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    O "Perfume do Velho da Lancha", para quem deseja atrair seu "sugar daddy" (Foto: Leandra Souza)

vultos da tradição

No Ver-o-Peso, poções contra todos os males – e para alguns memes

Entre as fragrâncias e os preparos para banhos vendidos pelas erveiras da maior feira livre da América Latina, em Belém, a cultura ancestral encontra a improvável sabedoria do TikTok

Leandra Souza | 23 jan 2024_09h54
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“Venha cá dar uma olhadinha, meu amor!” O pedido, que é menos um grito e quase um canto, vem de um pedaço do Complexo do Mercado Ver-o-Peso entre o Mercado de Ferro (edificação no estilo eclético, influenciado pela art nouveau) e o Solar da Beira (construção de arquitetura neoclássica). Às margens da baía do Guajará, estão lá oitenta barracas padronizadas em tamanho (1,70 m de altura por 1,20 m de largura) e quase iguais nos produtos. Há ervas e raízes secas dispostas em cestos, mas o que mais se destacam são os feixes com centenas de vidrinhos amarrados por barbante, com preços que variam de 5 a 30 reais, com líquidos coloridos translúcidos.

“Ei, mana”, uma mulher insiste. Quer desviar os olhos dos passantes para as poções. Algumas trazem no rótulo os ingredientes principais: “Manjericão”, “Pataqueira” e “Folha-da-Fortuna”. Outras anunciam uma mistura com propriedades utilitárias – “Abre-Caminhos”, por exemplo. Uma boa parte dos frascos traz demandas específicas.

Do ramo da prosperidade, há o elixir “Passa no Vestibular”, o “Passa no Concurso” ou o “Chama Dinheiro”. Mais interessantes parecem ser os rótulos amorosos, alguns com notas de romantismo (“Agarradinho”), outros com toques de drama (“Chora nos Meus Pés”), e aqueles cheios de palavrões cabeludos. Isso sem falar nos outros casos de família: “Amansa Nora”, “Amansa Touro”, “União do Casal”, “Afasta Homem Liso”, “Chama Marido Rico” – ou apenas “Chama Marido”, sem capital envolvido. Todos esses vidros existem há muitos anos, em alguns casos muitas décadas.

Foi de uma dessas tendas que saiu um vidro dado de presente para a paraense Thais Farias, de 24 anos, que vive no município de Ananindeua. Ela é freguesa das erveiras, mas dessa vez ganhou de uma amiga uma poção diferente: “Passa o Pix.” Estava desempregada e precisando de um bom depósito na conta. Fez o ritual de tomar um banho de cheiro que evocou o dinheiro. Dias depois, foi aprovada em uma entrevista de emprego e, voilá, logo o salário caiu na conta. “Quando a gente acredita, as coisas vêm.”

O meio de pagamento lançado no final de 2020 é um dos temas contemporâneos que estão atualizando esse setor do mercado (há também a versão: “Afasta mulher que pede pix”). Há outros. Da barraca de Maria Marinho, a Maria Loura, de 55 anos, uma das erveiras mais famosas do Ver-o-Peso, sai o novíssimo “Velho da Lancha”. É uma poção para quem deseja ter um sugar daddy, um homem com bastante idade e ainda mais bens (como sua própria embarcação) que possa bancar as contas e luxos da pessoa escolhida. O “velho da lancha” é um tema constante nas redes sociais, em geral como brincadeira, e às vezes nem tanto.

Os trending topics têm pautado as barracas de ponta a ponta. No menu inspirado nos temas do momento, foi lançada no semestre passado a fragrância “Barbie Original”, que prometia a beleza da mais “padrão” das bonecas, e “Ken Chora nos Meus Pés”, para atrair um homem forte e sarado como o boneco.

As criações dessas fórmulas, segundo Loura, são feitas de maneira coletiva pelas erveiras, a partir de ideias próprias ou da clientela. Ela conta que o cheiro “Barbie Original” foi criado por meio da sugestão de uma jornalista local, Mary Tupiassu. “Na época do filme, o pessoal corria para cá e comprava aos montes para dar de presente ou brinde. Foi muito legal.”

