Esta reportagem integra a série Má alimentação à brasileira, sobre a fome e a epidemia de obesidade que afetam a população mais pobre do país. Participaram Rubens Valente (reportagem), Plínio Lopes (checagem), Fernanda da Escóssia (edição) e José Roberto de Toledo (coordenação).
Para chegar à casa da indígena Cristina Mayoruna, 18, é preciso caminhar por uma passarela de madeira de 40 cm de largura, que balança enquanto o visitante caminha e dá a impressão de que pode desabar a qualquer momento – o que causaria uma queda de cerca de dois metros até o terreno pantanoso. Cristina atravessa a passarela várias vezes por dia. Ela vive com a família no bairro de Portelinha, um conjunto de palafitas sem ruas nem esgotamento sanitário em Atalaia do Norte, no Amazonas. Na época da cheia, o alagamento atrai o mosquito transmissor da malária. Atalaia, com cerca de 3 mil casos ao ano, é considerada área endêmica da doença.[i]
Na casa de Cristina vivem doze pessoas, das quais seis são adultos e seis são crianças. Todos dormem em redes em apenas três cômodos: cozinha, sala e quarto. Não há geladeira nem televisão. No sábado, 25 de junho, a piauí visitou a casa dela na companhia do secretário de assuntos indígenas da Prefeitura de Atalaia, Jaime Mayoruna, que alertou sobre “um dos casos recentes mais graves” da fome que chegaram ao seu conhecimento. Como representante da prefeitura, Mayoruna disse que é constantemente procurado por indígenas (e não indígenas) que lhe pedem cestas básicas, ajuda financeira, comida. O caso de Cristina é apenas um entre muitos no mesmo bairro, disse Jaime.
Cristina e sua família haviam acabado de almoçar. Pedimos para ver as panelas. A refeição fora apenas arroz com farinha de mandioca. Em muitas partes da Amazônia, a farinha também é servida na região como uma bebida, conhecida como jacuba ou xibé, misturada à água e ao açúcar. Na prática, um truque para enganar a fome. “Hoje nós comemos só arroz e farinha. Ontem nós não adiantemos (conseguimos) nada. Só farinha com arroz. Nós fomos atrás do vizinho [ver] se conseguia ao menos 20 reais, mas ele disse que não tinha também. Aí só foi arroz e farinha mesmo”, confirmou Cristina, que tem dois filhos.
Perguntei quantos dias a família passa sem comer frango, carne bovina ou peixe. “Cinco dias, seis dias, às vezes nós passa.” E nesses cinco, seis dias, o que comem? “É arroz, farinha mesmo.” “Às vezes nós passa fome. No outro dia nós come quando o vizinho consegue uma comida. Nós passa dificuldades. Às vezes nós trabalha, às vezes o vizinho chama para dar um dinheirinho. Aí nós compra um franguinho. No outro dia cedo, sem tomar café, de tarde, os alunos que estudam vai assim mesmo para a escola. […] Os meninos tomam jacuba.”
A situação da família de Cristina é cada vez mais comum na região, contrariando a ideia de que na Amazônia, uma região de recursos naturais abundantes, ninguém passa fome. A insegurança alimentar persiste na região.O sudoeste do Amazonas tem a maior proporção de crianças dos 5 aos 10 anos de idade com altura abaixo do esperado, como mostram dados do Sisvan (Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional) compilados pela piauí e pela agência de dados públicos Fiquem Sabendo. O Sisvan é um programa do Ministério da Saúde que acompanha crianças atendidas pelo SUS, incluindo as mais vulneráveis usuárias de programas sociais como o Auxílio Brasil. Os dados mostram que, em nove estados, a taxa de crianças de 5 a 10 anos em situação de magreza ou magreza acentuada aumentou nos últimos dois anos.
Atalaia do Norte (AM) tem o pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) entre os 62 municípios do estado do Amazonas, segundo dados de 2010. O estado tem a maior população indígena do país. De um total de 1.027 crianças de 0 a 5 anos pesadas em Atalaia em 2021 pelo Sisvan, 89 tinham “magreza acentuada” (5% do total, portanto acima dos 3% da média nacional no período) ou “magreza” (4%, também acima dos 3,4% da média nacional).
