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Por que tantos se embrenham na floresta onde ainda não há segurança, saúde, energia, educação, Estado, nada

JOÃO MOREIRA SALLES

 

Robert R. Schneider é uma dessas pessoas que dão a sensação de estar à vontade consigo mesmas, o que nele talvez seja efeito de uma convicção serena, jamais expressa com arrogância, de que fez bem o seu trabalho. Schneider só fala de si quando instado, preferindo dar o crédito aos colegas que exploraram os mesmos temas aos quais dedicou boa parte da vida. Nascido nos Estados Unidos, doutorou-se em economia agrícola e fez carreira como pesquisador em organismos internacionais. Durante sete anos foi economista sênior do Fundo Monetário Internacional. Em 1988 passou para o Banco Mundial, onde assumiu o posto de economista líder para Desenvolvimento Sustentável na Região da América Latina. Permaneceria na instituição até se aposentar, em 2005, quase dezoito anos depois.

Em setembro de 2019, de manhã cedo, Schneider apareceu de bermuda, camiseta e sandália no saguão de um hotel à beira do Lago Paranoá, em Brasília, cidade onde mora desde que trocou a sede do Banco Mundial, em Washington, pelo escritório da instituição no Brasil. Casara-se com uma brasileira, gostava do país e queria estar mais perto dos amigos e da Amazônia, seu objeto de estudo. Com cerca de 70 anos, forte, calvo e de barba, Schneider lembra um capitão de barco pesqueiro, desses sobre os quais Hemingway escrevia. Brasília lhe agrada: “É uma ótima cidade para quem gosta de vida ao ar livre como eu”, diz no seu sotaque marcado. Rema no Paranoá todas as manhãs e pratica ciclismo várias vezes por semana. Tem o rosto bronzeado, o sol parece correr por suas veias.

Schneider se espanta um pouco com a ideia de alguém desperdiçar uma manhã de luz cristalina para falar sobre trabalhos seus do tempo do Banco Mundial. Dá a entender que ficaram no passado; sim, ajudaram a esclarecer certas dúvidas, mas hoje só teriam interesse histórico. O que é e não é verdade. Embora desde sua aposentadoria mudanças profundas tenham ocorrido na Amazônia – e mudanças assim sempre exigem novos modelos explicativos –, Schneider é autor de alguns dos estudos mais importantes sobre a dinâmica do desmatamento na região. Poucos pesquisadores influenciaram tanto a geração de políticos e ambientalistas que, desde meados da década de 1990 e até o final do segundo governo Lula, viria a definir as políticas públicas responsáveis pela maior queda na emissão de gases do efeito estufa da história do Brasil, consequência direta da redução drástica do desmatamento no bioma amazônico.

Tudo começou quando pesquisadores do Banco Mundial passaram a se perguntar se as linhas de financiamento abertas para a Amazônia estariam contribuindo com ações de derrubada da floresta, as quais haviam tido um crescimento explosivo durante as décadas de 1970 e 1980. Eles se debruçaram sobre o problema, e entre 1989 e 1991 a instituição publicou dois papers que rapidamente se tornaram canônicos. Os estudos chegavam a conclusões semelhantes. Seus respectivos autores, ambos economistas de renome, sustentavam que o agravamento da situação fiscal do Estado brasileiro inviabilizara o velho modelo de ocupação da floresta.

De fato, boa parte da atividade econômica na Amazônia nos anos 1970 e 1980 fora estimulada por políticas de governo que transformavam o Tesouro Nacional em parceiro da aventura colonizadora. Crédito subsidiado, incentivos fiscais e regime favorável de taxação estavam entre os mecanismos à disposição de quem decidisse desbravar a floresta. Um exemplo é o Proterra – Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e do Nordeste, que concedia financiamento público para abrir a floresta e substituí-la por pasto. O governo federal condicionava o título de propriedade ao desmate de pelo menos 50% da área a ser regularizada, de modo que muitas vezes o pioneiro nem se dava ao trabalho de extrair a madeira antes de desmatar. Punha logo fogo em tudo para fazer jus ao crédito e ao título.

Contudo, com o descontrole das contas públicas que se seguiu ao fim do chamado “milagre econômico” – queda de arrecadação, inflação rampante, crise da dívida externa –, o país não teria mais capacidade de bancar programas de assentamento de centenas de milhares de pessoas num bioma tão distante e hostil. Problema resolvido.

O engenheiro agrônomo Adalberto Veríssimo, sentado ao lado de Schneider no bar da piscina do hotel, lembra aquela época: “Se você viesse a Brasília na década de 80 para tratar de desmatamento com qualquer pessoa do governo, inclusive com gente sensível ao problema, eles te diriam mais ou menos o seguinte: ‘A gente está sem dinheiro, desmatar custa caro’ – 2 mil reais por hectare, em valores de hoje –, ‘se o governo não der recursos ninguém mais vai querer ir pra lá, acabou o incentivo pra abrir a floresta.’” Veríssimo é assertivo: “Todo mundo tinha lido os papers do Banco Mundial. A influência deles foi enorme, inclusive entre os ambientalistas.”

Em Washington, Schneider desconfiava desse consenso. Embora respeitasse os economistas que assinavam as análises, duvidava da qualidade dos dados que fundamentavam suas conclusões. Passou a ser uma voz solitária, cética quanto aos benefícios de programas financiados a partir do endosso generalizado aos papers. Insistia em que as ações do Banco Mundial para o bioma amazônico se orientavam mais por opinião do que por evidências sólidas, e, de tanto ouvi-lo reclamar, um de seus superiores lhe disse: “Então escreva você um relatório sobre as atividades econômicas na Amazônia.”

Foi o que ele se dispôs a fazer, sozinho em seu gabinete na capital norteamericana. Começou por uma constatação empírica: a fronteira do desmatamento continuava a avançar. Alguns subsídios governamentais ainda favoreciam certas atividades econômicas na Amazônia, mas o pesquisador não acreditava que explicassem a escala da destruição da floresta. Consultando tabelas de aumento da presença de gado bovino na região, Schneider verificou, por exemplo, que de 1970 a 1985 o número de animais praticamente triplicara. Além disso, rebanhos de menos de vinte cabeças eram a classe que mais havia crescido, dando um salto de 75% entre 1980 e 1985. Pertenciam, portanto, a pequenos criadores, gente sem muitos recursos. Já a classe dos rebanhos formados por mais de quinhentas cabeças, característicos de grandes proprietários, aumentara a uma taxa bem menor, de apenas 17%. Schneider estudou os programas de apoio à pecuária e constatou que as linhas de financiamento estatal raramente se destinavam a fazendas com menos de mil animais. Logo, era muito pouco provável que as políticas de subsídio governamental estivessem desempenhando um papel importante no crescimento acelerado do rebanho bovino. Para dar conta do que estava acontecendo na Amazônia, seria preciso olhar mais além dos programas de transferência do governo.

Mergulhado numa grande quantidade de dados públicos, estabelecendo conexões insuspeitas entre eles, Schneider buscaria compreender o que movia cada um dos agentes econômicos em atuação na Amazônia – garimpeiros, madeireiros, pecuaristas, agricultores, indígenas, ribeirinhos. “Foi assim que me jogaram no tema”, diz. “Minha ideia era identificar que atividades geravam migração, devastação, exploração.”

Em agosto de 1995, a coleção de textos do Banco Mundial sobre meio ambiente publicou seu paper de número 11: Government and the Economy on the Amazon Frontier (Governo e Economia na Fronteira Amazônica), de Robert Schneider. Eram 45 páginas mais anexos. Com esse relatório que se pode ler em menos de duas horas, o autor desmontaria as verdades consensuais que o próprio banco se incumbira de cristalizar sobre o papel do Estado na destruição da floresta. Seria preciso abandonar as certezas sobre como a Amazônia vinha sendo ocupada.

 

Sem que Robert Schneider soubesse, seu trabalho puramente teórico, concebido à base de papel, caneta e rigor num país temperado, tinha aqui um correlato empírico, realizado por uma equipe de jovens ambientalistas brasileiros sob orientação do ecólogo norte-americano Christopher Uhl. Adalberto Veríssimo fazia parte dessa equipe.

