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Felicidade ostentação

Sempre admirei o funk, o carioca mesmo. O do James Brown também, mas isso é óbvio. Meu pai era DJ de baile de rua, era impossível não ouvir James Brown. Aliás, foi James Brown, pai da clássica Sex Machine quem me fez viajar e parar no funk carioca novamente. Talvez o lance mais mágico da música seja a viagem no tempo que ela proporciona, principalmente quando você a escuta livremente.

Emicida | 19 nov 2013_23h59
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Sempre admirei o funk, o carioca mesmo. O do James Brown também, mas isso é óbvio. Meu pai era DJ de baile de rua, era impossível não ouvir James Brown. Aliás, foi James Brown, pai da clássica  quem me fez viajar e parar no funk carioca novamente. Talvez o lance mais mágico da música seja a viagem no tempo que ela proporciona, principalmente quando você a escuta livremente.

Eu disse em Ubuntu que eles não vão entender que nossos livros de história foram discos. James Brown foi livro. Cantado. Acho foda. No auge dos conflitos raciais na América do Norte um preto cantar I feel good (“Eu tô bem”) é subversão demais, porque sim, nossa felicidade ofende, infelizmente.

As pessoas se acostumaram a ver os pretos cabisbaixos, sempre tristes nos cantos do mundão. Ao esbarrar com o contrário disso, criminalizam nosso sorriso em vez de desprezar aquilo que gera nossas lágrimas. James Brown foi na contramão. Isso é funk. O funk carioca foi na contramão, e isso também é James Brown. Sair do lugar-comum é para quem tem coragem, e nem toda subversão se faz entender instantaneamente. Às vezes isso demora anos para acontecer, às vezes nunca acontece.

Tive em minha juventude um grupo de amigos radicais que abominava a associação entre o funk carioca e James Brown. Eu, como bom curioso que sou – característica essa que jamais devemos perder -, fui pesquisar sobre isso, pois costumava ver DJ Marlboro traçar esse paralelo nas entrevistas.

Atitudes, ideias e até alguns passos de James Brown considerados sexualmente apelativos me faziam sentir que Afrika Bambataa bebeu daquela fonte para criar o Miami Bass. Para os desavisados, Miami Bass é o pai do funk carioca. James Brown, com seu funk, é o avô.

Agora quer saber por que voltei pra tudo isso? Comprei em Portugal um disco de vinil chamado Hinos revolucionários de Moçambique, que possui o subtítulo de “Coral das forças populares de libertação de Moçambique”. São canções de autoestima, que visavam levar ao povo o orgulho de sua origem e inspirar a luta contra os colonizadores. Nos anos 60, Moçambique ainda era colônia de Portugal. A independência não tardaria, e a música foi o livro mais uma vez.

As editoras sempre foram dos brancos, aliás, ainda são. A forma de as guerrilhas de forte influência Marxista levarem a mensagem de luta ao povo era usar a tecnologia griot, através do canto e da fala. Ao ouvir e reouvir esse disco na última semana, liguei minha bateria eletrônica e coloquei instrumentais de funk carioca, volt-mix e tamborzão em cima dos cantos de libertação e me emocionei ao ouvir ambos se complementarem, como se o coral fosse a capella e o tamborzão carioca fosse o instrumental em uma mesma faixa.

A busca pelo tempero nacional para as batidas fez com que os funkeiros chegassem aos tambores brasileiros, aos samplers de escola de samba, de candomblé, ao congo de ouro. Eles redefiniram o Miami Bass e o devolveram bem melhor ao mundo. Com o Miami Bass, já é difícil ficar parado. Com o funk carioca é impossível. Como diz meu professor de teoria musical, “a pessoa tem que ser muito ruim para não bater nem o pezinho ao ouvir isso”.

Rap e funk são irmãos, crias de Afrika Bambataa, frutos da mesma árvore, vítimas das mesmas perseguições (principalmente em terras brasileiras). Com todas as variações que possuem, toda sua diversidade, possuem a alma do I feel good do nosso tempo.

Embora seja alvo de muitas críticas recentemente, o funk ostentação é também um fruto orgulhoso desta mesma árvore, pois em uma era consumista como a nossa o “ter” virou “ser”, e isso não é culpa da favela. Logo, quando jogam o cordão pra fora e dizem que tão “de nave no rasante”, meus irmãos do funk estão falando “eu tô bem” como James Brown. Repito: subversão nem sempre é entendida instantaneamente. Vou além para dizer que no funk ostentação também leio que a luta por liberdade vem nesse canto. E quem transformou dinheiro em sinônimo de liberdade não foi a favela.

Estamos na semana do Dia 20 de Novembro, no mês da consciência negra, de reforçarmos nossas convicções e seguirmos lutando por igualdade. A luta contra o racismo não é nada além da luta por igualdade. A diáspora africana pariu e manteve unida a essência dos guerrilheiros de libertação de Moçambique, o Miami Bass de Bambataa, o funk de James brown e o tamborzão carioca. Antes de abominar, procure entender a história que os livros não trazem, a versão do leão e não a do caçador.

Zumbi dos Palmares, nosso herói, sorri de algum bom lugar ao saber que até hoje o tambor é a única rede social que conseguiu juntar e extrair o melhor das pessoas.

* Em tempo, participei da marcha “Por que o senhor atirou em mim?”, em protesto contra a morte do jovem Douglas, de 17 anos, assassinado pela Polícia Militar do Estado de São Paulo há duas semanas. Douglas era um menino trabalhador e honesto da Zona Norte que teve sua vida interrompida pelo racismo, pela violência policial, pelo ódio de classe, pela hipocrisia e, até o momento, com a conivência do Estado. Reforço aqui que neste 20 de Novembro nossos motivos pra lutar ainda são os mesmos. Contra o extermínio da juventude preta e periférica no Brasil. Por que vocês atiram em nós?!

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