Um grupo de líderes do movimento de caminhoneiros, vestidos de terno e gravata, se reuniu com os ministros do governo Temer em frente às câmeras de tevê para endossar um acordo que prometia acabar com a paralisação que tomou conta do país. A reação imediata, longe de ser tranquilizadora, espalhou-se em grupos de WhatsApp de caminhoneiros: vídeos e áudios indignados, sindicatos desmentidos, governo execrado. A conclamação para uma manifestação ainda maior e mais duradoura foi feita. “Desde quando autônomo tem sindicato?”, dizia um caminhoneiro no grupo “Lutar pelo Melhor”. “Acabou coisa nenhuma. Esse sindicato não vale nada”, dizia outro, com telefone de São Paulo. “Isso é mentira. Não acabou, não. Não atingiu nosso objetivo”, escreveu um terceiro, também paulista.
Quando o governo anunciou, depois, que acionaria forças nacionais para liberar as estradas ocupadas, a reação também foi de resistência nos quatro grupos de caminhoneiros no WhatsApp dos quais a piauí participou, desde a tarde de quinta-feira. “A orientação dos advogados é a seguinte: se o Exército chegar é pra sentar no chão e botar a mão na cabeça, em sinal de rendição”, disse um caminhoneiro no grupo “Brasileiros/Caminhoneiros”, com 252 integrantes de São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco. “Tira a chave do caminhão e sai fora, deixa rolar”, postou outro. As mensagens demonstravam uma intenção de evitar enfrentamentos, mas de não sair das estradas nos próximos dias.
Nos grupos, os próprios participantes da negociação com o governo eram desqualificados pelos caminhoneiros. Logo após o anúncio do acordo em Brasília, os integrantes do grupo “Ajudando Caminhoneiros” enviaram mensagens em que diziam que um piloto de Fórmula Truck não é representante da classe. O comentário era seguido de uma foto de um dos negociadores, o presidente da Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos, Diumar Bueno, vestindo uniforme de corrida. Em outro grupo, “Caminhoneiros pelo Brasil” – com cerca de 200 participantes, de Santos, Minas e do Nordeste – uma foto de um jornal regional que falava do “fim da greve” era tratado como “fake news”. O anúncio do acordo deixou os caminhoneiros desses grupos ainda mais inflamados. Muitos perfis começaram a usar como foto de apresentação uma tarja com “Greve Continua” ou a hashtag #somostodoscaminhoneiros.
Uma das conclusões do acompanhamento minuto a minuto das mensagens nesses grupos é que a liderança dos mais de dois milhões de caminhoneiros do país está longe de se encerrar nos oito representantes que se reuniram com os ministros. São centenas de líderes, não necessariamente ligados a sindicatos. “Cada bloqueio tem o seu líder”, disse à piauí o caminhoneiro conhecido como “Ferro Velho”, um dos organizadores dos bloqueios em Jacareí, em São Paulo, na Rodovia Presidente Dutra, que liga São Paulo e Rio de Janeiro. A declaração dá a medida do desafio que será desmontar a paralisação. Em Chorozinho, perto de Fortaleza, o líder Jaime enviou um vídeo, no grupo “Lutar pelo Melhor”, mostrando que nada mudou em função do anúncio do acordo de Temer com os representantes. “O que eles vão fazer agora é usar esse acordo contra nós, ameaçando com multas”, disse Jaime.
Em Barueri, na Grande São Paulo, o caminhoneiro e empresário Claudinei Habacuque, dono de quatro caminhões de carga refrigerada, colocava-se à frente de um piquete que fechou a entrada do terminal de distribuição de combustíveis da Petrobras. Ele lidera o bloqueio que impede a saída de caminhões que abastecem a cidade de São Paulo, e tenta despontar como liderança nacional. Habacuque participa de mais de dez grupos de WhatsApp e, na terça-feira, fez uma transmissão ao vivo em seu Facebook que chegou a mais de 2 milhões de visualizações. O caminhoneiro relembra que, também convocada pelas redes, uma paralisação já estava marcada para 10 de maio. Mas não houve adesão. A virada veio na segunda-feira, 21 de maio, após o terceiro aumento consecutivo no preço do diesel em menos de uma semana, que coincidiu com o período do mês em que a carga a ser transportada diminui. Cinquenta caminhões pararam na Rodovia Castelo Branco, em São Paulo, e dali em diante a paralisação ganhou força.
Um dos grupos de WhatsApp dos quais Habacuque participa, segundo disse, é composto apenas por líderes de bloqueios. São mais de 200 inscritos. As mensagens vão se acumulando à medida em que mais caminhoneiros aderem ao movimento. Habacuque se diz surpreso com a proporção que tomou a paralisação – ele acreditava que o governo tomaria medidas efetivas rapidamente. Agora, com a força que ganhou o movimento, ele afirma que os protestos só acabam quando o diesel chegar na bomba a 3 reais, durante pelo menos seis meses. Os preços hoje estão entre 3,90 reais e 4,10 reais em São Paulo. Para encher o tanque de um caminhão, que na média tem capacidade de mil litros, gasta-se mais de 3 mil reais. Por isso, Habacuque insiste em dizer que o preço do diesel a 3 reais é o único tema relevante da pauta, e não os descontos de 10% por 30 dias, como o governo ofereceu.
