só em fevereiro deste ano a fraude foi revelada.

“Após a sua prisão, a equipe da unidade atestou que suas digitais não constavam no banco de dados da Polícia Civil e, após intercâmbio entre agências de inteligência, foi descoberta a sua real identidade”, afirmou a Polícia Civil paulista, em nota enviada ao Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP), rede global de jornalistas que investigam crimes transnacionais.

Antes de fugir para o Brasil, Eray havia sido detido no Paraguai, acusado de traficar cocaína. Os agentes chegaram até ele depois de prenderem Alí Issa Chamas, libanês apontado como um de seus associados numa rede internacional de tráfico. Chamas, que também tem cidadania paraguaia, foi preso enquanto tentava enviar um carregamento de cocaína para a Turquia. Segundo a investigação, a droga seria transportada em um avião que sairia do Aeroporto Internacional Guarani, localizado em Minga Guazú, cidade na tríplice fronteira entre Paraguai, Brasil e Argentina.

Chamas foi extraditado para os Estados Unidos. Denunciado por tráfico de drogas, foi condenado à prisão. Em depoimento à Agência Antidrogas (DEA), afirmou que no Líbano seu “clã era poderoso e aliado do Hezbollah” organização política que o governo americano categoriza como grupo terrorista.

Informações encontradas em seu celular levaram os policiais até Eray. Oficiais da Senad, a agência antidrogas do Paraguai, descobriram a existência de outro carregamento de drogas, este ligado a Eray, que sairia do Aeroporto Guarani rumo a Istambul. A carga, segundo o inquérito policial, consistia em 108 rolos de plástico transparente guardados em duas dúzias de caixas. Os policiais relataram ter descoberto quase 40 kg de cocaína escondidos em 51 dos rolos.

Eray foi preso junto com outro turco investigado na operação. Os dois foram conduzidos a uma penitenciária em Ciudad del Este, que também fica perto da tríplice fronteira, para aguardar seus julgamentos. Denunciado por tráfico de drogas, Eray poderia ser condenado a até quinze anos de prisão no Paraguai.

Semanas depois de serem presos, no entanto, os dois homens se queixaram de dores e foram levados a um posto de atendimento em Misiones, município vizinho. O médico que os examinou determinou que fossem encaminhados para tratamento em uma unidade de saúde em Encarnación, cidade localizada a duas horas dali, na fronteira com a Argentina. O governo paraguaio confirmou que os dois turcos chegaram ao destino, conforme previsto, na tarde de quinta-feira, 22 de dezembro de 2017. Depois disso, desapareceram sem deixar rastros.

O governo paraguaio, de mãos atadas, emitiu um mandado internacional de prisão para Eray. Com isso, ele entrou para a lista de procurados da Interpol.

 

Anos se passaram até que, em junho de 2023, a Polícia Civil de São Paulo interditou um bar localizado próximo ao porto de Santos (SP). O boteco, segundo informações de inteligência, era uma fachada para a produção de drogas, que depois eram escoadas para fora do Brasil por meio de navios. Eray foi preso em flagrante, portando um equipamento usado para extrair haxixe de plantas de maconha. O turco carregava consigo um documento com a identidade de seu irmão mais velho, Garip. Foi preso e processado com esse nome.

Aos investigadores da polícia, Eray (que eles pensavam ser Garip) confessou que fabricava um tipo particularmente potente de haxixe, chamado Dry Marroquino, a mando do PCC. O quilo da droga é vendido por até 100 mil reais, segundo os policiais. Levado à Justiça, o turco foi condenado a seis anos de prisão. O advogado brasileiro que o defendeu no processo, Adriell Luciano de Souza Santos, não respondeu aos contatos feitos pela reportagem.

Ainda durante as investigações, o delegado que efetuou a prisão, Renato Mazagão Junior, suspeitou da possibilidade de que Garip fosse, na verdade, Eray. No auto de prisão em flagrante ele anotou: “pouca dúvida resta que Garip Uç é na verdade Eray Uç”. Aos olhos do Ministério Público de São Paulo, no entanto, não havia elementos que comprovassem a falsidade ideológica. A tese acabou sendo abandonada no julgamento. Procurado pela piauí, o MP não quis comentar.

Só em fevereiro, nove meses depois da operação, a polícia conseguiu confirmar a identidade de Eray. Suas impressões digitais foram comparadas com as que estavam registradas em agências internacionais de inteligência.

Notificada pela Polícia Federal, a Embaixada do Paraguai formalizou em 22 de março o pedido de extradição de Eray. O processo agora está sendo analisado pelo Supremo Tribunal Federal, sob relatoria do ministro Luiz Fux. O turco, enquanto isso, segue preso no Brasil.

 

* Esta reportagem foi publicada originalmente pela OCCRP e traduzida por Isa Mara Lando.

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