Tereza Mayoruna, 25, cunhada de Cristina que compartilha a mesma casa, reiterou as dificuldades cotidianas para alimentar as crianças. “Não tem nada, não tem nada. Criança quer comer bolacha com leite. Eles querem comer com doce.” Os dois homens adultos da casa estavam fora, trabalhando, “carregando tábuas”, disse Cristina, “para comprar ao menos umas coisinhas”. Quando conseguem malhadeiras, redes de pesca indispensáveis na Amazônia, e que na região podem custar 150 reais a mais curta, os homens também procuram pegar peixes no Rio Itaquaí. Mas a família está sem malhadeira. Além desses recursos, a família vive dos programas sociais como o extinto Bolsa Família, hoje Auxílio Brasil, mas o valor, segundo Cristina, é insuficiente para as despesas do mês. A inflação corrói o poder de compra numa região em que um frango congelado estava custando, em junho, de 35 a 57 reais, segundo Jaime. O IBGE estimou, em 2020, que apenas 7% da população de Atalaia – que tinha, em 2021, um total de 20,9 mil habitantes – estava economicamente ocupada.
Cristina fala em sua língua com Jaime, que traduz: “Ela está falando que algumas vezes o marido vai trabalhar por aí, fazendo alguns bicos, ganhando uma coisinha, e comprando as coisas para a criançada comer. E outras vezes as crianças vão para a escola com fome mesmo, sem comer sem nada. E ela fica preocupada com isso, [por isso] ela vai atrás da prefeitura e da Funai (Fundação Nacional do Índio). As pessoas às vezes pensam que a gente está bem aqui [na Amazônia], mas na verdade a gente está passando perrengues mesmo de alimentação. E outras vezes, você come um dia, depois fica dois, três dias sem comer nada, ficam as crianças com fome, chorando, até ficam doentes”, disse Jaime.
Mãe de duas crianças, Cristina disse que se mudou para Atalaia há três anos, vinda de uma aldeia Mayoruna, a Fruta-Pão. Ela acompanhou seu pai e irmãos menores, que estão matriculados em escolas da cidade. Passa meses em Atalaia e no final do ano e nas férias escolares volta para a aldeia. Lá, sim, encontra comida. “Nós indígenas não temos o costume de estudar, de leitura, é outra cultura. A gente aprende na nossa cultura, na nossa língua. O que que a gente aprende lá [na aldeia]? A gente pesca, tem lago, peixe, um monte de coisa lá. Ou então vai caçar, a gente come. Criança hoje em dia até vai estudar, mas adulto não vai e continua não fazendo isso. Só que a criança vai. O ensino [na aldeia] é muito precário”, disse Jaime.
Quando as famílias chegam às cidades, contudo, se deparam com a insegurança alimentar. O indígena recém-chegado “não fala português, vai levar um tempo para uma criança ou pai ou mãe aprender português”, disse Jaime. “Várias famílias indígenas compraram sua casa, com seu dinheiro, com seu trabalho. Só que aí entra nesse rumo [da pobreza]. Se ele conseguir dinheiro, ele vai lá e bebe bastante também, vários indígenas bebem, e tem grupo que vai para a igreja.”
A história de Cristina se repete em várias partes da Amazônia, segundo servidores da Funai ouvidos pela piauí sob a condição de não terem seus nomes publicados. Eles temem retaliações do comando do órgão, em Brasília. Jaime confirma que o êxodo dos indígenas para a cidade é um fenômeno que se agravou recentemente em Atalaia. Segundo ele, o número de indígenas morando na cidade, mesmo que por períodos durante o ano, saltou de cerca de 1 mil, há dez anos, para 2 mil atualmente. Desse total, cerca de 500 são estudantes.
“Os indígenas aqui são ricos nas aldeias e miseráveis nas cidades. A mesma pessoa que você vê como um indigente na cidade, sem tomar banho, com dificuldade de comer, na aldeia um dia você a reencontra bem, de banho tomado, comendo bem, com fartura de peixe, macaxeira, banana”, disse um servidor em Eirunepé (AM), uma cidade com estimados 36 mil habitantes, para onde convergem habitantes de quatro terras indígenas da região, em especial os madihas (pronuncia-se madjirrás), também conhecidos como kulinas. Cerca de 1,2 mil indígenas hoje vivem no meio urbano de Eirunepé, segundo o funcionário.
Apesar de manterem contato com a sociedade não indígena desde o final do século XIX, os madihas são considerados de recente contato e tiveram suas primeiras terras demarcadas apenas nos anos 80 e 90. A ampla maioria não fala português. Na cidade, sofrem com má alimentação e abuso de álcool. Nas aldeias, porém, vivem com comida farta, têm uma cultura rica, de muita musicalidade, além de atividades de pesca e caça, sempre realizadas em grupos.
