Era manhã da segunda-feira, 12, quando uma nota do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) anunciou o lançamento do Painel de Monitoramento ao Risco de Incêndio, uma plataforma em formato escolar na qual pontinhos vermelhos, laranja, amarelos e verdes sinalizam diariamente no mapa do Brasil a probabilidade de fogo na vegetação. A escala de risco vai de fraco a perigosíssimo, com base em dados de temperatura, chuva e umidade das estações meteorológicas. No mesmo dia, em uma live produzida pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, com a presença da ministra Tereza Cristina, o diretor do Inmet, Miguel Lacerda, informou que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) não divulgaria mais informações sobre incêndios; a partir dali todos os relatórios do governo federal seriam centralizados no Sistema Nacional de Meteorologia (SNM), que reúne vários órgãos, inclusive o próprio Inpe.
O movimento foi abortado no dia seguinte (13), diante da reação ao que foi entendido por especialistas, pesquisadores e ex-diretores do Inpe como mais uma investida do governo para controlar a divulgação de dados que refletem o desempenho ruim na área ambiental. O governo mudou o tom e, para conter os danos, divulgou nota dizendo que o SNM tem atuação conjunta de vários órgãos. Junto com a pressão da opinião pública, ficou patente que a nova ferramenta do Inmet é pior e menos eficiente para uso agrícola do que a já utilizada pelo Inpe – mais sofisticada para o monitoramento de risco de fogo, combinando informações meteorológicas com dados de cobertura de solo. Manchas coloridas no mapa indicam em tons que vão do amarelo ao vermelho o risco à vegetação.
“Para entender a safadeza: os dados de riscos de queimadas do Inpe já combinam dados do Inmet com modelos de previsão do tempo. O que o Inmet vai gerar é muito pior do que o Inpe faz hoje. Mais um retrocesso proposital na geração de informação ambiental”, reagiu em sua conta no Twitter o ex-diretor do Inpe Gilberto Câmara. Em sua avaliação, o Inmet, ao usar apenas os dados de suas estações que não cobrem o Brasil por inteiro, faz com que os mapas de risco de queimadas sejam subestimados. “Mais uma cloroquina científica desse governo. O objetivo é calar a boca do Inpe.” Diante da mais recente investida do governo, Câmara passou a articular com o também ex-diretor do Inpe Ricardo Galvão um movimento de resistência do instituto e de transparência dos dados.
O sistema do Inpe, aliás, continua no ar. “Não temos nenhuma instrução de que algum produto do Portal Queimadas do Inpe será alterado ou interrompido. Pelo contrário, em breve entrará no ar uma versão do Risco de Fogo mais completa e amigável aos usuários”, disse na quarta-feira à piauí o coordenador do Programa Queimadas, Alberto Setzer.
Diferentemente do Instituto Nacional de Meteorologia, ligado ao Ministério da Agricultura, o Inpe é ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, e entende que o risco de queimadas está associado não apenas a dados de temperatura e umidade, mas à dinâmica do desmatamento. O Programa Queimadas do Inpe registrou, em junho, o maior número de focos ativos de fogo no bioma Amazônia desde 2007.
“Não tem como acabar com as queimadas enquanto não acabar com o desmatamento”, resume o pesquisador e fundador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), Beto Veríssimo. Com o desmatamento na Amazônia batendo recordes sucessivos nos quatro últimos meses, nos seis anos da série histórica dos alertas do Inpe, as queimadas na Amazônia continuarão “no radar”, mesmo que o período de chuvas tenha sido mais intenso, adianta. Veríssimo calcula que cada hectare de floresta abatida represente entre 250 e 300 toneladas de biomassa. “A floresta derrubada não vira compostagem, vira fumaça”, completa.
Foram os sistemas do Inpe que apontaram, no governo Bolsonaro, as duas maiores taxas de desmatamento da Amazônia desde 2008. Em 2019 e 2020, foram derrubados 21 mil km2 de florestas, segundo a taxa Prodes, que mede oficialmente o desmatamento entre os meses de agosto de um ano e julho do ano seguinte. É uma extensão equivalente ao estado de Sergipe. Os alertas de desmatamento do Inpe (Deter) já apontam para uma próxima taxa anual tão ruim quanto a anterior. São números muito acima dos 4,6 mil km2 medidos em 2012, ano em que o Brasil registrou a menor taxa de desmatamento desde 1988, quando os dados começaram a ser monitorados. Até ali, o país parecia caminhar para alcançar a meta assumida na Política Nacional de Mudança do Clima para 2020, de 3,9 mil km2. Sob Bolsonaro, o governo acena com uma meta de conter o desmatamento anual a 8,5 mil km² em 2022.
“Não é a primeira vez que membros do governo tentam interferir no instituto ou desqualificá-lo em plena temporada de queimadas. Isso ocorreu em 2019, quando o diretor do Inpe foi demitido, e em 2020, quando o vice-presidente da República acusou um suposto ‘infiltrado’ de ‘vazar’ informações, e o Ministério da Defesa torrou dezenas de milhões de reais num satélite para duplicar o trabalho do instituto de pesquisas espaciais”, lembra Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima.
Especialistas ouvidos pela piauí avaliam que o governo pode até tentar controlar a informação sobre desmatamento ou queimadas. Mas, diferentemente do que aconteceu quando o governo decidiu cortar verbas para a realização do Censo demográfico pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e produziu um apagão, não há como esconder dados de desmatamento e queimadas. “É muito difícil parar uma referência global como o Inpe, e não há como esconder o problema, porque há outros sistemas que usam dados de satélites”, observou Tasso Azevedo, coordenador-geral do MapBiomas, projeto de mapeamento do uso e cobertura da terra. “A tentativa é ridícula”, resumiu.
Não é a primeira tentativa feita pelo governo Bolsonaro de atacar os dados, ou quem os divulga, em vez de buscar solução para o problema. Em agosto de 2019, Bolsonaro questionou dados de desmatamento divulgados pelo Inpe e pediu a cabeça do então diretor da instituição, o físico Ricardo Galvão.
O plano estratégico do Conselho Nacional da Amazônia Legal já estabelecia como meta a “integração” dos bancos de dados, informações e produtos geoespaciais, eufemismo para tirar do Inpe a liderança no monitoramento do desmatamento. O plano definia data para essa integração: dezembro de 2021. O mesmo documento anunciou, em 2020, a intenção do governo de comprar um novo satélite para o Ministério da Defesa.
O contrato foi assinado em dezembro de 2020 com a empresa finlandesa Iceye, apesar da eficácia questionada à época. Em 8 de junho, o Tesouro Nacional desembolsou a primeira parcela do pagamento, de 10,2 milhões de reais, pelo sistema de sensoriamento remoto. O dinheiro foi deslocado dos milhões destinados ao envio de tropas para combater o desmatamento na Amazônia, por meio da operação Verde Brasil 2. Uma nova operação militar está em curso na Amazônia.
O custo total do satélite é de 179 milhões de reais, 67 vezes o orçamento do Inpe para monitorar desmatamento e queimadas em todos os biomas em 2021. Neste ano, o governo fez mais um corte de 18% na verba destinada ao monitoramento, reduzida a 2,65 milhões de reais. Esse valor é 73% menor do que o destinado ao monitoramento em 2013.