Ser reconhecido como representante do movimento não tem sido uma tarefa fácil. Assim como não são reconhecidos os negociadores que se reuniram em Brasília – representantes de confederações e sindicatos de transportadores de São Paulo, Distrito Federal, Minas Gerais, Espírito Santo e do Nordeste –, os próprios líderes locais não têm essa prerrogativa clara. Habacuque lidera um piquete em local importante, mas seu poder se restringe à região de Barueri. “O que qualquer um disser aqui, alguém pode dizer diferente em outro lugar, ou mais pra frente”, disse um outro caminhoneiro no bloqueio de Barueri, que pediu para não ter seu nome divulgado.
Sete líderes foram ouvidos pela piauí sobre quem personificaria melhor uma representação nacional, mas não há consenso. Para Habacuque, por exemplo, é possível ter um líder por estado, mas não um nacional. O caminhoneiro André Almeida, que lidera todo ano uma romaria com dezenas de caminhoneiros a Aparecida do Norte, e atua nos piquetes em Guarulhos, explicou como vê a negociação. “O governo diz na televisão o que vai fazer e ficará sabendo se os caminhoneiros concordaram ou não quando os caminhões começarem a rodar pelo país”, disse.
Nos grupos de WhatsApp a percepção é de que o fôlego do movimento está longe de acabar. Nos grupos “Lutar pelo Melhor”, que reúne diversos líderes de bloqueios, e “Ajudando Caminhoneiros”, os integrantes lembram de como, às vezes, chegam a ficar parados por vinte dias quando o caminhão quebra. Não são cinco dias sem faturar que vão abalar seus orçamentos, dizem. “Caminhão quando quebra câmbio, quebra motor, a gente fica 30 dias na oficina, quem já passou por isso sabe. E o cara sobrevive malandro”, escreveu um caminhoneiro, com celular de São Paulo. Também apareceram nos grupos avisos de que ninguém atualize o WhatsApp para evitar alguma estratégia do governo para “bloquear a comunicação”.
À medida que os dias passam, outros temas surgem nas discussões. Não é só o diesel. Em frente à unidade da Petrobras em Barueri, a conversa nesta quinta-feira girava em torno até do abuso de poder dos bancos, de privatização ou da impunidade na Justiça. Nos grupos de WhatsApp, os manifestantes também se gabam que o apoio ao movimento está ganhando força entre a população por não haver bandeiras da CUT, camisas do PT, gritos de Lula Livre, MST, apoio de artistas. E, após o anúncio do acordo pelos ministros de Temer, a pauta que circulou incluía a renúncia do presidente da República e eleições antecipadas.
Se por um lado não há sinal de movimentos sociais, por outro são fortes os indícios de apoio ao pré-candidato à Presidência Jair Bolsonaro e palavras de ordem de “Intervenção Já”. Citando a reivindicações econômicas da classe, Habacuque afirmou que a força do movimento está em “não ser político”. Ele mesmo, porém, já foi candidato a deputado federal em 2014, pelo PSL, o mesmo partido de Bolsonaro, e não esconde o apreço pelo pré-candidato. “Sabe que todo caminhoneiro vota no Bolsonaro, né?”, disse. “É porque o plano dele para nossa classe é claro. Ele vai nos valorizar e cuidar da segurança.” E onde está esse plano? Segundo o líder do bloqueio em Barueri, o responsável por essa parte do programa de governo de Bolsonaro é o empresário Emílio Dalçóquio, dono de uma transportadora em Santa Catarina com frota de 600 caminhões, e que apoia publicamente o movimento e a candidatura do militar reformado. Procurado, o empresário não atendeu ao pedido de entrevistas até a publicação desta reportagem.
Nos quatro grupos de WhatsApp dos caminhoneiros, o apoio político ao pré-candidato do PSL é evidente. “Galera quem aí apoia o Bolsonaro? Quem quiser dá uma passadinha no meu Insta e segue lá”, afirmou um integrante dos “Carreteiros na Luta”, um grupo com 257 participantes, quase todos de Santa Catarina. O slogan de “Intervenção Já” também tem sido usado com frequência pelos integrantes desse grupo, compartilhado junto com vídeos de militares incentivando os caminhoneiros a não desistirem. No grupo catarinense de WhatsApp, integrantes chegaram a dizer que uma intervenção está sendo organizada para a semana que vem. “Vamos parar o Brasil. Vamos parar tudo. Você que quer uma intervenção civil e militar saia às ruas e dê apoio aos caminhoneiros”, diz um dos vídeos. Fotos de faixas com pedidos de intervenção, penduradas nos caminhões, também circularam nos grupos, especialmente após o anúncio de Temer de usar as forças nacionais.
Em alguns bloqueios, como em Barueri, o comentário era de que muitos patrões apoiam a paralisação. A participação e o apoio de empresários do setor pode configurar um locaute, o que é ilegal. Na noite de quinta-feira, em uma entrevista à Folha de S.Paulo, o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, levantou essa suspeita. O ministro citou casos de empresários que se recusaram a fazer transporte de caminhões-pipa mesmo com escolta da Polícia Rodoviária Federal, o que configuraria um locaute. Nos grupos, menções a Jungmann só apareceram nesta sexta-feira, depois do pronunciamento de Temer. É chamado de “comunista”.