Assim como Schneider, Uhl e seus discípulos queriam entender quem estava desmatando a Amazônia. Entre o final da década de 1980 e os primeiros anos de 1990, esses pesquisadores se espalharam pelas estradas ilegais que cresciam na floresta – e continuam a crescer – como um sistema vascular clandestino, e, de prancheta na mão, começaram a recolher dados sobre os caminhões que passavam carregados de toras. Quem empregava os motoristas? De onde vinham? Para onde iam? Quantas toras cabiam em cada caminhão? De que madeira? Quanto custavam? Quanto rendiam?

De modo geral, não tinham dificuldade em obter as respostas. Àquela altura a atividade madeireira vivia numa espécie de limbo legal. Existia o Código Florestal de 1965, mas o documento nunca fora regulamentado. Na ausência de normas claras para ocupação da floresta, empresários à frente de grandes operações de desmate não se consideravam autores de nenhuma espécie de crime ambiental, o que explica que alguns acolhessem pesquisadores e até lhes franqueassem suas planilhas contábeis.

Idacir Peracchi foi um deles. Tipo alto, simpático e de fala assertiva, paranaense de Laranjeiras do Sul, chegou ao Pará em 1980 para se juntar ao irmão, que já trabalhava com madeira. Peracchi se tornaria um dos maiores empresários madeireiros das décadas de 1980 e 1990. Na sala de reuniões de um hotel em Belém, reage com firmeza quando lhe perguntam se operava na informalidade durante aqueles anos: “Não existe informalidade; existe só ilegalidade.” É o seu modo de dizer que nunca feriu a lei.

Em 1982 começou a arrendar terras da Andrade Gutierrez em Tucumã e a comprar lotes de particulares, “gente que apresentava documento de posse”. Era como se fazia. O poder público sancionava a atividade. Peracchi afirma que sempre se orgulhou da profissão – “Tem imprensa marrom e boa imprensa, vale igual para madeireiro” –, e até cunhou uma frase de efeito sobre ela: “O madeireiro é o abutre da floresta”, ele diz, numa interpretação bastante pessoal do papel ecológico desempenhado por gente da sua profissão. “Nós só vamos atrás das árvores maduras, das que rendem. A gente aproveita de 20 a 25 árvores por hectare; hoje, no manejo, de seis a oito. As outras ficam de pé.”

No início da década de 1990, Adalberto Veríssimo e dois colegas do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) passaram três meses na região de Tucumã, acompanhando uma das frentes de extração de madeira de Peracchi. Era uma operação de mais de cem homens, entre gerentes, motosserristas (cada um com seu assistente), tratoristas, mecânicos, caminhoneiros, mateiros, planejadores de estrada e cozinheiros. Esse exército se movia pela floresta em busca de mogno, de longe a espécie arbórea mais rentável da Amazônia, a única capaz de justificar operações daquele porte. As árvores ocorriam em aglomerados de indivíduos, um buquê de mognos, por assim dizer, cada conjunto podendo distar dezenas de quilômetros do seguinte. Para localizá-los, usavam-se pequenas aeronaves. Do alto, os pilotos identificavam a copa larga e brilhosa que distingue o mogno de outras espécies. A equipe de extração entrava então na floresta e lá permanecia por meses. Os mantimentos eram comprados em Tucumã, levados até a floresta de avião e lançados nas clareiras abertas perto do acampamento.

Em três meses essa frente localizou e cortou 1,2 mil árvores de mogno. Veríssimo e seus colegas anotavam criteriosamente o custo de todos os itens das planilhas: salários, alimentação, combustível, manutenção, frete. Observavam o tombamento das árvores, o arraste para fora da mata, o transporte até a serraria, e depois, à noite, tomavam chimarrão com o capataz gaúcho à frente da operação. O mogno era uma espécie tão valiosa que, a despeito do desembolso – a empreitada custaria 830 mil dólares a Peracchi –, verificaram que fazia sentido econômico penetrar até 300 km floresta adentro para obtê-lo e, em seguida, percorrer outros 1,5 mil km até Belém, para o porto de onde seria exportado. Naqueles anos, a cotação média do mogno no mercado internacional era de 800 dólares o m3. Em outras palavras, cada árvore tombada podia render até 2 mil dólares ao empreendedor médio. Madeireiros eficientes, como Peracchi, eram capazes de ganhar ainda mais. Depois de três meses embrenhadas na mata, equipes como as estudadas pelos pesquisadores do Imazon voltavam para casa tendo gerado para seus patrões alguns milhões de dólares de lucro.

Era uma operação tão rentável que não valia a pena perder tempo com outras espécies. Madeiras de lei como o ipê, o cedro e o freijó eram deixadas para trás, pois apenas o mogno alcançava taxas de retorno à altura da empreitada; só ele justificava abrir extensas redes de estradas madeireiras, ou ramais, no interior da floresta – na época da pesquisa de Veríssimo, eram cerca de 3 mil km apenas no Sul do Pará.

O desmatamento se autofinanciava, a madeira custeava a própria destruição. A floresta seguia desaparecendo, apesar de o Estado brasileiro ter fechado a bica dos subsídios. Na década de 1990 a extração do mogno entrou em declínio e, no início dos anos 2000, a árvore foi incluída na lista das espécies ameaçadas, o que pôs fim à sua exploração. Eram magníficas. “Pensar que as árvores que foram ‘mortas’ tinham de 300 a 700 anos de idade, algumas chegando a 50 metros de altura… Dói no peito”, lamenta Adalberto Veríssimo. As campanhas de extração deixavam como legado matas severamente degradadas. Os pesquisadores do Imazon anotaram: para cada mogno tombado, outras 31 árvores sofriam danos sérios, a maioria delas indo ao chão e sendo largadas na serrapilheira. Numa floresta densa como a amazônica, a retirada cirúrgica de uma árvore de grande porte é uma operação demasiadamente cara. Na ausência de regras, certa brutalidade sai mais em conta. Árvores eram puxadas pelos cipós que as uniam, caíam umas por cima das outras, tombavam para dar caminho a máquinas que precisavam chegar até as espécies valiosas. Além disso, para cada mogno extraído, quase 500 mde sub-bosque – a vegetação baixa que recobre o chão – eram destruídos pelos skidders, tratores de grande porte usados para arrastar as toras até um ramal madeireiro, de onde seriam levadas de caminhão para as serrarias. Os danos não se esgotavam aí, pois as estimativas dos pesquisadores não levavam em conta o impacto da construção de estradas em meio à floresta, fossem os ramais que interligavam as áreas de extração, fossem as vias principais por onde circulavam os grandes caminhões.

Os chefes dessas operações eram homens vindos de outras partes do Brasil. Na região de Paragominas, no Sudeste Paraense, outro polo extrativista nas décadas de 1980 e 1990, “somente 3% dos proprietários das indústrias madeireiras são da Amazônia; a metade é do Espírito Santo (um grande centro madeireiro na década de 1960 e 1970) e os demais são de outros estados do Sul, Sudeste e Nordeste do Brasil”, registraram em 1992 os pesquisadores do Imazon.

“E mesmo esses não eram o proprietário nem o alto executivo da serraria do Sul”, observa Veríssimo num restaurante de Belém. “Os patrões não queriam vir para o Norte. Eles pensavam, com razão: ‘Lá tem malária, lá tem problema.’ Quem veio foi o gerente ou o caminhoneiro, o cara com espírito pioneiro, pouco capitalizado e com baixa instrução.” Não era gente interessada em permanecer na floresta. Entravam nela, colhiam o que tinha valor e retornavam para os núcleos urbanos que iam se firmando ao sul da fronteira do desmatamento. Ali criavam seus filhos e gastavam seus lucros.

Na direção contrária à deles, entretanto, uma legião de migrantes em busca de terra subia as estradas que os desmatadores haviam deixado para trás. Na região de Tucumã, verificaram os pesquisadores, os primeiros 70 km da via principal aberta pelos madeireiros estavam ocupados exclusivamente por famílias provenientes do Centro-Oeste e do Nordeste. Uma vez mais, os amazônidas ficavam de fora. Na esteira das operações bem capitalizadas de desmate, quem agora seguia por aqueles ramais eram pobres que praticavam uma agricultura de subsistência baseada no sistema de corte e queima. Com o tempo, quase todos acabariam por fazer pastagens daquelas matas degradadas. A floresta sumiria.

