Fatos e Fotos
Getúlio Vargas – tortura e cinema
No segundo volume da monumental biografia de Getúlio Vargas (Companhia das Letras, 2013), dedicado ao período 1930-1945, Lira Neto trata de maneira ambígua a questão da responsabilidade pessoal de Getúlio pela prática sistemática de tortura durante os 15 anos em que foi chefe do Governo, presidente eleito pelo voto indireto dos congressistas e ditador. Apenas tangencia a questão e no todo adota perspectiva semelhante à versão segundo a qual “Vargas exerceu um papel mediador no sentido de neutralizar o sistema repressivo da polícia, que escapava do seu controle”, nas palavras de Alzira Vargas do Amaral Peixoto, à revista Fatos e Fotos, em 1963.
No segundo volume da monumental biografia de Getúlio Vargas (Companhia das Letras, 2013), dedicado ao período 1930-1945, Lira Neto trata de maneira ambígua a questão da responsabilidade pessoal de Getúlio pela prática sistemática de tortura durante os 15 anos em que foi chefe do Governo, presidente eleito pelo voto indireto dos congressistas e ditador. Apenas tangencia a questão e no todo adota perspectiva semelhante à versão segundo a qual “Vargas exerceu um papel mediador no sentido de neutralizar o sistema repressivo da polícia, que escapava do seu controle”, nas palavras de Alzira Vargas do Amaral Peixoto, à revista , em 1963.
Tendo jornais e relatos pessoais de difícil comprovação como suas principais fontes, Lira Neto trata a questão sensível da tortura de forma superficial nas cerca de 500 páginas, abordando o assunto exclusivamente com referência à repressão aos levantes de novembro de 1935. Dessa maneira, restringe a esse período específico sua afirmação de que Getúlio não impediu “a instituição da tortura como método investigativo nos porões do seu governo,” e deixa a questão sensível em aberto para o resto do período abordado.
Baseado em declaração de próprio Getúlio e do seu Chefe de Gabinete, Lira Neto assume como verdadeiro fato negado, em retrospecto, pelo Marechal Eurico Gaspar Dutra – Getúlio teria impedido o fuzilamento dos líderes dos levantes de 1935, proposto, segundo versão do Chefe de Gabinete, pelo ministro da Guerra João Gomes. Embora não haja como saber ao certo, para Lira Neto não há a menor dúvida: Getúlio “evitou a execução sumária dos prisioneiros”, afirmação no mínimo temerária.
Segundo outros autores, a violência da polícia foi usual contra presos comuns e políticos de 1930 a 1945, tanto comunistas quanto integralistas, sendo empregados métodos bárbaros de interrogatório. No conhecido episódio do ataque integralista ao Palácio Guanabara, em 1938, alguns participantes não contaram com a mesma suposta intervenção salvadora de Getúlio supostamente, ocorrida três anos antes. Foram fuzilados nos jardins dos fundos, horas antes dele ir a pé até o Catete, sorridente, de fraque e cartola, sendo saudado no caminho pelos moradores do bairro.
Se é verdade que Getúlio conseguiu preservar sua própria imagem de qualquer responsabilidade pessoal pelas atrocidades cometidas enquanto esteve no poder, não é verossímil que, especialmente a partir de 1935, quando foi decretada a Lei de Segurança Nacional, conhecida como “Lei Monstro”, seus subordinados diretos à frente da repressão policial agissem com autonomia, sem seu conhecimento do que ocorria nas prisões. Além disso, Getúlio sempre deu cobertura ao seu irmão mais moço, Benjamin Vargas, que teria sido o mandante do fuzilamento dos integralistas nos jardins do Palácio Guanabara, além de responsável direto por outras brutalidades e truculências.
Dado o cuidado em não trincar a imagem do grande conciliador, Getúlio sai com algumas cicatrizes, mas no todo ileso, mais uma vez preservado, do segundo volume da biografia de Lira Neto.
