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questões cinematográficas

Graciliano Ramos e o cinema

O cinema fazia parte da rotina de Graciliano quando morava no Rio, e que ele gostava das comédias de Frank Capra, de Fantasia, de Walt Disney, e admirava atores como Katherine Hepburn, Leslie Howard e Charles Chaplin. Mais raro, na época, é o interesse de Graciliano Ramos pelo cinema brasileiro.

| 01 jul 2013_14h08
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Ficção

Em , o personagem principal, Luís da Silva, não tem o cinema em alta conta.

Sentado com ele à calçada, Seu Ramalho diz que “o mundo está perdido”.

“‘Isso é por causa do cinema’, seu Ramalho”, responde Luís da Silva. E continua: “O senhor nunca vai lá. É feliz. Nem calcula as sem-vergonhices que há na tela. […] O cinema é o diabo, seu Ramalho. O senhor não imagina. São uns beijos safados, língua com língua, nem lhe conto. Provavelmente as moças saem de lá esquentadas.” (Graciliano Ramos, . Rio de Janeiro – São Paulo: Editora Record, 2000 [52ª edição], p.107)

Confissão

Já em Memórias do cárcere há pelo menos uma referência ao cinema como meio de evasão no período em que Graciliano Ramos esteve preso, entre março de 1936 e janeiro do ano seguinte.

“Ociosos e ausentes do mundo, precisávamos fazer esforços para não nos deixarmos vencer por doidos pensamentos. Causavam-me espanto os devaneios dos outros, às vezes me sentia resvalar numa credulidade quase infantil, e era doloroso notar os escorregos do espírito. Nise ficava uma hora a matutar nos programas de cinema, exigia a minha opinião, grave. Entrávamos a escolher fitas, enfim nos decidíamos:

– Vamos ao Metro.

Esse exercício estava sempre a repetir-se, e nem sei se era apenas brincadeira, se não chegávamos a admitir a possibilidade maluca de atravessar paredes e grades, sair à rua, tomar o ônibus, entrar nas lojas, nos cafés, nas livrarias e nos cinemas.” (Memórias do cárcere. São Paulo: Martins, 1965. [5ª edição]. Segundo volume, p. 234)

Esses devaneios de certa forma confirmam a informação de que o cinema fazia parte da rotina de Graciliano quando morava no Rio, e que ele gostava das comédias de Frank Capra, de Fantasia, de Walt Disney, e admirava atores como Katherine Hepburn, Leslie Howard e Charles Chaplin. (Dênis de Moraes, O velho Graçauma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012, edição rev. e ampl. [1ª edição, 1992], p.175.)

Mais raro, na época, é o interesse de Graciliano Ramos pelo cinema brasileiro, revelado no comentário que publicou, em um jornal de São Paulo, sobre O descobrimento do Brasil. O filme dirigido por Humberto Mauro estreou em dezembro de 1937, um mês depois da cavalaria da polícia do Distrito Federal ter cercado os prédios da Câmara e do Senado, e do Congresso Nacional ser fechado por ordem do presidente Getúlio Vargas. No final de novembro, no dia do aniversário dos levantes de 1935, o Estado Novo promovera sua primeira grande celebração, conduzida por Heitor Villa-Lobos, pelo cardeal D. Sebastião Leme e pelo ministro da Justiça, Francisco Campos. As bandeiras estaduais foram queimadas na Praia do Russel, no Rio, e a bandeira nacional transformada em um dos principais símbolos do novo regime.

Onze meses depois de ter saído da prisão, escrevendo sobre O descobrimento do Brasil, Graciliano parece ter encontrado uma maneira de comentar a situação política do momento. Ao elogiar o filme, por comparação às coisas “chochas” feitas no Brasil que estava acostumado a ver, encontrou uma maneira de criticar a visão oficial das relações sociais predominante no Estado Novo ao comentar a suposta harmonia entre colonizadores portugueses e nativos, em 1500, encenada por Humberto Mauro.