Para um dos participantes do estudo de Tucumã, o engenheiro florestal Paulo Barreto, a pecuária desempenhou um papel de grande importância na história da ocupação da Amazônia. “A pecuária chega antes da infraestrutura. O gado vem andando. O criador não precisa de quase nada para iniciar a produção”, ele explica em Belém, no escritório do Imazon, organização a que está associado desde o início dos anos 1990. Seus trabalhos de investigação ajudam a compreender o que representa o gado no avanço dos homens para o interior da floresta. “O cara abre o solo de um modo precário, deita a semente e pronto, já virou pastagem. É um modelo brilhante: o cara pioneiro leva as bezerras e elas passam a funcionar como uma conta bancária remunerada. Os animais crescem e dão cria lá no meio do nada. Com isso, ele demonstra que ocupou a terra e que portanto é o dono dela. Não precisa de título, ele vai vivendo da carne. Se a infraestrutura não melhora, ele fica no negócio de bezerro. Na pior das hipóteses, tira o gado dali do mesmo jeito que levou: andando. A pecuária é adequada para a ocupação da fronteira. É colonização pelo boi, com baixíssima produtividade.”

As pesquisas de campo do Imazon no Sul do Pará ajudaram a esclarecer a dinâmica do desmatamento naquele período: de modo geral, primeiro vinham os madeireiros, em seguida a queimada e, por fim, os bois.

 

Robert Schneider não conhecia o trabalho dos jovens ambientalistas brasileiros, que só viria a ser publicado um ano depois do seu. Em seu gabinete em Washington, a pergunta que o guiava diferia ligeiramente da deles. Schneider queria saber por que razão tantos colonos se dispunham a ir além da fronteira do desmatamento – esse limiar em que a floresta se encontra com a infraestrutura do país formal – para se estabelecer onde ainda não havia segurança, saúde, energia, educação, Estado, enfim, nada. E principalmente: por que, tendo se estabelecido ali com enorme sacrifício, acabavam por abandonar suas terras assim que a fronteira se aproximava deles novamente? Esse avanço constante estava na origem da explosão do desmatamento na década de 1980. Como compreendê-lo?

“Preço de terra” – Schneider sorri ao responder. “Essa era a explicação”, comenta à beira da piscina do hotel de Brasília. Mais especificamente, a diferença entre o preço da terra no Sul e no Norte do país. Enquanto houvesse terra abundante para lá da fronteira econômica, haveria gente disposta a ocupá-la. “Pude mostrar isso bem, consegui bons dados e tive acesso a uma extensa base empírica de preços de terra no Brasil.”

Schneider identificou dois tipos de migrante: o pioneiro, que chega antes e em geral não se fixa no lugar, e o colono, que vem depois e, ao contrário de seu predecessor, assenta-se em definitivo na região. É o pioneiro que faz avançar a fronteira. Fundamentalmente pobre, ele dispõe de pouco ou nenhum capital humano, aquele conjunto de competências individuais que favorecem o desenvolvimento socioeconômico. Em outras partes do país, estará em desvantagem e tenderá sempre a ser derrotado. Se permanecer onde nasceu, viverá dos magros recursos que costumam remunerar o trabalho não qualificado. Sobreviverá, apenas. Não tendo muito a perder, aceitará os riscos e as privações que acompanham a vida ali onde o poder público nunca chegou.

A aposta do pioneiro é boa. Analisando dados socioeconômicos, Schneider constata que, dado certo nível de renda e de escolaridade, um migrante que trabalhe duro provavelmente melhorará de vida se for para o Norte. Essa legião de “esperançosos trabalhadores”, no dizer do jornalista Lúcio Flávio Pinto, muitas vezes chega de outros estados “sem família, sem regras, prontos para a loteria da fronteira, atrasada no tempo em relação às partes modernas do país e do mundo”. Sem nenhuma capacidade de investimento, sem nenhum conhecimento técnico, o modo como esses pioneiros explorarão a terra será um reflexo das carências que os distinguem. Eles tenderão a conferir às novas áreas características de sua própria condição, em especial a precariedade. Em vez de enriquecer seu pedaço de terra, eles o empobrecerão. Isolados na mata, sem acesso a insumos e mercados, recorrerão ao fogo para plantar sua roça.

“Mineração de nutrientes” foi a expressão criada por Schneider para nomear a extração não sustentável de nutrientes do solo florestal mediante corte e queima da vegetação, com o objetivo de abrir espaço para a lavoura e a pecuária extensiva. Numa formulação luminosa, ele explicou: “Esse processo difere da agricultura (e da silvicultura) por se tratar fundamentalmente de uma atividade mineradora; novas terras deverão ser continuamente destinadas à produção enquanto delas se extraírem nutrientes para favorecer a exploração madeireira, a colheita e a produção de carne. Como resultado, terras antigas, já mineradas, serão abandonadas.”

Onde todos viam agricultura Schneider viu mineração, ou garimpo – o conceito é por vezes traduzido como “garimpo de nutrientes”. Tal como em qualquer outra atividade minerária, o garimpo de nutrientes não é geograficamente sustentável. Quando as riquezas do solo (nitrogênio, fósforo e potássio, que são a base da agricultura moderna) se esgotam, a produção precisa avançar para novas áreas. Schneider estimou que a extração de nutrientes é rentável por um período de dez a vinte anos, dependendo da fertilidade do solo. Depois disso, a terra empobrece de tal forma que já não serve para prover sustento.

O relatório Governo e Economia na Fronteira Amazônica organiza seus argumentos de maneira muito bonita. Tendo encontrado a origem de determinado fenômeno social – por exemplo, a diferença do preço da terra como causa de migração –, Schneider se volta para os efeitos desse novo estado de coisas. No caso, o esgotamento da terra, consequência a um só tempo das características de quem veio a ocupá-la – o pioneiro sem recursos – e, como se verá, de decisões tomadas pelo poder público. Causa produz efeito, o qual se torna causa de novo efeito. Uma coisa leva a outra, que leva a outra, e a outra, numa cadeia causal que avança com a inexorabilidade dos dominós que caem.

Em que contexto a mineração de nutrientes prospera? E o que faz com que esse modelo de ocupação pareça tão inevitável? São muitos os fatores, propõe Schneider: pobreza dos solos (que se esgotam rapidamente), disponibilidade de mão de obra (despossuídos dispostos a viver além da fronteira), situação fundiária (terras caras no Sul em contraste com terras sem destinação no Norte). Contudo, um fator contribui mais que todos: “A mineração de nutrientes na Amazônia é uma resposta de mercado à abundância de terras acessíveis gerada pela construção de novas estradas.”

Schneider, como vemos, avança mais uma casa. O Estado dá as caras e se torna ator do drama. Se o pioneiro pode adentrar a floresta, é porque as novas estradas o levam até as franjas da mata, a partir de onde existe terra abundante, barata e sem dono, não no sentido de não ser de ninguém – ela pertence ao conjunto dos brasileiros –, mas por não haver ente público para exercer controle sobre ela.

A oferta abundante de qualquer bem deprecia o seu valor. A terra é barata porque a fronteira nunca para de avançar. Estradas deprimem o preço das propriedades ao pôr mais terras no mercado. Enquanto se der como certo que as florestas virgens um dia serão alcançadas, as novas áreas valerão muito pouco.

A preferência do Estado brasileiro por estender a malha rodoviária território afora em vez de adensá-la nas áreas já consolidadas é diretamente responsável pelo modelo de uso, esgotamento e abandono de terras. Adotar esse modo de produzir, pilhar assim o solo, representará uma escolha racional diante das vantagens que se oferecem: “Minerar nutrientes surgirá como a forma mais competitiva de agricultura sempre que novas estradas tornarem a terra abundante (e barata). O preço de novas terras será uma pechincha, se compararmos, de um lado, os custos dos fertilizantes e pesticidas necessários à preservação das terras em uso e, de outro, a fertilidade natural e a relativa ausência de pragas das novas terras (sobretudo depois da queimada).” Usa-se o solo, esgota-se o solo, avança- se em busca de mais solo.

Em outra de suas grandes intuições, Schneider observa que é mais barato “tomar empréstimo da terra” do que do banco, pois na hora do vencimento – ou seja, quando o solo morre – não é preciso pagar a conta. Basta seguir adiante. O homem sem recursos não hesitará em fazê-lo. Pobreza e mobilidade estão diretamente relacionadas, escreve Schneider: “Mobilidade no passado será um forte indicador de mobilidade no futuro.” Desvalidos não têm o luxo de parar. Vão andando.

Analisando as áreas degradadas e sem produção ao longo da fronteira, Schneider identificou outras duas dinâmicas de abandono da terra, além daquela vinculada ao empobrecimento do solo. Ambas decorrem de ações precipitadas do governo.

