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    A obra "Negros no fundo do porão", de Johann Moritz Rugendas, 1835: touceiras usadas para fazer camas contaminaram os biomas brasileiros

questões ambientais

O cerco às gramíneas africanas, elo entre escravidão, pecuária e desmatamento

As plantas que devastam o Cerrado chegaram nos navios que traficavam pessoas escravizadas e se espalharam com a ajuda da pecuária, apontam estudos. Não é possível vencê-las, mas cientistas tentam ao menos ter controle sobre elas

Eduardo Geraque | 26 jan 2024_08h12
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Uma das versões mais aceitas no meio científico para explicar a invasão de gramíneas exóticas que se espalham de forma preocupante pelo Cerrado aponta para o século XVII. Mais precisamente para as estimadas 9200 viagens de navios negreiros realizadas entre a África e a América do Sul em mais de trezentos anos, segundo dados do projeto SlaveVoyages. Além do transporte trágico de 4,9 milhões de pessoas vindas da África entre 1560 e 1850, cruzaram o Atlântico espécies vegetais que depois se alastraram pelo Brasil e se tornaram uma ameaça à biodiversidade da Mata Atlântica, do Cerrado e das regiões savânicas. 

De acordo com o historiador ambiental Warren Dean (1932-1994), que se debruçou sobre a destruição da Mata Atlântica em sua carreira acadêmica, é provável que sementes de capim-guiné, capim-pará, capim-marmelada e do capim-jaraguá estivessem entre as palhas usadas pelos traficantes para improvisar as camas das pessoas escravizadas nos porões das embarcações. Na África, todas as espécies eram obtidas facilmente nas beiradas das florestas já desmatadas.

Os registros de Dean, como ele descreve na obra A Ferro e Fogo: a História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira, mostram que a invasão já havia ocorrido no século XVII, quando espécies de capins africanos foram identificadas perto da cidade do Rio de Janeiro nas forragens para os cavalos. Esses capins exóticos se adaptaram tão facilmente que se espalharam de forma natural, e também com um incentivo da pecuária: eram usados como pastagens, ainda que em algum momento tenha se descoberto que não fossem tão ricos em aminoácidos e micronutrientes quanto as espécies nativas.

O resultado para os rebanhos é que doenças decorrentes da deficiência nutricional passaram a ser comuns, especialmente na estação seca, quando os capins já não conseguiam mais extrair sais minerais do solo. Ainda assim, elas se alastram facilmente, e se tornaram uma presença incômoda em terras de cultivo abandonadas, campos de gramado nativo, margens de rio e até em florestas, tomando o lugar da vegetação presente. Um pasto aberto no meio da selva desmatada acaba, assim, por ter uma área muito maior de devastação, conforme se espalham as sementes.

Um dos principais exemplos é o capim-gordura, um dos tipos de gramíneas africanas, que se tornou um dos grandes responsáveis pela africanização vegetal das ricas savanas da América do Sul. O historiador Sandro Dutra e Silva, autor de textos sobre a história ambiental do Cerrado, também mergulha nos escritos deixados por outros estrangeiros ilustres que visitaram a região. Segundo o pesquisador, conforme atesta o trabalho A Fronteira do Gado e a Melinis Minutiflora: A História Ambiental e as Paisagens Campestres do Cerrado Goiano no Século XIX, o capim-gordura também já fazia parte dos registros deixados por Saint-Hilaire (1779-1853). O naturalista francês assinalou, após cruzar uma região conhecida como Mato Grosso de Goiás na época da Independência, como a espécie oportunista já estava instalada na região: “Parece que se fizeram em outros tempos plantações no meio da mata, pois em vários trechos veem-se grandes clareiras tomadas pelo capim-gordura, planta que, como sabemos, é indício infalível de antigos desmatamentos.”

A professora Vânia Pivello, pesquisadora do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB/USP) e uma das principais especialistas do país em invasões biológicas no Cerrado, explica que os tipos de gramíneas implicam em diferentes causas.

A tese mais aceita para a introdução no país do capim-gordura (Melinis minutiflora) e do capim-colonião (Megathyrsus maximus) está realmente relacionada com o tráfico negreiro. “As touceiras [tufos] desses capins eram secas e usadas como cama para os escravos”, explica. Outras, como algumas braquiárias (Urochloa brizantha, Urochloa humidicola) foram trazidas para a região Centro-Oeste nos anos de 1960, para alimentação do gado, por terem alto valor nutritivo. O capim-annoni (Eragrostis plana) foi introduzido acidentalmente no Rio Grande do Sul, nos anos de 1950, como contaminante de sementes de outras forrageiras”, explica Pivello.

Na substituição, ao longo de séculos, das gramíneas e espécies nativas pelas africanas, a biodiversidade é a que mais perde. O fluxo de nutrientes no solo também muda e, como consequência, as alterações ambientais são drásticas. Todo o Cerrado brasileiro, em maior ou menor grau a depender da região, sofre com o problema. Existe, primeiro, uma semelhança evidente em termos de regimes de chuva e temperatura entre as savanas africanas e brasileiras.

As espécies do outro lado do Atlântico reúnem outras características que as fazem conseguir expulsar as espécies brasileiras do seu hábitat para, dessa forma, conquistá-lo. São gramíneas com grande capacidade de dispersão por causa da intensa capacidade de produzir sementes com alta capacidade de germinação. O sucesso das invasões também está atrelado a um ciclo reprodutivo rápido e com uma alta eficiência energética na utilização dos nutrientes do solo. Além disso, as espécies que estão ganhando a luta ecológica têm altas taxas de crescimento e tolerância ao desfolhamento e à herbívora. Os estudos também mostram que a maioria das gramíneas africanas estão muito bem adaptadas à colonização de áreas abertas e com muito sol. Ou seja, tudo o que o Cerrado brasileiro tem.

