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    A Fazenda Santa Cecília ao lado do hotel Vista da Mata, também situado na área de conservação ambiental Foto: Acervo pessoal

questões ambientais

A herdeira no caminho do linhão de Belo Monte

Dona de uma fazenda centenária acusa a EDP, gigante do setor elétrico, de crimes ambientais. A empresa a acusa de colocar o Sudeste sob risco de blecaute

André Borges | 06 mar 2024_09h21
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Presente em doze estados, a EDP (Energias de Portugal) é uma das maiores empresas do setor elétrico no Brasil. Administra, entre outros projetos, uma linha de 750 km de cabos e 1.581 torres de transmissão que atravessa Minas Gerais e São Paulo, escoando para o sudeste a energia produzida pela usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. A linha, que começou a ser construída em 2017, vai de Ibiraci (MG) a Cachoeira Paulista (SP), percorrendo 29 municípios da Serra da Mantiqueira. No caminho, passa por um terreno antiquíssimo, lavrado ainda nos tempos do Império: a Fazenda Santa Cecília.

Seu dono original foi Francisco de Paula Vicente de Azevedo, banqueiro e comerciante que, em 1887, nos estertores do reinado de D. Pedro II, recebeu o título de Barão de Bocaina. Ele morreu em 1938 e, desde então, seus herdeiros cuidam da fazenda, situada dentro dos limites de Delfim Moreira (MG). Ali não há criação de gado ou cultivo. Há somente turismo, já que a propriedade está numa área de preservação ambiental, habitada por araucárias centenárias e outras espécies nativas da Mata Atlântica que correm risco de extinção.

Quando a EDP obteve a concessão do governo federal para tocar a obra, os herdeiros de Azevedo concordaram que vinte torres de transmissão fossem construídas na fazenda, seguindo o que estava previsto nas leis e no processo de licenciamento ambiental. Usou-se a estrada que já existia no local, e que ainda hoje é a única que dá acesso ao terreno. Por meio dela, técnicos da EDP conseguem chegar até as torres para fazer eventuais reparos.

Por cerca de cinco anos, o combinado funcionou sem maiores transtornos. Em meados de 2021, contudo, a administradora da fazenda – Lavinia Moraes de Almeida Nogueira Junqueira, trineta do Barão de Bocaina – começou a notar alguns problemas. Ela diz que funcionários da EDP desmataram trechos de floresta e usaram madeira nobre para fazer tábuas, que eram dispostas no chão para facilitar o tráfego na estrada. Inconformada, acionou o Ibama e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), acusando a EDP de avançar indevidamente sobre uma área de preservação ambiental. A denúncia resultou na abertura de processos administrativos, que tramitam até hoje nos dois órgãos. Mesmo depois disso, relata Junqueira, a empresa não mudou de comportamento.

Em novembro do ano passado, finalmente, o Ibama fez uma vistoria no local e disse que “foram constatadas inconformidades relacionadas ao licenciamento ambiental” da EDP. Os fiscais encontraram, por exemplo, entulhos largados no meio da estrada. O laudo final ainda não foi concluído. Caso as irregularidades sejam confirmadas, dando razão às denúncias feitas por Junqueira, a empresa corre risco de ser multada, além de ter que reparar danos.

A EDP não apenas nega, como rebate Junqueira com outras acusações. Diz que, na verdade, a fazendeira tem obstruído o acesso à estrada, colocando em risco o fornecimento de energia para milhões de brasileiros. A empresa não forneceu uma estimativa de quantas residências são atendidas pela linha de transmissão, atualmente. Quando as obras começaram, em 2017, dizia-se que a linha completa – da qual o trecho da EDP faz parte, e que começa em Belo Monte – beneficiaria 22 milhões de pessoas.