O mayoruna Waki, conhecido como “Kaissuma”, nome de uma bebida indígena, é um importante líder na Terra Indígena Vale do Javari, um santuário ecológico de 8,5 milhões de hectares equivalente, em área, a Portugal. Os mayorunas, que se autointitulam matsés, são mais de 1,7 mil no Brasil e 2,5 mil no vizinho Peru. Waki vive na aldeia Lobo e era um grande amigo do indigenista Bruno Pereira, assassinado no dia 5 de junho ao lado do jornalista britânico Dom Phillips num trecho do Rio Itaquaí, a cerca de uma hora e meia de barco da cidade de Atalaia. De tempos em tempos, Waki precisa vir a um centro urbano, como Atalaia ou as vizinhas Benjamin Constant e Tabatinga, para resolver problemas burocráticos dele e dos indígenas de sua aldeia. Até Atalaia é uma viagem de cinco, seis dias em um barco pequeno, que na região se chama pec-pec, apelido que imita o barulho do motor.
Perto do rio, encontrei Waki, a quem já havia conhecido em novembro de 2013 durante uma assembleia na terra indígena Vale do Javari. Agora ele estava vivendo no seu canoão – que apesar do apelido é uma pequena embarcação, com bancos de madeira e coberta por uma lona azul – parado há vários dias no porto de Atalaia. Fazia um mês que comia e dormia no barco junto com seis parentes. Só voltaria à aldeia em 25 de junho. Na noite anterior à partida, uma indígena preparava o jantar, à base de salsichas recortadas, na própria canoa, que era ao mesmo tempo cozinha e quarto de dormir.
“Aqui não está bom, não, ruim demais. Aqui não tem caça, comida. Só na aldeia, melhor. Aqui muito difícil conseguir caça. Nem barco tem. Muito ruim, ruim demais. Fiquei muito assustado. Não tem barco [da] Funai, não tem. Não tem ninguém. Ajuda de Funai não tem. Eu fico nessa canoa assim. É assim. Não tem bom não. Um mês aqui ficar [fiquei]. Muito ruim de compra de gasolina, difícil, dinheiro não tem. Isso é assim”, lamentou-se Waki.
As viagens do líder mayoruna para Atalaia são bastante caras. Ele disse gastar de ida e volta quatro timbos, como são chamados na região tonéis de gasolina de 70 litros. No lado peruano, o litro da gasolina podia ser adquirido por 8 reais no mês de junho, o que projetava um gasto total, para Waki, de 2,2 mil reais somente com combustível. Na conta final ainda precisam entrar os gastos com alimentação. Esses valores se replicam em todas as longas viagens de barco que partem das aldeias do Vale do Javari. Há comunidades muito mais distantes que a do Lobo e que demandam oito, nove dias de viagem de barco pequeno. Os indígenas vão a cidades como Atalaia e Eirunepé por outros motivos, além da busca pela educação formal. Um deles é exatamente o Auxílio Brasil – seja para se cadastrar no programa, seja para receber o dinheiro.
A Caixa Econômica tem permitido que os indígenas recebam o auxílio acumulado a cada três meses, e não mês a mês. Isso evita que o indígena tenha que estar mensalmente em Atalaia. Mesmo assim são necessárias no mínimo quatro viagens de barco por ano. Isso tudo só para retirar o Auxílio. Mas boa parte dos recursos, segundo os indígenas, já é gasta na própria viagem de retorno.
Em Atalaia do Norte, uma grande fila, que pode demorar mais de hora, se forma logo cedo na porta da lotérica São Sebastião nos dias de pagamento do Auxílio Brasil. É o lugar credenciado para fazer os pagamentos do Auxílio porque inexiste agência da Caixa Econômica Federal na cidade. A agência mais próxima fica em Tabatinga, a 40 minutos de carro de Atalaia (valor do táxi: 80 reais ida e volta por passageiro) mais 30 minutos de baleeira, um tipo de barco rápido (valor da passagem: 70 reais ida e volta por pessoa). Uma das usuárias do Auxílio, a dona de casa Gleici Augusto da Costa explicou: “Você gasta para ir e voltar e às vezes fica sem nada.”
