“Não vai ter autódromo em Deodoro. É meu compromisso com os ambientalistas”, disse o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, durante entrevista à rádio BandNews, na primeira semana de 2021. Recém-empossado para o terceiro mandato à frente da cidade, Paes explicou haver se comprometido com o Partido Verde – que o apoiou durante a campanha eleitoral – a encontrar outro lugar que não a Floresta do Camboatá para a construção de um novo autódromo. Preserva-se, assim, uma área verde de 2 milhões de metros quadrados no bairro de Deodoro, Zona Oeste carioca, onde vivem mais de 180 mil árvores e ao menos dezoito espécies ameaçadas.
A declaração do prefeito representou a pá de cal em uma batalha de Davi e Golias travada nos últimos anos entre o consórcio Rio Motorpark, que tentou construir um autódromo de 697 milhões de reais sobre a última área plana de Mata Atlântica no município do Rio, e a sociedade civil, que defendia o pequeno bioma por meio dos Ministérios Públicos Federal e do estado e do Movimento SOS Floresta do Camboatá. A afirmação representou, ainda, uma rara vitória ambiental em um cenário generalizado de devastação ecológica.
Não foi uma disputa fácil. Em junho de 2019 – ou seja, apenas um ano e meio atrás – o presidente Jair Bolsonaro se deixou fotografar apertando a mão do empresário norte- americano Chase Carey, CEO da Fórmula 1 e um dos interessados na construção do autódromo. O ex-juiz Wilson Witzel, à época governador em exercício do Rio de Janeiro e aliado do clã presidencial, também estava presente no encontro. Bolsonaro aproveitou a ocasião para declarar que a capital fluminense tinha “99% de chance ou mais” de sediar a Fórmula 1 a partir de 2021. De quebra, a empreitada ainda contava com o apoio do então prefeito Marcelo Crivella – afinal, era o poder municipal que havia cedido a área à Rio Motorpark – e com o olhar generoso do então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, que não se furtou em publicar uma liminar favorável ao autódromo. Um Golias e tanto.
Cravada no meio da malha urbana, em frente à Avenida Brasil, a Floresta do Camboatá resistiu à expansão imobiliária ao longo de décadas por ter abrigado um paiol e um campo de treinamento do Exército. Com a construção do Parque Olímpico, o autódromo de Jacarepaguá foi destruído e o bioma virou moeda de troca para os viúvos da antiga pista de corrida. Ironia do destino: a decisão que previa a instalação do novo autódromo na floresta foi assinada pelo próprio Eduardo Paes em 2010, durante seu primeiro mandato à frente da prefeitura. Mas a história realmente engrenou em 2017, quando Crivella, seu sucessor, lançou um edital para a construção da pista. O vencedor e único concorrente da licitação foi o empresário mineiro JR Pereira, que não acumulava nenhuma experiência com eventos esportivos, mas carregava um histórico de calotes e ações na Justiça. Uma de suas empresas, a Crown Processamento de Dados, faliu deixando uma dívida de 24,7 milhões de reais com a União.
Desde então, houve várias tentativas de acelerar o rito de licenciamento ambiental, a fim de dar início às obras. Em março de 2020, o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), responsável por julgar o licenciamento, tentou marcar uma audiência pública presencial com apenas dois dias de aviso prévio, mesmo que um decreto do então governador Witzel já proibisse aglomerações devido à pandemia. Em julho, o Inea fez outra manobra e buscou mudar a audiência pública para a esfera virtual – ou melhor, sem a pressão física da sociedade civil –, com o objetivo de começar uma obra que não tinha nada de urgente e que poderia resultar na morte de milhares de plantas, além das inúmeras famílias de capivaras, tatus e jacarés-de-papo-amarelo que vivem no local. Em agosto, a audiência finalmente aconteceu, pela internet: durou dez horas – de sete da noite às cinco da manhã, para dar conta da manifestação de mais de cem pessoas. Apenas duas delas defenderam o autódromo.