Maria Loura é a presidente da Ver-as-Ervas, a associação de erveiras e erveiros do Mercado Ver-o-Peso. “Minha mãe era benzedeira e parteira. Então ela conhecia muitos remédios caseiros, garrafadas, chás, banhos e escalda-pés. Ensinou tudo para mim.” Ela conta que começou a trabalhar no mercado quando tinha 19 anos, com a primeira filha ainda na barriga. Já são 36 anos em que gerencia a barraca batizada com seu apelido. O negócio de ervas lhe ajudou a criar os dois filhos e a financiar uma educação de qualidade para ambos, formados no ensino superior. Bellisa Silva, de 36, é pedagoga, e Bellingthon Alberto, de 34, educador físico.

Ela explica que as essências que prometem realizar pedidos são criadas por meio de uma mistura de saberes derivados das culturas ribeirinha, indígena e africana, utilizando óleos, cascas, frutos e raízes típicos da Amazônia. Esses ingredientes são adquiridos no próprio Ver-o-Peso e também em áreas rurais próximas à capital paraense, nas hortas de Icoaraci, Ananindeua e Marituba, da Região Metropolitana de Belém. 

A erveira explica que os produtos vendidos em sua barraca têm um ritual de preparação, ainda que não revele as receitas. Para a manipulação ocorrer é preciso “concentração, corpo e alma limpos, além de muita oração”, conforme descreve enquanto mantém os olhos atentos nos possíveis clientes passando. “Eu sempre peço a Deus que o que eu estou preparando surta o efeito desejado pelos meus clientes. Que eles possam ficar bem com aquilo.”

Mais à frente da barraca de Loura está a de Mirací da Silva, outra erveira de longa data do Ver-o-Peso. Ela tem 58 anos e começou a trabalhar na feira aos 10, na companhia da mãe e dos irmãos. Se especializou, assim como grande parte de suas colegas, por meio de ensinamentos maternos sobre o conhecimento das ervas. Ela diz que a brincadeira com os memes tem como objetivo atrair os turistas, e que não garante a eficácia dessas fragrâncias.

As poções que funcionam, segundo ela, são as tradicionais, como a “Abre-Caminho”. O banho que promete atrair coisas boas pode ser atrelado a alguma essência da preferência de quem vai usar. Já o de descarrego leva cachaça, harmônico e sal virgem. Ambos podem ser utilizados para lavar o corpo, a casa e o ambiente de trabalho.

Uma das clientes que apostam nos produtos tradicionais é a servidora pública Giovanna Barbosa, 25, que diz frequentar o Ver-o-Peso a cada vinte dias e já ter alcançado graças com o consumo dos banhos e perfumes produzidos pelas erveiras. “Consegui curar uma pedra no rim apenas com produtos naturais indicados pelas erveiras”, diz. Para ela, não adianta comprar as poções sem acreditar no poder das ervas. “Você tem que acreditar com fé de que aquilo vai te proporcionar alguma coisa muito boa.”

O pesquisador Antônio Rocha Penteado pesquisou a comunidade local no livro Belém Estudo de Geografia Urbana, uma das primeiras catalogações das formas de agrupamento e comercialização dos feirantes do complexo do Ver-o-Peso (batizado assim no período colonial, por ser o entreposto onde a massa das mercadorias era aferido, para fins de taxação). Segundo a obra, a presença das erveiras e dos erveiros foi identificada a partir da segunda metade do século XX.

Ao longo das décadas, a estrutura matriarcal de gerenciamento das barracas de ervas seguiu a regra, em contraste com as demais áreas onde a presença masculina tem ligeira prevalência – dados de 2022 da Secon (Secretaria Municipal de Economia) mostram que 45% dos comerciantes do Ver-o-Peso são do sexo feminino. Em sua maioria, as barracas de ervas estão ocupadas por uma mulher mais velha acompanhada de outra mais nova, reforçando que o conhecimento do manejo das plantas é repassado a cada geração.

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