A primeira está ligada aos grandes projetos de colonização patrocinados pelo Estado até a década de 1980. Estimulado por subsídios generosos a empresas dispostas a abrir a floresta, o capitalista investia recursos acreditando que as autoridades cumpririam sua parte no trato. Schneider estimou que iniciativas como o Projeto Tucumã, descrito na primeira reportagem desta série (piauí_170, edição de novembro de 2020), levariam até dezessete anos antes de se mostrar rentáveis. Para que o empreendimento chegasse à maturidade, era essencial, portanto, que o governo impusesse sua autoridade e fizesse valer as garantias básicas de um Estado liberal: direitos de propriedade, respeito a contratos, ação contra invasores.

Posseiros, como visto antes, dispensam tais garantias. Em comparação com a sina dos pobres no Sul, a vida deles melhora mesmo em situação de absoluto desamparo institucional. O único obstáculo que os impedirá de invadir grandes áreas abertas é a expectativa de repressão por parte das forças da lei. Nunca foi o caso para lá da fronteira. Depois de certo tempo combatendo a grilagem com suas forças de segurança privada, o capitalista se dá conta de que cometeu um erro de cálculo: o Estado é incapaz de fornecer a segurança prometida. Para estancar o prejuízo, ele decide ir embora, de preferência cobrando indenização do governo. Assim, o primeiro abandono se dá por desistência. Schneider mostra que os capitalistas se precipitaram ao investir na área. Julgando possível a existência de capitalismo sem nação, chegaram antes do Estado e perderam.

A outra dinâmica de abandono é o oposto da anterior. Em meados da década de 1980, a maioria dos grandes projetos de colonização no bioma Amazônia fracassara. As terras foram ocupadas por pequenos posseiros, em assentamentos sob a supervisão do Incra, autarquia federal responsável por realizar a reforma agrária e administrar as terras públicas da União. Com isso, a situação fundiária se pacificara, e regiões antes em conflito passaram a se beneficiar de alguma segurança jurídica. Em outras palavras, o Estado alcançara a fronteira.

Era exatamente o que faltava quando o capitalista dera sua cartada prematura. Agora fazia sentido retornar, embora não para produzir, pois tais terras ainda não estavam inteiramente integradas ao sistema produtivo da nação. A fronteira econômica ainda não se estendera até lá – faltavam boas estradas, energia, escolas, hospitais e comércio significativo, carências que impunham um teto ao valor das propriedades. Os preços haviam subido, mas o suficiente apenas para que o posseiro contemplasse a ideia de vendê-las e, com capital no bolso, seguisse floresta adentro, arrastando, uma vez mais, a fronteira consigo. Podia fazê-lo espontaneamente, ou, como é comum em regiões de conflito fundiário, à força. Quem passava agora a ocupar as terras não era mais o agricultor sem recursos, mas o especulador imobiliário e o grileiro profissional. Homens ricos substituíam homens pobres.

Para esses novos proprietários bastava então esperar que o país viesse ao encontro de suas novas posses. Quase sempre moradores de cidades já consolidadas, eles adquiriam suas terras como investimento. Viravam rentistas e especuladores, operadores muito diferentes das grandes empresas colonizadoras das décadas anteriores. Não precisando mais proteger as terras de invasões – agora o braço armado da nação se incumbia da tarefa –, podiam deixá-las desocupadas e improdutivas até a chegada dos serviços do Estado, quando então elas se valorizariam bastante. De caráter especulativo, esse segundo abandono decorria de duas constatações: se, por um lado, não compensava produzir na terra, por outro era bom negócio entesourá-la até que as condições de mercado soprassem a favor.

Em suma, no quadro desenhado por Schneider, a terra podia ser abandonada por três razões: ou porque o pioneiro se acreditava um agricultor quando no fundo era um garimpeiro; ou porque tinha havido investimento precoce em postos demasiadamente avançados, nos quais o Estado se mostrava incapaz de impor qualquer ordem; ou, em sentido contrário, porque o Estado passara a oferecer proteção em áreas ainda não alcançadas pela fronteira econômica. Esse terceiro caso foi caracterizado pelo autor como governo prematuro.

É um conceito fundamental. “Ocorre governo prematuro”, escreve Schneider, “quando os investimentos públicos na atividade econômica de determinada área são feitos com muita antecedência em relação à dinâmica que leva a fronteira a se deslocar.” Seria como se o Estado ultrapassasse a linha além da qual cessa toda viabilidade econômica, implantando serviços em áreas incapazes de se tornarem solventes – de andar com as próprias pernas – sem repasses constantes do governo. Garantir contratos, prover lei e ordem, implantar infraestrutura social básica, nada disso é trivial ou barato; na verdade, em certas situações, “o custo do governo [se mostra] bastante desproporcional” à capacidade produtiva da região, isto é, o conjunto de tudo o que se produzirá ali não será suficiente para justificar o dispêndio do Estado. A riqueza é pouca, o gasto é muito. “Nesses casos, os gastos públicos podem ser considerados prematuros do ponto de vista de investimento.”

Em poucas linhas, Schneider redefinia a compreensão que se tinha da fronteira. À luz de sua interpretação, o avanço constante para o interior da floresta deixava de ser um problema exclusivamente ambiental e virava também uma armadilha para as contas públicas. De um golpe, o fenômeno abandonava as salas pouco visitadas dos órgãos do meio ambiente para se alojar nos gabinetes concorridos do Ministério da Fazenda. Schneider estava dizendo que expandir indefinidamente a fronteira era caro demais para o país. “É irracional abrir mais frentes”, explica Adalberto Veríssimo, “você se obriga a prover infraestrutura, o que é impraticável dada a escala do território, e ainda mais num país pobre e sem capacidade de investimento público. Abrir fronteira é contratar informalidade, desarranjo e, em última instância, o crime.”

Várias razões explicam por que o governo chega antes da viabilidade econômica, algumas são plenamente justificáveis, outras não. Segurança: o braço armado do Estado é chamado a garantir o direito de propriedade em zonas de conflito agrário. Oportunismo político: ganham-se votos levando estradas inviáveis até povoados distantes. Soberania nacional: é preciso integrar o território e proteger as fronteiras do país. Desenvolvimentismo míope: a crença de que ocupar a floresta é sinal de progresso. Fato consumado: o governo não pode ignorar as carências de ajuntamentos já consolidados (o erro foi deixar que se consolidassem). Incúria: com raras exceções, o Estado brasileiro não é conhecido por planos bem urdidos de ocupação do território.

 

Existe um modo relativamente simples de aferir se o governo se precipitou ao investir em determinado território. Basta comparar os gastos necessários para manter de pé a infraestrutura socioeconômica com o valor de tudo o que se produz ali. Quando essa razão é alta – muito gasto público para pouca geração de riqueza –, significa que a vida econômica tem no governo o seu principal motor. Se, com o tempo, a proporção diminui, é sinal de que a região está ganhando autonomia e se livrando da dependência do governo federal. Governos prematuros se instalam nas regiões em que tal razão se mantém permanentemente alta. “Nelas, o Estado foi incapaz de criar as precondições para um crescimento sustentável da economia”, escreveu Schneider em 1995. Excetuando eventuais objetivos estratégicos – proteger áreas de fronteira, por exemplo –, situações assim evidenciam que, do ponto de vista do interesse nacional, o governo fez uma aposta errada. Recursos que poderiam ser mais bem empregados em áreas consolidadas são gastos em fronteiras distantes, onde a vida econômica só sobrevive graças aos repasses governamentais. Como pacientes numa UTI, são municípios que vivem por aparelhos. Desligue-se o respirador e a vida chega ao fim. Schneider observou: “Tal como já se verificou inúmeras vezes, investir em desenvolvimento econômico em regiões extrafronteiras é, a priori, uma proposta fadada ao fracasso.”

“Desmatar não faz mais nenhum sentido”, diz Mauro Lúcio de Castro Costa, um fazendeiro no Pará: “Se desmata, tem que levar estrada, energia, saneamento. Como é que o governo vai fazer tudo isso num estado em que o PIB da pecuária é de 500 reais por hectare? Isso é PIB de miséria.”

Um levantamento feito para a piauí pelo engenheiro ambiental Daniel Santos mostra que, em 2017, quase 60% da receita corrente do Pará era composta de recursos transferidos pela União. De 2010 a 2019, na média as transferências corresponderam a cerca de metade da receita dos municípios. Significa que, caso a torneira do governo federal fechasse, pelo menos 50% das folhas municipais – que remuneram parte dos serviços de professores, garis e profissionais da saúde, entre outros – deixariam de ser pagas. Ruas não seriam asfaltadas. Praças ficariam às escuras. Alunos não receberiam merenda escolar.

