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    Caymmi manda um beijo para a câmera, em uma das cenas do documentário de Daniela Broitman Foto: Divulgação

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Celebrações de abril

Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos e o 29º Festival É Tudo Verdade

Eduardo Escorel | 27 mar 2024_10h29
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Invertendo a cronologia de dois eventos marcados para abril, começo por Dorival Caymmi Um Homem de Afetos, de Daniela Broitman. O documentário participou, em 2019, da mostra competitiva do 24º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade. Cinco anos depois, chegará no próximo dia 25 a salas de cinema em treze cidades, Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Porto Alegre e Recife entre elas. Celebrarei, em seguida, o 29º Festival É Tudo Verdade, que ocorrerá entre os dias 3 e 14 no Rio de Janeiro e em São Paulo, com itinerância posterior em Belo Horizonte.

Embora a pandemia e a retenção da verba de distribuição no governo passado tenham impedido o lançamento de Dorival Caymmi Um Homem de Afetos na época devida, o documentário resiste bem à passagem do tempo e estreará agora, ileso, na semana em que o compositor e cantor faria 110 anos. Falecido em 2008 aos 94 anos, o multiartista Caymmi – também poeta e pintor, além de ator – surge completo na tela, apresentando seu gênio musical e personalidade cativante.

Conforme Danilo, filho mais moço de Caymmi relata no filme, seu pai se definia como “um galã rústico”. Entre outras atuações, ele fez o papel do estivador João de Adão em Capitães da Areia (The Sandpit Generals, de 1971, que passou a se chamar The Defiant e, depois, The Wild Pack). Dirigido, escrito e produzido por Hall Bartlett, o filme inspirado no romance de Jorge Amado é falado em inglês. “Ele aparece empurrando uma jangada”, conta Danilo. “Difícil ver Dorival Caymmi empurrando uma jangada de pescador. Um negócio assim que, para quem conhece, é gozado. Não dá para entender.”

Na verdade, além de João de Adão carregar com outros homens o corpo da personagem morta para que seja acomodado em um pequeno veleiro, na sequência final ele apenas puxa o barco um pouco para retê-lo na beira da praia e, em seguida, conduz a embarcação mar adentro empurrando-a com uma vara.

Mais importante, porém, é o fato de Capitães da Areia ser horrível, para dizer o mínimo. O filme desmerece tanto a excepcional fotografia de Ricardo Aronovich quanto a sempre esplêndida música de Caymmi. A trilha inclui a toada É Doce Morrer no Mar em versão instrumental e cantada ao violão por João de Adão, assim como Vou Ver Juliana, cantada por Dalva (Eliana Pittman), acompanhada por João de Adão ao violão, além de um pequeno conjunto de instrumentistas, todos cantando o estribilho “pra vê Juliana/pra vê Juliana”.

Apesar de péssimo ou, quem sabe, por isso mesmo, quando foi exibido na União Soviética, em 1973, Capitães da Areia foi “assistido por cerca de 43 milhões de pessoas”, segundo Elena Beliakova, pesquisadora da Universidade Estatal de Cherepovets, entrevistada pela BBC anos atrás. “Deixou profundas marcas em toda uma geração de russos”, diz a reportagem. Beliakova, tradutora da obra de Jorge Amado, declara ter assistido ao filme “umas duzentas vezes”. Para ela, trata-se do “maior filme de todos os tempos e de todos os países”!

No que se refere a …Um Homem de Afetos, desde a primeira sequência, o documentário faz justiça plena à grandeza de Caymmi. Acordes de violão, o famoso vozeirão e a música assobiada se alternam na trilha sonora da abertura. As imagens iniciais são de uma construção em ruínas. O refrão repetido convoca para chamar o vento (“Vamos chamar o vento/Vamos chamar o vento”) e vemos, em seguida, Caymmi, pela primeira vez, no registro inédito feito na casa de um grande amigo, em 1998. Na sua maneira única de ser, ele revela sua face sedutora e o manejo afetado da língua portuguesa de que era capaz, sempre com boa dose de humor.

Enquanto alisa os cabelos brancos com as mãos, Caymmi diz:

“Então vocês têm impressão de que eu vou sair bonito? Porque eu estou com impressão de que estou um pouco idoso. Tem uma fase da vida que a gente quer ser bonito. Depois, quando eu era adolescente, eu era assim: ‘ele é muito bonito!’ Foi acrescentado o ‘muito’. E eu acreditei. Então, eu vivia me tratando assim, parecia… comparando mal, um Rodolfo Valentino. Um chapéu, assim, meio canotier, né? Então, aquela gravata muito bem-posta, mas no decorrer desta vidazinha, de menino até hoje, nesta idade em que estou, eu carrego minha dose natural de simpatia porque é reflexo de vida interior. Eu, vaidosamente, gosto, uma dose, assim, gosto de mim. Não vai egoísmo nisso porque eu aprendi a gostar de mim gostando de outros. Né? De outras pessoas. É como se aprende a gostar.”

O trecho assobiado de O Vento que segue continua na cartela com o título do documentário, e Caymmi retoma a palavra:

“Eu sempre gostei muito dessa expressão: ‘Oi, nosso Caymmi.’ ‘Nosso.’ Essa coisa de propriedade, assim, com esse lado doce.” Passaram-se apenas 2’47” iniciais de …Um Homem de Afetos e o espectador até poderia pensar já ter visto o suficiente. Hipótese absurda, pois há ainda mais de vinte preciosidades de Caymmi por ouvir.

Transcorridos os cerca de 91’ restantes do filme, o refrão convocando para chamar o vento e o assobio em seguida são repetidos: “Vamos chamar o vento/Vamos chamar o vento.” Aos 88 anos, Caymmi manda um beijo, primeiro, para si mesmo. Depois, com uma série de beijos, parece estar se despedindo de quem o está gravando e, por extensão, de quem estiver vendo sua imagem gravada.

Se fosse o caso de fazer uma ressalva ao documentário de Broitman, lamentaria apenas a inclusão de elogios supérfluos, mesmo quando vindos de grandes músicos, como Caetano Veloso e Gilberto Gil. A essa altura, Caymmi prescinde de encômios.

 

No 29º Festival É Tudo Verdade, que terá sessões de abertura no Rio, dia 3 de abril, e em São Paulo, no dia seguinte, 77 filmes de 34 países serão exibidos em sessões gratuitas. Há muito a ver ou rever na programação, disponível em https://etudoverdade.com.br/br/home/.

O Festival exibe os filmes em competição para a imprensa com antecedência, mas só autoriza a publicação de críticas no máximo até 48 horas antes de serem exibidos. No caso desta coluna quinzenal, portanto, não seria possível publicar nada antes do início de abril, mês em que, no entanto, estarei de férias. Eventuais comentários ficam para 8 de maio, quando voltarei à ativa.

Por enquanto, o que é possível recomendar são as retrospectivas Mark Cousins e Thomaz Farkas, 100; os filmes da mostra Clássicos É Tudo Verdade; além das homenagens a Robert Drew (pelo centenário do cineasta americano) e aos 50 Anos da Revolução dos Cravos. É um conjunto para nenhum cinéfilo botar defeito.

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