Em janeiro deste ano, a EDP enviou um comunicado à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) – autarquia responsável por gerir o setor elétrico no Brasil – relatando que alguns de seus técnicos haviam tentado chegar às torres de transmissão para fazer reparos urgentes, mas foram impedidos por uma porteira trancada com cadeado. “Essa conduta de obstrução foi e vem sendo adotada de maneira sistemática pela sra. Lavinia e seus prepostos”, alegou a EDP. A empresa afirmou, além disso, que a estrada situada na fazenda, muito íngreme, vinha se deteriorando devido a fortes chuvas. Por causa disso, e dos problemas com Junqueira, a EDP defendeu a criação de uma nova estrada no local.

Fazer obras em uma área de preservação não é um processo simples. No início deste ano, porém, a EDP subiu o tom: disse à Aneel ter constatado “riscos iminentes de queda das torres e colapso do sistema elétrico”. Se uma nova estrada não fosse aberta, alegou a empresa, havia possibilidade de um blecaute. Em dezembro, a Aneel deu razão à empresa.

 

As obras começaram em janeiro, apesar dos protestos da família e do relato feito pelos fiscais do Ibama. Segundo um laudo técnico contratado por Lavinia Junqueira, em um trajeto de apenas 1 km já foram derrubadas mais de trezentas árvores, entre elas araucárias, jequitibás, cedros, jacarandás e ipês-amarelos. A nova estrada foi aberta no lugar de uma antiga trilha que leva a cachoeiras e nascentes de rio, e que foi desativada em 2006 por questões de segurança, para evitar que houvesse entrada de pessoas sem autorização, como grileiros e caçadores. Três anos atrás, em 2021, essa trilha foi reflorestada. Agora, está sendo derrubada novamente.

A família de Junqueira tem laços antigos com a preservação ambiental no Brasil. O cunhado do Barão de Bocaina, Manuel Lopes de Oliveira Filho – mais conhecido como Manequinho Lopes –, foi um entomólogo e jornalista científico que fez fama no começo do século XX. Era um dos maiores especialistas em pragas agrícolas do país, ao mesmo tempo que militava pela preservação da natureza. Manequinho foi o responsável pela construção do mudário do Ibirapuera, que até hoje leva o seu nome. O projeto deu origem, anos mais tarde, ao Parque do Ibirapuera, uma das maiores áreas verdes da cidade de São Paulo.

Boa parte da Fazenda Santa Cecília está situada dentro da Zona de Conservação da Vida Silvestre (ZCVS) da Serra da Mantiqueira, área que está subordinada a regras rígidas de preservação ambiental. A fazenda, além disso, faz parte da Zona de Amortecimento da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica. Esse reconhecimento formal dá uma camada extra de proteção à flora e à fauna da região. Ao lado da fazenda fica o hotel Vista da Mata, que oferece opções de ecoturismo. Junqueira é sócia da empresa que administra o hotel.

“Temos uma história de preservação ambiental. Estamos numa área que é protegida pela nossa família, com raízes fincadas aqui há mais de 140 anos. Meu trisavô carregou essa história porque viveu nessa região, e hoje eu sigo nessa mesma luta”, diz Lavinia Junqueira. Sócia-fundadora do Junqueira Ie Advogados, uma firma especializada em direito tributário, ela tem 47 anos, mora em São Paulo e viaja regularmente para a fazenda herdada de seu trisavô. Não é a única proprietária do imóvel, mas, entre os familiares, foi quem assumiu a responsabilidade por ele. É também ela quem representa a família nas ações judiciais. 

No ano passado, depois de ter acionado o Ibama e o ICMBio, Junqueira abriu um processo cível na Justiça de Minas Gerais, exigindo da EDP reparação por danos ambientais. “Infelizmente, o que vemos hoje é a atuação de uma empresa global, multimilionária, que não quer gastar dinheiro com a manutenção de uma estrada que já existe e procura rotas novas que pareçam mais baratas”, ela argumenta. Junqueira nega ter bloqueado a estrada, e diz que a EDP só fez essa acusação para tentar se vingar das denúncias que sofreu.