Em sistemas federativos como o nosso, é natural que impostos cobrados pela União sejam redistribuídos de regiões mais ricas para regiões mais pobres. A questão levantada por Schneider diz respeito não à legitimidade dessas transferências, mas à escala em que são feitas e, principalmente, à não sustentabilidade do modelo. Adnan Demachki, ex-prefeito de Paragominas, conta que, em 2017, o Sebrae estimou que dois terços dos negócios no Brasil eram informais. “Só que no Pará esse número chega a 90%. Veja só que coisa. Os dois principais impostos municipais são o ISS, sobre serviços, e o IPTU, sobre imóveis. Tem um terceiro, sobre transmissão de propriedade, mas é pouca coisa. Ora, se 90% dos negócios são informais, isso significa que o dono do restaurante não vai emitir nota e o município não vai recolher ISS. No caso do IPTU, a maioria dos municípios não tem infraestrutura para cobrar. O resultado é que a receita municipal é muito baixa.”

O estado do Pará tem 144 municípios. Catorze deles precisam receber da União no mínimo 7 reais de cada 10 que gastam. Anajás, na Ilha de Marajó, se inclui entre eles: três quartos dos pagamentos são feitos com dinheiro de Brasília. Em média, os impostos que os municípios paraenses são capazes de arrecadar não perfazem sequer 4% de suas receitas – 0,14% no caso de Anajás, onde a situação nem chega a ser a mais crítica. Na vizinha Chaves, os impostos municipais representam 0,08% da receita corrente, 8 centavos de cada 100 reais. Ainda assim, o poder público está obrigado a fornecer eletricidade, educação, saúde, segurança e infraestrutura viária a mais de 20 mil chavienses. É preciso pagar o prefeito, pagar a máquina municipal, manter aberta a câmara dos vereadores.

No Brasil, há repasses que são obrigatórios e, portanto, regulares. Independem do jogo político. Outros são opcionais, podendo variar ao sabor da relação do prefeito com as diversas esferas de poder. O que aconteceria se a União suspendesse essas transferências voluntárias? “O prefeito viraria um gerente de pessoal”, responde Demachki. “Ele perde qualquer capacidade de investimento. Não reforma uma escola, não abre um posto de saúde, não faz uma praça.” E se, numa emergência fiscal, as transferências obrigatórias fossem suspensas? “Aí os municípios seriam a primeira unidade federativa a quebrar. A União ainda se segura por um tempo. O município, não.” Nem seria preciso imaginar cenários extremos para se dar conta da situação, explica Demachki. Atualmente grande parte dos municípios na região Norte não tem recursos para investir. “As transferências federais e estaduais viram só custeio”, ou seja, servem para pagar o funcionalismo, e só. A dependência em relação à União é absoluta. “Pouquíssimos municípios têm capacidade para fazer projeto. Estou falando de projetos técnicos – projetos econômicos, projetos de saúde, projetos de educação.” Demachki concorda que a solução seria adensar a presença do Estado nas regiões consolidadas e evitar o espalhamento pelo território – melhorar o que já existe em vez de pulverizar o pouco que se tem. “Faz um tempo, pensaram em dividir o Pará em três. Teria sido uma loucura, ia dividir a pobreza, os parcos recursos. Há uns dez anos houve uma febre de criação de municípios. Depois estagnou, mas aqui no Pará foram criados muitos municípios pequenos sem a menor capacidade de gerar receita. Mais adensado significa com mais capacidade de investimento.”

Um estudo publicado em novembro de 2020 pelos economistas Flávia Alfenas, Francisco Cavalcanti e Gustavo Gonzaga, da PUC-Rio, mostra que 25% de todos os empregos formais oferecidos na Amazônia Legal* estão no setor público, índice que, no Brasil, não passa de 15%. Quase metade da renda dos habitantes da região – 48,8% – vincula-se diretamente a pagamentos feitos pelo Estado brasileiro, correspondendo a salários, aposentadorias, pensões, programas de transferência de renda. Tudo isso configura um quadro de dependência crítica, consequência direta do modo como decidimos ocupar o bioma. É uma cilada que o Brasil criou para si mesmo e que terá de resolver, sob pena de perpetuar a pobreza e a degradação ambiental.

 

Pode-se pensar em três Amazônias diferentes – a desmatada, a sob pressão e a florestal –, conforme classificação proposta em 2007 pelos pesquisadores Danielle Celentano e Adalberto Veríssimo (a categorização inclui uma quarta zona, a não florestal, recoberta por cerrados e campos naturais; por não ser predominantemente floresta, será desconsiderada aqui). Novo Progresso, no sudoeste do Pará, é um município típico da zona sob pressão. É em lugares assim que o futuro do bioma está sendo disputado. Foi ali que proprietários de terra combinaram dia e hora para começar incêndios florestais, no que ficou conhecido como o Dia do Fogo: 10 de agosto de 2019. Cortado pela BR-163 e pela Transamazônica, o município é incluído constantemente na lista dos que mais desmatam.

Não se pode dizer que seja uma fronteira recente. Na Wikipédia ele é celebrado por um curioso verbete cuja evolução editorial traça o histórico das disputas ideológicas em torno da fronteira. Em 2008, quatro anos depois de ter sido criado, o texto recebeu a primeira versão da seguinte frase: “O surgimento de Novo Progresso se deve à construção da Rodovia Cuiabá-Santarém, que em 1973 rasgou a Floresta Amazônica.” Sete anos depois, em 2015, alguém refinou o enunciado: “O surgimento de Novo Progresso se deve à construção da Rodovia Santarém Cuiabá, que em 1973 rasgou e desmatou a Floresta Amazônica.” Tudo permaneceria igual até março de 2020, quando outro redator (de quem só se conhece o IP, não a identidade) interveio para acrescentar o elemento de exaltação: “O surgimento de Novo Progresso se deve à construção da Rodovia Santarém-Cuiabá, que em 1973 rasgou, desmatou e trouxe progresso à Floresta Amazônica.”

Nascido à beira de uma autoestrada em construção, o povoado no meio da mata tomaria impulso nos anos 1980, com a descoberta de ouro, e não demoraria a se emancipar de Itaituba, ganhando status de município em 1991. Trinta anos depois, em fevereiro de 2020, o então vice-prefeito Gelson Luiz Dill – eleito prefeito em novembro passado – explicou o funcionamento das contas de seu município de 25 mil habitantes: “Novo Progresso depende quase 100% do governo federal para qualquer investimento. Aqui não tem indústria grande. A maior receita vem das transferências federais, via Fundo de Participação dos Municípios, e também do governo estadual, com o ICMS. O maior empregador aqui é a Prefeitura – a gente tem 1,3 mil funcionários. Nosso orçamento é de 70 milhões e 63% vai em folha, ou seja, estamos acima da Lei de Responsabilidade Fiscal.” Ele lamenta que só 18% da população pague IPTU. O que a Prefeitura arrecada com impostos não soma 10% da receita do município.

Novo Progresso está longe de ser uma exceção. Não raro se imagina que o setor agropecuário seja o que mais contribui para o PIB da Amazônia Legal. Errado. No estudo de 2007 em que tipificaram as várias Amazônias, Danielle Celentano e Adalberto Veríssimo mostram que, em 2004, isso era verdade apenas para Mato Grosso, onde a produção rural gerava 41% do PIB. No estado do Amazonas, o setor industrial representou 70% das riquezas produzidas, o que se deveu unicamente à Zona Franca de Manaus. Em todos os outros estados da região, o setor mais dinâmico da economia foi o de serviços. Quando se observam as rubricas que o compõem, constata-se que a parte do leão pertence à administração pública. “No Acre e em Roraima, a administração pública representou 63% e 64% do PIB de serviços, respectivamente. Isso indica a forte dependência entre a economia da região e as despesas públicas”, escreveram os pesquisadores. Significa que, para os mais ricos, o Estado comparece com empregos públicos; para os mais pobres, com programas de transferência. A renda familiar de uns e de outros provém de uma mesma fonte cuja origem não é a economia local.