O projeto começou a ruir definitivamente em novembro do ano passado. Apesar da pressão política – o presidente do Inea já havia posado para fotos com defensores do autódromo –, o pequeno grupo técnico do instituto, coordenado pelo engenheiro ambiental Breno Pantoja, se colocou corajosamente contra a aprovação da obra. Caso insistisse na ideia de aterrar a floresta, o consórcio Rio Motorpark seria obrigado a refazer todo o Estudo de Impacto Ambiental, um procedimento lento e caro. Também em novembro, Crivella não conseguiu se reeleger prefeito do Rio. Para completar, ainda naquele mês, a Prefeitura de São Paulo renovou até 2025 o contrato que lhe permite sediar a etapa brasileira de Fórmula 1. Em pouco tempo, portanto, o empresário JR Pereira perdeu o apoio do município, do governo estadual (na figura do Inea) e da F-1, seu principal parceiro na iniciativa privada. Eduardo Paes só precisou jogar a pá de cal.
Embora a Floresta do Camboatá pareça estar protegida, a briga não terminou. Para que a área seja de fato resguardada, Paes precisa dar alguns passos burocráticos. O primeiro é garantir que o processo de licenciamento seja retirado do Inea. Enquanto isso não for feito, a ação seguirá tramitando e pode até ser reanimada no futuro por outra administração municipal. O segundo passo é transformar a área verde em Unidade de Conservação, com acesso ao público.
Em dezembro, no decorrer de três semanas, integrantes do Movimento SOS Floresta do Camboatá se reuniram com o intuito de pensar soluções ambientais e econômicas para a região. Escreveram um decreto de sete páginas, que foi encaminhado à equipe de Paes, já pronto para ser assinado pelo prefeito. O texto proíbe qualquer alteração na floresta por 180 dias, enquanto um grupo constituído pela prefeitura começa o trâmite para mudar o ordenamento jurídico da área.
Um dos responsáveis pela interlocução com o município é o engenheiro florestal Celso Junius, apoiador do Movimento SOS Floresta do Camboatá e membro de um bem-sucedido projeto de reflorestamento de morros e encostas chamado Mosaico Carioca. Em janeiro, Junius passou a integrar a administração municipal, assumindo a direção de arborização da Fundação Parques e Jardins. “Mais de quarenta pessoas participaram das nossas discussões sobre aquele espaço”, contou, referindo-se às reuniões de dezembro. Entre as propostas apresentadas, destacam-se a promoção de visitas guiadas à floresta, o replantio de árvores, o cultivo de mudas, as pesquisas em parceria com universidades e até a criação de uma central de compostagem e de uma escola voltada à capacitação em agricultura e jardinagem. Tudo sempre se daria em sintonia com a comunidade local.
Procurado pela piauí, Eduardo Paes respondeu que a prefeitura solicitou ao Inea que enviasse os volumes do processo, para que pudesse “analisá-los e dar uma solução final”. Reconheceu que foi sua a decisão de construir o autódromo sobre a floresta, em um projeto conjunto com o governo federal, para que o Rio recebesse as Olimpíadas, mas pontuou que o projeto, à época, era menos invasivo do que o apresentado pelo consórcio Rio Motorpark. De fato o desenho inicial aparentava preservar mais, embora nenhum projeto que destrói parte de um bioma possa ser chamado de sustentável. Paes disse, por fim, que a prefeitura está disposta a apoiar a construção do autódromo em outro local, como uma área degradada no bairro de Guaratiba, também na Zona Oeste. “Mas a condição é de que ele seja erguido com recursos da iniciativa privada”, complementou. O consórcio Rio Motorpark não quis se manifestar sobre o assunto.
Na quinta-feira da semana passada, o secretário municipal de Meio Ambiente, Eduardo Cavaliere, recebeu em seu gabinete quatro integrantes do Movimento SOS Floresta do Camboatá. “A conversa foi boa”, disse o engenheiro florestal Beto Mesquita. “A ideia é que aquela área vire o polo verde de Deodoro. A gente espera que o decreto saia em breve.”