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Ao contrário do que ocorre no primeiro volume, no segundo Lira Neto inclui a Cinemateca Brasileira entre os arquivos consultados e declara que filmes serviram para amparar a “recomposição de época”. Ainda assim, do mesmo modo que ignorou Pátria Redimida, de J.B.Groff – documentário de J.B.Groff sobre a revolução, feito em 1930 – deixa agora de recorrer, ao menos de forma explícita, aos cerca de 330 Cinejornais Brasileiros, produzidos entre 1939 e 1946, a maior parte produzida regularmente pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP).
O único filme brasileiro ao qual Lira Neto se refere é Comemoração do Dia da Bandeira, produzido pela Cinédia S.A. por encomenda do Departamento Nacional de Propaganda, registrando a comemoração atrasada do Dia da Bandeira, na praia do Russel, em 27 de novembro de 1937. Para seu relato da cerimônia em que foram queimadas as bandeiras dos estados, Lira Neto parece ter se baseado mais nas reportagens dos jornais Correio da Manhã e A Noite do que na observação das imagens que não chega a comentar diretamente. Perde dessa forma a oportunidade de registrar a presença menos ostensiva de Getúlio do que a que ele viria a ocupar nos Cinejornais brasileiros durante o Estado Novo. Seu papel na cerimônia chega a parecer discreto em contraposição ao do cardeal D. Sebastião Leme, de Heitor Villa-Lobos e, principalmente, do ministro da Justiça Francisco Campos, cujo discurso é reproduzido parcialmente, em som direto.
Dois anos depois dos levantes de 1935, pode-se ouvir, continuando a ser propagado, o mito de que soldados foram “mortos no posto de honra, e rendidos nesse posto pelos seus irmãos de armas”, e a proclamação que “não há lugar no coração dos brasileiros para outras flâmulas, outras bandeiras, outros símbolos.” A bandeira do Brasil seria única, “porque só há um Brasil”, e em torno dela “se refaz de novo a unidade do Brasil, a unidade de pensamento e de ação”, conforme proclama Francisco Campos em trechos não mencionados por Lira Neto.
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O cinema volta a surgir na referência feita por Lira Neto à proibição, em fevereiro de 1939, do Departamento Nacional de Propaganda, predecessor do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), de serem exibidos trechos do discurso que Roosevelt fizera pouco antes no Congresso americano. O mais provável é que o filme em questão fosse um dos cine-jornais americanos comumente exibidos à época no Brasil. Segundo o comunicado encaminhado a Getúlio por Osvaldo Aranha, embaixador em Washington, os Estados Unidos manifestaram “seu ressentimento pelo receio da repercussão” da ordem para “suprimir todas as cenas ofensivas à Alemanha, à Itália e ao Japão, desde o letreiro ‘Roosevelt contra as perseguições raciais’ e o ‘Discurso pelo rádio’.”
Enquanto nos Estados Unidos estava arraigada a consciência de que a Segunda Guerra era inevitável e a crítica ao racismo era feita pelo presidente da República, no Brasil as restrições à entrada de judeus estavam em vigor e Getúlio fazia de tudo para não tomar partido no conflito que se aproximava.
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Mesmo depois do Brasil ter entrado na Guerra ao lado dos Aliados, o DIP impôs cortes ao primeiro filme da série Por que lutamos, produzido por Frank Capra para o governo americano, que procurava explicar aos recrutas dos Estados Unidos os princípios pelos quais estavam lutando.
A narração do filme descreve o conflito mundial como sendo entre, de um lado, países democráticos e, do outro, regimes centralizados, liderados por demagogos, sem parlamentos e tribunais independentes, com a imprensa submetida à censura –fundamentos políticos do nazismo e do fascismo que estavam, em boa parte, na base do regime ditatorial do Estado Novo, chefiado por Getúlio Vargas de 1937 a 1945.
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