Esse é o custo da fronteira. Até 1970 a Amazônia Legal representava 4% do PIB brasileiro. Hoje, depois de eliminarmos cerca de um quinto da parte que nos cabe do maior ecossistema tropical do planeta, a região responde por 8% do PIB. Soa a progresso, mas não é: no mesmo período a população da região quadruplicou. Um levantamento feito pelo grupo de pesquisa do economista Juliano Assunção, da PUC-Rio, comparou a renda domiciliar per capita dos seis estados inteiramente contidos no bioma amazônico (Acre, Roraima, Amazonas, Rondônia, Pará e Amapá) com a do restante do Brasil. O cotejo começa em 1970, no início do processo de destruição da floresta, e segue até 2010. Os dados são eloquentes: nesses quarenta anos de desmatamento contínuo, a renda de quem está no Norte caiu em relação à de quem não está. O Brasil cresceu e deixou os municípios do bioma para trás. Ali as pessoas ficaram mais pobres, em comparação com as que vivem em outras partes do país. Derrubamos a floresta e não ganhamos nada em troca.

 

Um dos desdobramentos do trabalho de Robert Schneider foi permitir uma compreensão mais fina de como as regiões amazônidas se comportam antes, durante e depois de serem alcançadas pela fronteira econômica. Para os que leram seu artigo de 1995, parecia correto, ao menos intuitivamente, concluir que o Brasil não havia escolhido o bom caminho. Nenhum modelo de desenvolvimento baseado na destruição sistemática do ecossistema, no abandono da terra e na irracionalidade fiscal poderia se sustentar por muito tempo e tampouco conseguiria produzir bem-estar social duradouro. Mas era preciso provar. O relatório de Schneider oferecia uma descrição elegante e poderosa do que se passava na Amazônia, mas se tratava ainda de uma hipótese em busca de dados empíricos que a consolidassem.

As evidências seriam apresentadas cinco anos depois, em 2000, quando Schneider publicou um segundo trabalho, agora em parceria com pesquisadores do Imazon, dentre os quais Adalberto Veríssimo. Intitulado Amazônia Sustentável: Limitantes e Oportunidades para o Desenvolvimento Rural, o estudo se tornou um marco da literatura socioeconômica sobre a região. Ali os autores introduzem o conceito de boom-colapso, um desses termos que, uma vez cunhados, tornam-se inescapáveis.

Os autores dividiram a Amazônia Legal em três regiões: seca, de transição e úmida. Na primeira, correspondente a 17% do território, a atividade agropecuária tende a ser bem-sucedida. Na zona de transição, localizada entre as florestas úmidas do Norte e o Cerrado do Centro-Oeste, representando 38% da área total, a proporção do solo ocupado pela agricultura cai bastante, em razão do aumento do índice pluviométrico – passa de 25% nas áreas mais secas para apenas 5% nas mais úmidas. Quem já foi pego pela violência de um temporal nos trópicos não se espanta com esse dado: o aguaceiro equatorial não é gentil com as lavouras.

Por fim, a Amazônia úmida representa 45% de todo o território. Boa parte dela coberta por florestas densas, é a paisagem que todo cidadão do planeta tem na cabeça quando pensa no bioma. Trata-se de um ambiente hostil à produção agrícola de alto rendimento. Excesso de chuva, drenagem insuficiente, alto custo de manutenção de infraestrutura viária, um dos ecossistemas “com a mais alta probabilidade de abrigar um predador natural para qualquer cultura agrícola introduzida pelo homem” – esses são alguns dos obstáculos quase intransponíveis enfrentados pelas grandes monoculturas na região. A pecuária é possível, mas tende a ser muito pobre. Se na zona seca perto de 8% dos pastos estão abandonados, na zona úmida esse índice chega a 20%.

Analisando os dados das principais práticas rurais na Amazônia úmida – exploração madeireira, pecuária e grãos –, Schneider e seus colaboradores foram capazes de projetar o desenvolvimento socioeconômico de uma típica cidade da área, etapa a etapa: “Se as forças de mercado atuarem livremente na região, o uso do solo será baseado na exploração madeireira predatória associada à pecuária extensiva. Nesse caso, a economia dos municípios da Amazônia tende a seguir o ciclo ‘boom-colapso’.” Ou seja, “nos primeiros anos de atividade econômica ocorre um ilusório e rápido crescimento (boom), seguido de um severo declínio em renda, emprego e arrecadação de impostos (colapso)”.

Imagine-se um município com 1 milhão de hectares de floresta densa – a metade do estado de Sergipe (sim, há municípios grandes assim na Amazônia) – que ainda não tenha sido alcançado pela fronteira do desmatamento. Sua população será pequena e provavelmente viverá de forma modesta da extração de produtos florestais – açaí, cupuaçu, cacau, andiroba, pescados. Chegam então os madeireiros atrás de novos estoques de matéria-prima, e logo as espécies mais valiosas começam a ser levadas embora. A comunidade agora precisa tomar uma decisão: ou se organiza para expulsar os forasteiros ou se torna parceira da exploração predatória.

Schneider e colegas demonstram que, na ausência de qualquer regulação, no curto prazo a segunda opção se provará mais vantajosa. Sem repressão e, portanto, sem obstáculos ao desrespeito da lei, será possível extrair o valor máximo da floresta. Nos primeiros anos haverá um influxo de migrantes, equipamentos, serviços de apoio, comércio. A comunidade pode contar com o rápido crescimento da atividade econômica. Restaurantes terão clientes, pensões receberão hóspedes, postos de gasolina venderão mais combustível, haverá emprego nas frentes de desmatamento, no transporte de toras e nas serrarias. Os indicadores sociais melhorarão, em parte pelo aumento da renda do município, em parte pelo fenômeno de importação de IDH, ou seja, pela chegada de migrantes com escolaridade mais alta e mais capital. Uma fotografia desse momento confirmará a tese de que derrubar a floresta traz benefícios sociais e econômicos.

De fato, como mostrariam Celentano e Veríssimo no estudo de 2007, quanto maior o desmatamento em curso, maior o IDH. Ocorre que não se trata de uma fotografia, mas de um filme. Em acréscimo à devastação ecológica, coisas ruins começam a acontecer com o passar do tempo. A fronteira do desmatamento é também a fronteira da violência. Segundo os autores, há uma correlação direta entre os dois fenômenos: “Na zona sob pressão, ocorreram 43% dos assassinatos rurais da Amazônia entre 2003 e 2006”, afirmam. O massacre de Eldorado de Carajás em 1996 e a execução da irmã Dorothy Stang em 2005 são apenas os episódios mais conhecidos dentre as tragédias da floresta sob ameaça. Ao comparar a taxa de homicídio nas três diferentes Amazônias – a desmatada, a sob pressão e a florestal –, Celentano e Veríssimo verificam que a segunda é três vezes mais violenta do que as outras: foram 62 pessoas assassinadas por 100 mil habitantes nas zonas sob pressão, contra 24 nas áreas já desmatadas e 18 na Amazônia que preserva sua vegetação.

(De 2007 para cá, a situação só piorou. A pedido da piauí, as pesquisadoras Sofia Reinach e Isabela Sobral, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e o engenheiro ambiental Daniel Santos calcularam essas mesmas taxas em relação a 2018, último ano para o qual existem dados de qualidade. Em dez anos, houve um aumento praticamente generalizado da violência nas três zonas. A exceção está na zona sob pressão. É ainda ali que se verificam os maiores índices de violência física, mas, único caso de queda nos indicadores, registrou-se uma discreta redução na taxa de homicídios entre 2007 e 2018. A boa notícia, contudo, é logo modulada pela constatação de que na zona desmatada os assassinatos explodiram. E não só: as regiões degradadas também apresentam hoje as maiores taxas de trabalho infantil. É como se a fronteira avançasse arrastando consigo a violência e deixando para trás um legado de devastação ambiental e criminalidade.)

Schneider e colegas mostram que, oito anos depois da decisão de se tornar sócio do desmatamento, o município começa a entrar em declínio econômico. Esse foi o tempo necessário para que se cortassem as árvores de maior valor. Inicia-se então um ciclo de extração de espécies menos valiosas. A floresta se torna progressivamente mais pobre, incapaz de manter a biodiversidade que a caracteriza. Vai se tornando inviável como sistema biológico autossustentável.