“É inacreditável o que dizem, é tudo mentira. Eles têm a chave do cadeado da porteira. Nunca impedi o acesso de ninguém.” No relato feito à Aneel, a empresa portuguesa afirmou que, por causa da porteira fechada, teve de acionar um helicóptero para levar os técnicos até as torres de transmissão. “Para o Ibama, a EDP diz que tudo está funcionando sem problemas e que fizeram os serviços necessários. Para a Aneel, eles dizem que não podem fazer a manutenção porque não conseguem chegar às torres”, contesta Junqueira.

A piauí questionou a EDP, em 16 de fevereiro, a respeito das acusações feitas por Junqueira e do relato dos fiscais do Ibama. Foi dado um prazo de três dias para que a empresa respondesse. A assessoria de imprensa pediu mais tempo para elaborar as respostas. Desde então, a piauí voltou a fazer contato, mas não teve nenhum retorno.

 

Em dezembro, Junqueira enviou um ofício à Aneel contestando o pedido de abertura da nova estrada, feito pela EDP. Não adiantou. Em fevereiro, quando as obras já tinham começado, Junqueira pediu que elas fossem suspensas. “Não há embasamento legal ou razão de utilidade pública” que justifique a construção, ela afirmou. Também não adiantou. 

A EDP diz que a estrada antiga se tornou inviável devido às “condições do relevo extremamente acidentado, com rampas de cerca de 70°, solo desestruturado, e notadamente, as restrições ambientais” – entre elas, a determinação de que a estrada não pode ter largura superior a 4 metros. Segundo a empresa, essas condições “impediam a execução de obras”, como a construção de redes de drenagens, e “potencializavam quedas constantes de barreira e erosões do leito”, o que resultava em “elevado risco de segurança e trafegabilidade”. 

A Aneel, novamente, deu razão à empresa portuguesa. Em sua decisão, o diretor da agência, Hélvio Neves Guerra, ressaltou que é preciso aprofundar a avaliação do caso, diante das “alegações e argumentos contraditórios apresentados”. No mesmo documento, ele afirmou, porém, que até agora não foi possível “chegar a uma conclusão definitiva”. Procurado pela piauí, Guerra não quis comentar a decisão ou as acusações de Junqueira.

Para o professor Nivalde de Castro, coordenador-geral do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Aneel tomou a decisão correta, priorizando a segurança energética do país. “Entendo que a Aneel tem direito e dever de tomar essa decisão. É uma linha vital para o escoamento de Belo Monte e a quantidade de energia que passa por ali pode provocar um apagão com capacidade de afetar diversos estados, como já vimos no passado.” Em 2018, um problema no disjuntor da subestação de Xingu, no Pará, causou um blecaute que atingiu doze estados, quase todos no Norte e no Nordeste, deixando cerca de 70 milhões de pessoas no escuro por horas.

O jeito, pondera Castro, é indenizar Junqueira e seus familiares pela abertura da nova estrada. “Um novo acesso pode envolver indenização, algum tipo de reparação”, ele diz. “Acredito que os descendentes do Barão de Bocaina compreendem isso perfeitamente.”

O Ibama, por sua vez, afirmou à piauí que, diante das evidências colhidas em novembro, “foram adotadas diligências internas para apuração das irregularidades” ambientais cometidas pela EDP. Em nota, o instituto disse estar produzindo um documento técnico com “subsídios para eventual aplicação de sanções administrativas cabíveis pela Diretoria de Proteção Ambiental do Ibama e adoção de medidas corretivas no licenciamento”.

Na Fazenda Santa Cecília, as máquinas seguem avançando sobre a mata. Junqueira, que se emociona ao falar do assunto, diz que continuará recorrendo na Justiça e nos demais órgãos competentes para impedir o desmatamento. “Seguiremos protegendo a floresta, seguindo nossa tradição e exigindo a reparação integral”, ela diz. “Não vão me calar.”

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