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    Tuxaua Leirejane Macuxi em mobilização contra o marco temporal - Foto: Elane Oliveira

depoimento

“Estão jogando veneno em cima do meu povo”

O relato de uma indígena macuxi sobre as ameaças à sua comunidade – e o que o marco temporal tem a ver com isso

Leirejane Macuxi | 07 jun 2023_16h56
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Aos 33 anos, a indígena Leirejane Macuxi é a tuxaua de seu povo – assim como foram seu pai e, antes dele, seu avô e seu bisavô. A Terra Indígena Serra da Moça, onde ela vive, a cerca de 60 km de Boa Vista, foi demarcada em 1984 e homologada em 1991. Esta semana, ela viajou até a capital de Roraima para participar da manifestação contra o projeto de lei do marco temporal de acordo com esse PL, uma terra só pode ser demarcada se já fosse ocupada por indígenas na data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988. Quem estivesse fora da área nessa data ou chegasse depois desse dia, não teria direito a pedir sua demarcação. Pelo projeto, a terra do povo de Lerejane não estaria ameaçada – na prática, já está. A tuxaua contou à piauí que seu povo sofre hoje com o avanço da soja e com os agrotóxicos usados nas plantações vizinhas. 

Em depoimento a Elane Oliveira

Eu me chamo Leirejane Nagelo da Silva, mas uso Leirijane Macuxi, o nome do meu povo. Tenho 33 anos e moro na Terra Indígena Serra da Moça, na comunidade indígena morcego. Eu sou de uma família que já tem uma linhagem de lideranças tuxauas. O meu pai, Jairo Pereira da Silva, faleceu em 2017. Foi tuxaua da nossa comunidade, ele sempre nos ensinou a passar para as próximas gerações esse espírito guerreiro e defensor do território. E hoje eu passo isso para os meus filhos. Eu decidi ser tuxaua da minha comunidade porque, quando não se é tuxaua, não se tem o poder de decidir a favor de seu território. Quando fui indicada para o cargo de tuxaua, ouvi até mesmo de uma outra mulher que eu não tinha condições de assumir aquele papel de liderança. Imediatamente respondi que nós mulheres somos capazes. Foi bem desafiador, porque eu pensava que não iria dar conta, porque a gente tem filhos, casa para cuidar, então eu tinha uma autocobrança. Eu fui eleita no dia 2 de dezembro de 2022, após uma votação na comunidade.

Antigamente não se podia, a mulher não ocuparia esse espaço que hoje estamos ocupando. Foi um grande avanço, uma grande vitória. Hoje temos aí várias mulheres à frente de várias organizações. 

Minha terra é demarcada desde 1985, e a demarcação foi feita em ilhas, não em um pedaço de terra contínua. Na época em que foi demarcada e homologada, ficaram de fora dos nossos territórios as fontes de riquezas naturais que são importantes para nós, como alguns rios e lagos. Desde a demarcação temos tido problemas. Não sobraram recursos suficientes para a nossa sobrevivência, e nós indígenas vivemos de caça e pesca. Na época da demarcação, não conhecíamos bem os nossos direitos como originários daquele território, e nossa terra foi diminuída. 

Na comunidade indígena Lago da Praia, os moradores, que inclusive são a minha família, foram expulsos em 2009. Eles foram expulsos por invasores, posseiros, arrozeiros e lavoureiros. Eles diziam que estávamos querendo um espaço que era deles, sendo que dentro dessa comunidade Lago da Praia moravam os nossos antepassados.

Tratamos esse PL sobre o marco temporal como um PL da morte, porque ele é! Esse projeto já causou e causa todo um retrocesso de tudo que nós conquistamos até agora. Nada para nós veio de graça. Não estamos pedindo mais do que nos garante a constituição. São vidas indígenas que estão ali dentro dessas terras, são seres humanos também. Valorizamos e preservamos a mãe terra e a água. Somos os maiores guardiões da floresta.

Antes mesmo da aprovação do projeto pela Câmara, já tem assentados invadindo o nosso território, já estão construindo cerca dentro da terra indígena. Já está causando muitos conflitos que a gente não quer. Agimos conforme a lei manda, estamos exigindo que as coisas sejam feitas de maneira correta e que nossos direitos sejam atendidos conforme nos garante a Constituição. Aqui no estado uma coisa que acontece muito em conflito com invasores é que, quando nós dizemos que ali é nosso território, começam a dizer que temos muita terra e queremos ficar brigando por terra. Não brigamos por terra, nós defendemos o nosso território que já é nosso por direito.

Na minha comunidade, sofremos porque os donos de fazendas plantam soja e passam com aviões por cima da comunidade, jogam veneno em cima da gente. Já tivemos situações em que os moradores, inclusive minha família, foram contaminados com esse veneno. Meu esposo ficou com irritação na pele, minha sobrinha teve que ficar uma semana sendo atendida por médicos porque não conseguia respirar e tinha coceira na pele, outra sobrinha de apenas alguns meses também teve reações alérgicas. Nossa comunidade sofre muito com o cheiro horrível de veneno. Denunciamos e aguardamos uma posição dos órgãos competentes.

Como vamos fazer agora? 

Quando vamos para as ruas reivindicar, as pessoas falam: “Ah, vocês vão fazer baderna!” Só estamos aqui porque já cansamos. Não queremos mais que destruam nossa mãe natureza. Não queremos mais invasões de nosso território, não queremos mais garimpo dentro de terras indígenas. Tudo isso mata, e tudo o que mata não nos favorece.

Por isso estamos aqui, por isso estamos gritando, alguém tem que nos ouvir.

 

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