No vigésimo ano ocorre o colapso total da atividade madeireira. Os empresários e suas equipes partem em direção a novas florestas, levando embora boa parte do que trouxeram: emprego, renda, serviços, comércio. Deixam como herança uma cidade de lojas fechadas, cercada de terras nuas sob um sol feroz nas quais se pratica pecuária vagabunda – ou, na melhor das hipóteses, medíocre, mas quase sempre menos que isso. Bois de costelas salientes desesperados por uma sombra. No trabalho de 2000, Schneider e colaboradores estimaram que no oitavo ano o município pode gerar até 100 milhões de dólares, mas no vigésimo o valor não chegará nem a 5 milhões. Do boom, caminhou-se para o colapso.

Se, em vez de praticar a exploração selvagem, o município tivesse optado por um sistema de manejo sustentável de seus recursos madeireiros, a situação seria outra. Não experimentaria um aumento de renda tão rápido e concentrado, mas tampouco se veria arruinado ao fim de um ciclo predatório. Comparando as duas opções, Schneider e colegas escrevem: “Ambos os modelos empregam aproximadamente o mesmo número de pessoas durante os primeiros oito anos. Após esse período, o modelo predatório atinge 4,5 mil empregos tanto na exploração florestal como na pecuária, enquanto o modelo sustentável, baseado no manejo florestal, permanece estável com 3,5 mil empregos. Contudo, com a exaustão da madeira comercial no 23º ano, a base econômica do modelo predatório migra para outro município, deixando para trás menos de quinhentos empregados envolvidos em pecuária. Se o recurso madeireiro do município fosse sustentavelmente manejado, os 3,5 mil empregos seriam mantidos indefinidamente.”

Sete anos depois de Schneider e colaboradores publicarem o estudo em que apresentaram o conceito de boom-colapso, Celentano e Veríssimo testaram empiricamente sua validade. Se o modelo estivesse correto, novas fronteiras de ocupação – aquelas em que a ação dos madeireiros estivesse em curso – deveriam ter indicadores de crescimento melhores do que velhas regiões já exploradas. As previsões de Schneider se confirmaram. Municípios em zonas sob pressão têm, em média, PIB municipal e per capita bastante superiores aos dos municípios já desmatados ou ainda florestados. Contudo – e aqui reside a tragédia do modelo de ocupação que o Brasil escolheu para a Amazônia –, quem já não tem florestas se tornou irremediavelmente pobre: “Os municípios mais desmatados da Amazônia apresentam PIB inferior à média da região. […] O PIB médio nesses municípios (23 milhões de dólares) é 60% inferior à média da Amazônia.”

Na zona desmatada escolheu-se derrubar a floresta, e, ao cabo da devastação, a área não se tornou mais próspera do que antes, quando seus recursos naturais ainda estavam intactos. Celentano e Veríssimo verificaram que os indicadores socioeconômicos das zonas desmatadas não guardam diferença com o das zonas florestais: “É o pior dos cenários: recursos naturais exauridos e manutenção ou agravamento da pobreza.” Daí o caráter agora inapelável da pobreza: quem permaneceu na terra destruída perdeu a opção de uso futuro dos benefícios de uma floresta exuberantemente rica. Contratou-se prosperidade efêmera à custa de miséria duradoura – ecológica, econômica e espiritual.

 

As análises pioneiras de Robert Schneider tornaram-se cada vez mais influentes ao longo dos anos 1990 e 2000. Novos pesquisadores entraram em cena, levando adiante os achados do norte-americano. Tomados em conjunto, esses estudos conduziam a uma pergunta: Como estancar a sangria e mudar de rumo?

Schneider deixara pistas em seu trabalho solitário de 1995, cuja terceira e última parte trazia o seguinte título: Chega o Governo. Foi ali que ele identificou o fenômeno do governo prematuro. Nas últimas linhas do capítulo, chamou a atenção para o desalinhamento entre interesses nacionais, regionais e locais. O que é bom para o país não é necessariamente percebido como bom para o município. A opção pelo desenvolvimento mais rápido, mesmo ao preço de comprometer o futuro, é essencialmente uma aposta local e regional, ao passo que a defesa dos benefícios de um crescimento mais sustentável, ainda que lento, é nacional e global: “A indústria ilegal de fármacos, extremamente lucrativa, a extração predatória de madeira, o garimpo que lança mercúrio nos rios, o desmatamento descontrolado – essas são práticas que a população local e seus representantes estarão inclinados a tolerar, em larga medida por aprovarem a atividade econômica que elas estimulam”, escreveu.

Desenha-se, assim, uma espécie de dilema da comunidade. Se o governo nacional deixa ao poder local a prerrogativa de decidir, o modelo boom-colapso será sempre o escolhido. Perderá o país e perderá a população futura do município.

No trabalho publicado em 2000, Schneider e colaboradores listam três razões que explicam a opção preferencial pela destruição. Primeiro, “o curto período dos mandatos municipais não permite que os líderes políticos adotem uma perspectiva de longo prazo com o objetivo de estabilizar e melhorar a qualidade de vida”. Segundo, muitas lideranças locais ganham proeminência e se elegem para cargos públicos por fazerem parte da economia de fronteira, o que significa que têm interesse em mantê-la vibrante. (É o caso, por exemplo, de Ubiraci Soares da Silva. O titular da prefeitura de Novo Progresso no período de 2017-20 foi garimpeiro e depois se tornou proprietário de uma loja de compra de ouro – a “loja do prefeito”, como se dizia na cidade. Ele aparece num banco de dados público como proprietário de um imóvel rural dentro de uma floresta nacional. Silva nega a propriedade, mas até a publicação desta reportagem a fazenda constava em seu nome. Gelson Dill, que o substituiu no cargo em 1º de janeiro, acumula multas por infrações contra o meio ambiente e tem terras embargadas por desmatamento dentro de uma unidade de conservação. Na vizinha Itaituba, Valmir Clímaco, reeleito em 2020 para a prefeitura do município, é negociante de garimpos, já foi condenado por desmatamento ilegal, denunciado por incitação à violência contra agentes públicos e, em setembro de 2019, a Polícia Federal apreendeu numa fazenda sua um avião que transportava armas e 580 kg de cocaína – Clímaco alegou que a propriedade havia sido invadida.) Por fim, escrevem Schneider e colaboradores, no curto prazo qualquer atividade regulada será sempre menos lucrativa do que a exploração predatória. Entre uma comunidade que imponha o manejo sustentável ou uma que tolere o corte selvagem, na ausência da força repressiva do Estado os madeireiros optarão quase sempre por atuar na segunda, privando a primeira de renda.

 

“O passado é um país estrangeiro: lá, as coisas são feitas de maneira diferente”, diz a frase que inicia O Mensageiro, romance do escritor inglês L.P. Hartley. A observação também se aplica à fronteira. É como se lá fosse outro país, regido por outros princípios. Deixada à sua volição própria, rumará sempre na direção contrária ao uso equilibrado dos recursos. O único modo de alinhá-la aos interesses da nação é fazê-lo de fora para dentro. Cabe ao governo nacional o papel de criar condições para que uma vida econômica não predatória na fronteira se torne competitiva e, em consequência, viável.

Schneider sugere alguns modos de alcançar esse objetivo. Para começar, é preciso transformar o pioneiro em colono. Se o primeiro tem muito pouco a perder e não lhe é custoso abandonar sua terra para seguir avançando pela floresta, o segundo deita raízes e não vê mais motivo para se mover. O Estado que provê educação, saúde e segurança fundiária ao pioneiro o fixa no chão.

Além disso, como vimos, a mineração de nutrientes como modo preferencial de produção é uma decorrência direta do estoque abundante de novas terras que, graças à construção de estradas, entram constantemente no mercado. Schneider observa que obras viárias podem aumentar ou diminuir o preço da terra. Quando o Estado decide adensar a malha numa região já consolidada, melhora a logística dos produtores locais e assim valoriza as propriedades. Quem pensava em abandonar sua gleba encontra motivos para descartar a ideia, já que agora é dono de um patrimônio significativo. Mesmo que decida vendê-la, não estará mais disposto a se aventurar na floresta, dado que o capital recém-adquirido e a proximidade dos serviços do Estado aumentaram seu bem-estar e estabilizaram sua situação econômica. Seria preciso pagar um preço alto para convencê-lo a abandonar o que conquistou.