Aguardando na fila, a indígena Lucimar Kanamari, 23, viajou com mais quatro parentes durante três dias de barco da sua aldeia, a São Luís, até Atalaia só para receber o que chamou de “Bolsa Família”. Ela estima que sua família gastará ao todo, ida e volta, cerca de 300 litros de gasolina no seu barquinho pec-pec, ou 2,4 mil reais. “Eu recebo só 300 reais[do Auxílio]. Não dá nada pra comprar gasolina. Nem pra comprar rancho [comida]. Não tem dinheiro, não tem pra comprar gasolina.” Lucimar disse ter cinco filhos, o mais novo com 2 anos de idade. Dias antes, ela já havia sacado uma das parcelas do Auxílio. Com esse dinheiro comprou “açúcar, bolacha, leite, café e só. E sabão, óleo”.
Eu indaguei se na sua aldeia há muito peixe. “Tem, tem. Macaxeira tem. Farinha. Banana, tudo tem na aldeia. […] Não tá passando fome, não [na aldeia]. Tem peixe, tudo… anta, tudo animal que tem numa aldeia”, respondeu Lucimar. E por que a senhora precisa vir a Atalaia? “Por causa do Bolsa Família. Pra receber, meu filho gosta de roupa para ele ir para a aula. Eu comprei roupa do [para] meu filho, tudim, mochila, lápis, papel, caderno, eu comprei assim para ele. Por isso que eu vim para cá, para receber esse dinheirozinho.”
O aumento de peixes e animais de caça no interior da Terra Indígena Vale do Javari está associado à demarcação do território, ocorrida no final dos anos 90. A abundância agora atrai ainda mais pescadores e caçadores ilegais que já esgotaram as riquezas fora do território.
O servidor da Funai em Eirunepé citou algumas medidas essenciais para diminuir a fome e a miséria entre os indígenas que estão de passagem nas cidades. Entre essas medidas, melhorar o fluxo dos serviços – muitas vezes a burocracia “segura” o indígena na cidade por dias a fio, desnecessariamente – e ampliar a presença da Funai e de outros órgãos públicos federais na região a fim de oferecer serviços públicos nas aldeias, evitando os deslocamentos para as cidades.
Membro do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) por cinco anos e pesquisadora da Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), a médica Ana Maria Segall Corrêa disse que o governo federal precisa recriar meios de atender a população mais vulnerável em lugares de difícil acesso por todo o país, a começar pelo aumento do cadastramento das famílias. “Na época em que o Bolsa Família e as políticas do Fome estavam bem ativas, foi identificado que havia uma parcela grande da população que não acessava o Cadastro Único. Na região amazônica, as pessoas têm que pegar barco, viajar horas, dias, para chegar a uma cidade. Tanto indígenas quanto ribeirinhos. O que se fez? Os CRAs [centros de apoio] passaram a fazer buscas ativas para incluir essas famílias no cadastro. Quando se tem vontade política, não é difícil visualizar a fome”, disse Segall.
Durante o governo Bolsonaro foi criado um aplicativo para que as próprias famílias acessem a Caixa Econômica e façam seu cadastro – modelo que, para Segall, se torna virtualmente inviável no contexto da Amazônia. Mesmo em centros urbanos como Atalaia, a internet é precária. “Imagina, a pessoa vai precisar de um telefone para baixar o aplicativo, vai ter que ter o conhecimento de como baixar o aplicativo, de como fazer a inscrição, de como acessar, e ainda por cima mora num lugar que talvez nem tenha recepção de internet.”
Ex-presidente do Consea de 2017 a 2019, quando o conselho foi extinto por Bolsonaro, a nutricionista e pesquisadora Elisabetta Recine destacou que todas as ações de combate à fome, que em sua avaliação já vinham sendo reduzidas desde 2016, passaram por um profundo desmantelamento. “É evidente, desde 2016, a redução de orçamento dos principais programas, a extinção de equipes, de instituições etc. Isso se aprofundou muito a partir de 2019, a ponto de termos indicadores de segurança alimentar gravíssimos nesse momento. […] Em termos orçamentários tudo piorou profundamente, não só as ações específicas como o quadro econômico geral do país. Toda a rede de proteção social está extremamente fragilizada nesse momento, e foi além da pandemia como causa, tem a ver com uma falta de política ou política de desmantelamento.”
Alerta semelhante sobre o desmantelamento da rede de proteção social no país e as dificuldades de acesso ao cadastro também é feito pela historiadora Denise De Sordi, pesquisadora do programa de pós-doutorado do Departamento de Sociologia da USP (Universidade de São Paulo) e na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Para a pesquisadora, a volta do Brasil ao Mapa da Fome e a persistência da fome no país “é, em síntese, fruto de uma escolha política e econômica”.