Outra questão delicada, que está sendo melhor estudada, é a relação entre a invasão e os incêndios cada vez mais constantes, e potentes, do bioma. As gramíneas africanas, quase sempre, funcionam como se mais gasolina fosse jogada na fogueira. Isso porque elas têm muita biomassa.

O mapa em constante atualização feito a partir dos monitoramentos de vários grupos de pesquisa está cada vez mais vermelho. Ou seja, todo o ecossistema está impactado, em maior ou menor grau, processo que se intensificou nos últimos vinte anos, também em razão da necessidade de preservar o Cerrado de sua destruição. 

Atualmente, a estratégia de minimizar o problema se volta para as áreas de conservação. Onde a pecuária está consolidada, por exemplo, não há muito o que fazer. “As gramíneas invasoras têm um valor econômico importante, pois são utilizadas, em sua maioria, no plantio para o pasto e na criação de gado”, afirma Alessandra Fidelis, professora da Unesp de Rio Claro.

O exemplo da braquiária ilustra bem o dilema ambiental em curso no Cerrado. Ao mesmo tempo que a planta é uma das mais utilizadas para o pasto do boi, é também considerada uma das plantas invasoras mais agressivas. “É uma espécie que, além de reduzir a diversidade local das espécies nativas, também é um grande obstáculo na restauração do Cerrado. Existem algumas técnicas já descritas para controlar essas gramíneas, mas a erradicação é praticamente impossível, exceto se for feita bem no início da invasão”, afirma a bióloga da Unesp.

O primeiro obstáculo encontrado pelos cientistas é, antes de mais nada, técnico. São muitas as espécies invasoras, com características bastante distintas e que infestam lugares com condições ambientais díspares. No ambiente natural, por exemplo, herbicidas não entram, apesar de o produto ter mostrado resultado em áreas produtivas, especialmente de soja e de milho. Outras técnicas usadas com relativo sucesso, inclusive em unidades de conservação, passam pelo fogo, abafamento por meio de lonas, além dos atos de arrancar ou capinar, métodos manuais que costumam custar mais.

“O capim-gordura, experimentos já demonstraram, pode ser reduzido bastante com queimadas anuais, o que abre espaço para as espécies nativas voltarem a ocupar a área. Mas as queimadas não podem ser usadas para as braquiárias sem associação com outras técnicas, porque a espécie suporta muito bem o fogo”, explica Pivello. “O arranquio das gramíneas invasoras também tem que ser feito com frequência para não dar tempo de o banco de sementes que fica no solo voltar a germinar e promover a reinfestação. As touceiras devem ser arrancadas [manualmente] sempre antes da emissão das flores.” Assim como o abafamento por meio das lonas, explica a pesquisadora da USP, não é indicado para áreas muito grandes e nem onde existem muitas espécies nativas. “É um método que mata todas as espécies vegetais, sem distinção.”

Como não existe uma receita de bolo, e cada caso deve ser estudado em detalhes, existe apenas uma certeza quando se lida com espécies invasoras, afirma a cientista da USP. “Não fazer nada é a pior situação, porque com o passar do tempo as coisas só vão piorar. A melhor atitude seria evitar a instalação das gramíneas invasoras em novas áreas, por meio de informação, legislação e outras medidas de prevenção. Caso a invasora chegue, deve ser eliminada o mais cedo possível, pois quanto mais tempo passa, mais difícil é o manejo.”

Se o Cerrado que serviu de inspiração para os viajantes estrangeiros e para Guimarães Rosa é algo do passado, e muito do que existe hoje está alterado pelo agronegócio, ainda existem vários trechos que podem ser conservados e restaurados, apesar da dificuldade crônica que o Brasil tem de investir em ciência. E existem cientistas buscando criar protocolos para assegurar que as invasões das gramíneas africanas não sejam ainda mais contundentes. 

São estratégias que visam misturar os vários procedimentos já conhecidos que surtem efeito contra os invasores. Além do monitoramento em si, realizado por técnicos e cientistas nas unidades de proteção ao Cerrado, o passo seguinte passa pelo arranque ou pelo ato de capinar as áreas infestadas, quando ainda for factível. Em casos mais graves, pode-se optar pela aplicação de herbicidas e, a depender da espécie, o uso do fogo. O trabalho de disseminar a informação sobre os danos dessas plantas é tão difícil quanto fundamental.    

Os congressistas em Brasília também podem contribuir. Existem vários textos legais em tramitação nas duas casas legislativas para alimentar as garantias ambientais a favor do Cerrado. Um deles, que visa transformar o bioma em um dos patrimônios nacionais, é uma PEC, a 504/10, que está há mais de dez anos em tramitação. Está na pauta e espera-se que seja votada em breve.

O Cerrado, como a Caatinga, não entrou na lista de patrimônios nacionais feita pelos Deputados Constituintes em 1988. A PEC muda o status dos dois biomas. O texto exato da Carta Magna considera apenas a Floresta Amazônica, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira como patrimônios nacionais. Caso o status tanto do Cerrado quanto da Caatinga sejam alterados, será mais fácil ampliar as políticas públicas de proteção aos dois biomas, segundo os defensores da proposta. Enquanto o Cerrado ocupa praticamente um quarto do Brasil – além de ser uma espécie de caixa d’água do país, a Caatinga é o único bioma 100% brasileiro.

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