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    Foto: Marcos Yoshi / Projeto Fapesp Sucksdorff

questões cinematográficas

Gilberto Santeiro – despedida

Pavio curto. Esse foi o apelido que o pai deu quando ainda era criança. Com o passar do tempo, o pavio foi encurtando e, nos últimos anos, as explosões foram se tornando mais frequentes. Qualquer pretexto servia. Com isso, amigos de longa data haviam se distanciado.

| 04 maio 2015_12h30
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Pavio curto. Esse foi o apelido que o pai deu quando ainda era criança. Com o passar do tempo, o pavio foi encurtando e, nos últimos anos, as explosões foram se tornando mais frequentes. Qualquer pretexto servia. Com isso, amigos de longa data haviam se distanciado.

Desde o início da década de 1990, o Museu de Arte Moderna se tornara seu domínio, primeiro, encarregado da programação da Cinemateca e, depois, como curador. Cinéfilo inveterado, ao iniciar esse trabalho Gilberto Santeiro revelou vocação pouco conhecida. Acumulara conhecimento enciclopédico sobre cinema e tinha pendor para colecionar filmes, memorabilia e objetos variados.

Apaixonado por cinema, Gilberto tinha tolerância baixa para quem não cultuava os grandes mestres, nem sabia tanto quanto ele. Dizem que na juventude rompeu um namoro por que a moça não tinha ideia quem fosse Alexander Nevski. Em outra ocasião, no início de 1967, ele soube através do meu irmão, Lauro, de quem era amigo desde o ginásio, que a primeira cópia de Terra em transe seria exibida à meia-noite no antigo cinema Bruni Flamengo. Era uma exibição privada, apenas para os produtores e alguns integrantes da equipe. Gilberto não teve dúvida. Foi à última sessão do filme que estava sendo exibido e no final se escondeu no banheiro, onde esperou até perceber que a projeção de Terra em transe ia começar. Com a luz da sala já apagada, esgueirou-se até a plateia e assistiu ao filme em primeiríssima mão. O feito, para ele, foi equivalente a ter ganho uma medalha olímpica.

Gilberto foi vítima, primeiro, da crise de 1990 que interrompeu a produção de filmes, deixando-o sem trabalho e, pouco depois, da transformação ocorrida com o surgimento da edição digital à qual não soube se adaptar. Interrompeu, assim, a carreira de montador, iniciada em 1970. Durante 21 anos fora capaz de trabalhar com diretores de personalidades tão díspares quanto Haroldo Marinho, Carlos Alberto Prates, Ivan Cardoso, Paulo Tiago, Gustavo Dahl e Zelito Vianna, entre outros. Época em que ainda conseguia controlar o pavio curto.

Quando trabalhamos juntos foi sempre um colaborador exemplar, dando contribuições decisivas a cinco filmes feitos ao longo de dez anos. Em 1975, estivemos no Irã pré-Ayatolah, participando do Festival de Teerã. Fomos a Isfahan e Shiraz e passamos pela placa que indicava o caminho de Pasárgada. Até hoje me pergunto por que não desviamos da rota prevista para conhecer o refúgio mítico do poema de Manuel Bandeira.

Entre 1989 e 1991, Gilberto trabalhou com Eduardo Coutinho, montando o documentário Fio da memória. Testemunhei e procurei mediar o desencontro absoluto deles dois. Coutinho, paciente, aguentou firme, talvez por estar fazendo um filme que não o satisfazia. Mas a irritação e agressividade do Gilberto extrapolavam as medidas. E depois disso eles nunca mais trabalharam juntos. 

Gilberto começou como fotógrafo dos filmes do seu irmão, Sérgio, e como diretor de Cordiais saudações, em 1968. É um curta-metragem na contracorrente das vanguardas, revalorizando a velha guarda, e apresentando Araci de Almeida, Lindaura de Medeiros, Marilia Batista, Baden Powell e Almirante, além da música de Noel Rosa.

Tendo feito Cordiais saudações aos 22 anos, um horizonte de possibilidades parecia aberto. O tempo passou e as opções foram se estreitando. O que nos resta de Gilberto é o filme que fez, os vários que montou e a lembrança do amigo, colega e colaborador – um homem afetuoso de pavio curto, cada vez menos conformado com seu próprio destino e vencido pela amargura.

Gilberto Santeiro (1946-2015) morreu quinta-feira, 30 de abril, aos 68 anos. Na fotografia acima, feita em setembro do ano passado no auditório da Cinemateca do Museu de Arte Moderna, ele parece um tribuno. Aparenta tranquilidade, colhido dizendo alguma coisa que o gesto largo do braço direito e a mão enfatizam. Seria bom poder guardar essa imagem dele.

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