Jaime Mayoruna, o secretário de assuntos indígenas de Atalaia do Norte, disse que o papel do governo federal na região para conter a fome e a desnutrição “é zero”. E os valores fornecidos pelo Auxílio Brasil são corroídos rapidamente pela inflação. “Tem o Bolsa Família para ajudar, tem o auxílio maternidade, só que é isso: é um valor que não sobrevive o mês inteiro. Passa dois, três dias só, no máximo uma semana, e depois não tem mais. Nas outras três semanas, a galera fica nessa situação. Um arroz, que comprava 3 kg, [agora] só consegue comprar 1 kg. Açúcar a mesma coisa. Frango então, nem fala. O peixe está 15 reais o quilo”, disse Jaime.
Mayoruna disse que costuma procurar apoio de empresários locais para doação de cestas básicas, mas muitas vezes a resposta é negativa. “Não é como na cidade grande, em que as pessoas divulgam e as pessoas contribuem. Aqui não, aqui a maioria da população também tem essa carência. Você vai lá pedir e [ouve] ‘não, também não tenho. Eu quero também’. Falando em cesta básica, a gente precisa de apoio das outras instituições para tentar ajudar nossos parentes.”
Jaime é procurado também por famílias não indígenas atrás de alimentação. Normalmente isso ocorre quando circula a informação na cidade de que a prefeitura está distribuindo cestas básicas para os indígenas. “O indígena só está se aprofundando cada vez mais nessa situação de fome, né, de falta de comida, falta de emprego. [Mas] tem muitos não indígenas aqui com família que não têm realmente nada pra comer. Quando a gente distribui cesta básica para os indígenas, muitos não indígenas falam ‘pô, tô com fome, meu filho não tem o que comer, dá pra gente aí que a gente também é indígena’.”
Em uma nota divulgada em junho para divulgar realizações no Vale do Javari – várias das afirmações da nota foram contestadas por lideranças indígenas da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari) e por servidores da Funai – , a Funai afirma ter distribuído “1,3 milhão de cestas básicas desde o início da pandemia” no país, que teriam atendido “200 mil famílias indígenas”. O auxílio alimentar foi decidido no decorrer de uma ação movida no STF (Supremo Tribunal Federal) por organizações indígenas, mas sua distribuição foi marcada por atrasos e dificuldades, como mostrou a piauí. Quando aplicada indistintamente ao Vale do Javari, contudo, a distribuição trouxe novos problemas. “Nas aldeias, os indígenas não querem feijão, arroz, café, querem malhadeira para pesca, cartucho para caça. E para os indígenas que estão na cidade, as cestas não podem ser distribuídas, por força legal. Então temos cesta onde não precisamos e não temos cesta onde precisamos”, disse um servidor da Funai na região.
Dois dias depois da entrevista em sua casa, Cristina Mayoruna apareceu na porta do hotel em Atalaia pedindo ajuda, qualquer ajuda, dinheiro ou comida. O promotor de Justiça de Atalaia, Elanderson Lima Duarte, soube da história da família e disse que vai fazer algo a respeito. Na semana seguinte, Jaime levou mais dinheiro e uma cesta básica. Todos sabem que será apenas um respiro na longa corrida contra a fome.
A insegurança alimentar está longe de ser exclusiva entre os indígenas em Atalaia. As dificuldades estão por todo lado. Em um terreno baldio a cerca de 50 metros da sede da prefeitura, em uma das ruas mais movimentadas da cidade, Francisca de Souza do Carmo, 53, e sua família passam o dia quebrando pedras com martelos e marretas. Ela vende a 4 reais cada lata de pedrinhas, que podem ser usadas para pequenos reparos domésticos. Indago se ela enfrenta problemas de comida. “Às vezes. Porque quando a gente tem o dinheiro, a gente compra. Quando não tem… né?” Francisca, que é mãe de quatro crianças e adolescentes, de 10 a 16 anos de idade, disse que tem dia “que a gente merenda alguma coisa” na rua, e depois só janta. Come frango, principalmente, e peixe. Pergunto se sente fome. “Sinto, às vezes eu sinto vontade de comer. Mas às vezes nem sinto, porque passo o dia aqui.”
Quando passa fome, Francisca disse que sente “uma tontícia”. “Tontícia e sinto as minhas carnes tudo faltar. Porque eu tenho problema de pressão. Aí quando eu passo da hora de me alimentar, eu fico assim. Aí quando eu me alimento passa tudo.”
*
O repórter viajou a Atalaia do Norte pela Agência Pública de Jornalismo Investigativo