Inversamente, “se a mineração de nutrientes é causada por terra barata, então a forma mais direta de reduzir a prática é evitar políticas públicas que diminuam o preço da terra”, escreve Schneider. Significa dizer que todo ato de governo que aumente a oferta de terras – seja espraiando a malha viária, seja tornando mais flexível o regramento fundiário, seja demonstrando leniência em relação ao roubo de terras públicas – intensificará a prática do garimpo de nutrientes e, assim, o subsequente abandono de terras, numa cadeia causal cuja consequência é fazer com que as comunidades que se estabelecem na fronteira jamais deixem de ser precárias. A aposta em malhas extensivas, em rodovias como a BR-230 (Transamazônica), a BR-010 (Belém-Brasília) e a BR-163 (no trecho Cuiabá-Santarém), exemplos de certa mentalidade de ocupação desenvolvimentista do território, é também uma opção pela transitoriedade e instabilidade das novas fronteiras.

Um estudo de 2014 publicado no periódico Biological Conservation demonstra que 95% do desmatamento na Amazônia acontece a 5,5 km de estradas – oficiais e clandestinas – ou a 1 km de rios. Durante uma conversa em Belém, o geólogo Carlos Souza Jr., um dos coautores da pesquisa, projetou um mapa da Amazônia na tela. “Agora eu vou acrescentar as estradas”, disse, dando um clique no mouse. Foi como se um para-brisa – o mapa – tivesse sido atingido por uma pedra. As trincas – as estradas – se irradiaram por toda a superfície, numa trama tão densa que parecia abarcar cada palmo do território. “Existem cerca de 300 mil km de estradas na Amazônia, e uns 80% delas são ilegais”, afirma Souza Jr. “Nas ilegais o desmatamento se concentra num raio de 5 km da via. Já nas estradas legais, pode chegar a 50 km.”

A solução estrutural para o problema está na estratégia de “fechar a fronteira”. Schneider havia indicado essa direção no estudo de 1995. Além de ter proposto substituir a malha rodoviária extensiva por malhas adensadas, garantir direitos de propriedade e criar linhas de crédito para quem decidisse investir no enriquecimento da própria terra, ele sugeriu uma quarta medida para estancar o avanço da fronteira: a implantação de “políticas de zoneamento”. Não se deteve muito no assunto. Contudo, de todas as proposições de seu trabalho, nenhuma teria maior impacto.

A ideia era identificar um mecanismo que valorizasse o que já estava aberto e, assim, evitar que o pioneiro abandonasse sua propriedade para empurrar a fronteira adiante. O essencial era pará-lo e fazê-lo usar melhor o que tinha – obrigá-lo a empregar técnicas melhores e a ser mais eficiente. Em suma, transformá-lo em colono. À beira da piscina do hotel em Brasília, Veríssimo explicou o conceito: “A receita para isso era produzir uma escassez artificial de terras, ou seja, tirar terra do mercado, reduzir a oferta. Isso você faz criando unidades de conservação ambiental, que funcionam como uma barreira contra o avanço das fronteiras.”

Quando as condições políticas se tornaram favoráveis – inicialmente no segundo governo Fernando Henrique e em seguida durante os dois mandatos de Lula, com Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente (MMA) por mais de cinco anos –, pesquisadores e ambientalistas levaram a Brasília os documentos técnicos que davam lastro à solução. Adalberto Veríssimo era um deles. No final de 2002, quando Fernando Henrique deixou a Presidência, 28% da Amazônia Legal estava protegida – no início de seu governo, essa proteção estendia- se a 16% da área. Foram criados grandes blocos de unidades de conservação de usos diversos, alguns permitindo o manejo sustentável dos recursos, outros só a pesquisa e o turismo, outros ainda vetando toda atividade econômica. A grande maioria desses blocos localizava-se ao longo da divisa Norte do país, uma região remota e sem grandes disputas por terra, onde o ônus político da implantação do zoneamento era menor.

O governo Lula foi além. Como titular do MMA entre janeiro de 2003 e maio de 2008, Marina Silva fechou a fronteira nas zonas sob pressão, onde já havia conflito e interesses em jogo. Pagava-se mais  caro politicamente por atuar nesses territórios em disputa. “Naquela época a BR-163 era uma cunha que avançava na floresta”, lembra Veríssimo, referindo-se à mesma rodovia Cuiabá-Santarém à beira da qual nasceu Novo Progresso. “Nós sabíamos que o problema estava ali. Havia esse debate: será que é possível uma BR-163 sustentável? Era uma visão espacial da região: a estrada está subindo, então antes que chegue lá em cima nós vamos fechar as margens dela com uma Floresta Nacional, e assim evitamos o custo político de fazer esse debate quando toda a floresta já estiver tomada.” A seu lado, Robert Schneider acrescenta: “Fechar lá longe, lá na frente, adiantando-se…”

“Com Marina e Lula fica explícito que a criação de áreas protegidas obedece à lógica do fechamento da fronteira”, explica Veríssimo. “A gente sabia que, por si só, a terra aberta e explorada não teria como sustentar os serviços sociais, de fiscalização e de infraestrutura que o Estado seria obrigado a prover. Nada disso caberia no Orçamento. A baixa produtividade não geraria os impostos para financiar os serviços. Seria preciso reduzir a presença do Estado, circunscrever a área de atuação estatal. Hoje o preço de impor a lei na Amazônia é muito alto, bem acima da capacidade fiscal do país. Fechar a fronteira é uma decisão política e econômica.”

Quando à frente do governo do Pará, Simão Jatene também se convenceu dos argumentos em favor da criação de unidades de conservação. Durante o primeiro de seus três mandatos como governador, iniciado em 2003, foi implantada uma extensa política de zoneamento no estado. “Nós tínhamos um plano muito claro”, ele conta em seu apartamento em Belém. “Criar diferentes tipos de zonas: de proteção integral, de uso sustentável, de uso intensivo para pecuária e grãos, áreas separadas para regeneração. A lógica era melhorar o uso onde já estava aberto, sem derrubar mais a floresta e sem empurrar a fronteira, porque isso custa muito caro para o Estado. Todo mundo dizia que era suicídio político… Mas eu fui eleito mais duas vezes.”

O fato de ruralistas não terem compreendido que seus interesses estavam sendo atendidos pelas políticas de fechamento da fronteira é uma ironia ou um sintoma – ironia, porque a criação de terras protegidas valoriza as propriedades rurais; sintoma, porque apenas as propriedades legais ganham valor, enquanto as outras se tornam objeto de litígio.

Em 2006, encerrado o primeiro mandato de Lula, a União e os estados, em especial o Pará, haviam posto sob alguma forma de proteção uma área equivalente à França continental. Quarenta e dois por cento da Amazônia Legal estava protegida.

Na história recente do país, só o Plano Real foi tão bem-sucedido como política pública. Obteve-se uma queda drástica no desmatamento, que passou de quase 30 mil km2 em 2004 – todo um estado de Alagoas – para menos de 5 mil kmem 2012. Visto que desmatar libera gás carbônico, isso significou a maior contribuição histórica de um único país à redução do lançamento de gases do efeito estufa na atmosfera. E, como previsto por Schneider e seus colegas, nada disso se fez à custa da vida econômica. Um recuo dessas proporções nas práticas de destruição da floresta não estrangulou a produção agropecuária, ao contrário. A dificuldade crescente para converter novas fronteiras em pastos e lavouras obrigou os produtores a serem mais competentes. No mesmo intervalo de anos em que reduzimos em 80% o desmatamento, aumentamos em 75% o PIB do campo e em 37% a produção agrícola na Amazônia Legal. Ao final do segundo governo Lula o Brasil alimentava 1,2 bilhão de pessoas por dia.

Feitas as contas, a Amazônia protegida produziu mais carne e mais soja do que a Amazônia agredida, evidência de que a vida nas fronteiras em eterna expansão não é só destrutiva. Também é ineficaz.


O conceito de Amazônia Legal existe desde o início da década de 1950. Integram o território regiões com problemas socioeconômicos semelhantes. Seus limites foram alterados várias vezes, na esteira de mudanças na divisão política do país. Hoje ela engloba o território integral de oito estados – Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins – e parte do estado do Maranhão, compondo uma área que corresponde a 58,9% do território brasileiro. Decorrente de um conceito político e não de um imperativo geográfico, a Amazônia Legal não se confunde com o bioma Amazônia, o qual se estende por 49% do território brasileiro. Além de abrigar toda a floresta tropical, a Amazônia Legal também abarca 20% do bioma Cerrado e parte do Pantanal mato-grossense.

 

Ilustrações: Gidalti Moura Jr e Carla Caffé
Animação: Ana Luísa Anker

João Moreira Salles

Documentarista, é editor fundador da piauí. Dirigiu Santiago, Entreatos e Nelson Freire, entre outros

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