“Uma tradução de Pero Vaz”, Graciliano Ramos

“A fita que Humberto Mauro nos apresenta agora é uma coisa bem estranha no cinema brasileiro. O governo da Bahia custeou-a, ou pelo menos patrocinou a execução dela – e procedeu com muito acerto.

Estávamos acostumados a ver tanta coisa chocha que esse ‘Descobrimento do Brasil’, realizado sob a orientação de técnicos que dispensam elogios, quase nos assombra. Ordinariamente víamos as películas nacionais por patriotismo. E antes de vê-las, sabíamos perfeitamente que, excetuando o patriotismo que nos animava, tudo se perdia.

Temos em fim um trabalho sério, um trabalho decente: a carta de Pero Vaz reproduzida em figuras, com admiráveis cenas, especialmente as que exibem multidão. Aí estão os fidalgos cobertos de veludo e de seda, a maruja descalça, a nau perdida, a chegada a Santa Cruz, a missa, a dança dos índios, a excelente dança dos índios, com excelente música de Villa-Lobos. De atores, apenas Frei Henrique de Coimbra e mais dois frades.

Afirmara-se que o físico Mestre João passou alguns meses habituando-se a coxear. E tanto se habituou que hoje, peixeiro e fora da tela, continua coxeando. Essa Mestre João, que vive mexendo no astrolábio e descobre uma vereda nova no céu, é magnífico. Os fidalgos portugueses estão bons, alguns estão muito bons, mas esse Mestre João, peixeiro e coxo, é espantoso. Bom como ele só o degredado que fica junto da cruz. E índios muito verdadeiros, muito vivos: o que anuncia a vinda dos marinheiros, os que dançam na praia, os dois encontrados na piroga e levados a Cabral.

E aí nos aparece um desgosto. Esses dois selvagens são ótimos: ingênuos, confiados, facilmente excitáveis. Perfeitos selvagens. O que nos espanta é o acolhimento que eles tiveram a bordo. Essas coisas estão na carta de Pero Vaz, é claro, mas lá estão contadas simplesmente e agora surgem pormenores que prejudicam a verossimilhança do caso.

Os estrangeiros se extasiam na presença dos hóspedes beiçudos e pintados que jogam fora a comida e cospem a bebida. São uns santos os portugueses, têm uma expressão de beatitude que destoa das façanhas que andaram praticando em Terras da África e da Ásia e por fim neste hemisfério. É o próprio almirante que põe cobertores em cima dos selvagens e lhes arruma travesseiros com uma solicitude, uma delicadeza de mãe carinhosa.

Os visitantes praticam numerosos disparates – e os brancos não desmancham um sorriso de condescendência babosa. 

Diante do invariável sorriso, chega-nos uma ideia triste. Se os europeus procederam de semelhante modo, foram os maiores canalhas do universo, pois enganaram, adularam torpemente os desgraçados que pouco depois iam exterminar. Mas a intenção dos criadores da melhor película brasileira não foi denegrir o invasor: foi melhorá-lo, emprestar-lhe qualidades que ele não tinha. Se nos mostrassem apenas ofertas de cascavéis e voltas de contas, muito bem. Mas vemos um sorriso beato nos lábios daqueles terríveis aventureiros, vemos o comandante da expedição, com desvelo excessivo, lançar cobertas sobre os tupinambás e retirar-se nas pontas dos pés, para não acordá-los. Como não é possível admitir que o almirante pretendesse iludir criaturas adormecidas, é razoável supormos que ele tinha um coração de ouro. 

Sabemos, porém, que os que vieram depois dele foram muito diferentes.

E lamentamos que nesse trabalho de Mauro, trabalho realizado com tanto saber, se dê ao público retratos desfigurados dos exploradores que aqui vieram escravizar e assassinar o indígena.”

Transcrito de Graciliano Ramos, Linhas tortas. São Paulo: Martins, 3ª edição, 1970. p.175. Reproduzido em Humberto Mauro: Sua vida/Sua arte/Sua trajetória no cinema. Rio: Editora Artenova – Embrafilme, 1978. p. 66.

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