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A imprensa precisa fazer autocrítica

Foram anos tratando o inaceitável como controverso ou mesmo engraçado

Fabiana Moraes | 14 out 2018_01h30
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Às vezes, estamos procurando um calmante, um Rivotril da vida, e acabamos tomando, sem querer, uma dose do jornalismo diário brasileiro. Se o primeiro tranquiliza e dá sono, o segundo causa algo desastroso para o cotidiano: confunde, desorienta. Principalmente quando não nomeia as coisas pelo que elas são. Um exemplo: quando chama crime de “polêmica”. Ameniza, doura a pílula, deixa soft. Lembro-me de quando a revista Placar lançou, em abril de 2014, uma capa com o ex-jogador Bruno na qual víamos seu rosto em quase pôster. Na foto, ele nos olhava diretamente, e a manchete dizia, em letras garrafais: “Me deixem jogar.” O título era seguido pela chamada “Goleiro fala da vida no cárcere, da morte de Eliza Samudio e do sonho de cumprir o contrato que assinou com um time mineiro.” Um desavisado poderia facilmente pensar, a partir daquela construção, que se tratava de alguém que sofria uma injustiça, que apenas queria voltar a exercer sua profissão. Que havia perdido um amor. Pobre Bruno.

A chamada suavizava a imagem de um homem preso após ser condenado a 22 anos de prisão pelo homicídio da mãe de seu próprio filho. Não bastasse, a Placar também resolveu escrever “a morte” de Eliza, e não “o assassinato”, como manda o jornalismo mais responsável. Se havia a tentativa de amenizar a imagem do moço – era (é) impossível não lembrar as circunstâncias horrendas do crime –, que se naturalizasse o machismo e a barbaridade, então. Escrevi sobre o tema em uma rede social, e a publicitária Rosiane Pacheco e a designer Cynthia MB criaram outra versão da capa, agora com Eliza. O caso repercutiu e fui procurada pelo autor da reportagem, Breiller Pires, que, de maneira cordial, argumentou que Bruno estava na capa por ser um personagem “polêmico”. Veja só: polêmico.

Esse véu discursivo que tudo nubla e pouco informa foi largamente utilizado pela imprensa brasileira, que durante anos insistiu em usar o mesmo termo – polêmico – para se referir ao comportamento tantas vezes inaceitável do candidato do PSL à Presidência da República. Em plena campanha, ele pregou o extermínio de adversários (“metralhar a petralhada”), algo que já havia feito antes quando falou sobre criminosos na favela da Rocinha. No domingo passado, após o resultado do primeiro turno das eleições, usou no discurso um ameaçador “vamos botar um ponto final em todos os ativismos do Brasil”. O que a imprensa fez? Como anteriormente, apenas reproduziu a fala – o que pode soar como um endosso – ou deixou as críticas para um ou outro colunista, sem se comprometer editorialmente. Um silêncio eloquente, acompanhado pelo do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal Superior Eleitoral e do Ministério Público.

As frases racistas, misóginas, homofóbicas e classistas do capitão da reserva foram muitas vezes colocadas pelo jornalismo brasileiro na conta do “folclórico” e do “controverso”. Inúmeras delas integram listas na web, com direito a “as dez mais polêmicas”. Tem aquela do preto que pesa sete arrobas e não serve nem para procriar, tem a “sou capitão do Exército e minha especialidade é matar”, tem várias outras que não preciso repetir aqui porque estão suficiente e toxicamente espraiadas pelas redes.

Quando a imprensa diminui o tom violento dessas falas e as classifica como “polêmicas”, “controversas”, “da zoeira”, termina vendendo como outra coisa as atitudes frequentemente criminosas de um homem público. O que é vendido só como “sem noção”, meio engraçado, vai se materializar, por exemplo, no joguinho de videogame lançado nesta semana, em que o candidato surge espancando mulheres, negros, ativistas, LGBTs. Ou no funk cantado em passeata na rica praia de Boa Viagem, em Recife, no qual ouvíamos mulheres serem chamadas de “cadelas”. O vídeo foi compartilhado pelo filho do candidato, eleito senador, que elogiou a letra. Mas, como no Brasil tudo pode piorar, os relatos de pessoas sendo xingadas e atacadas nas redes e nas ruas se multiplicaram e um artista, Moa do Katendê, foi assassinado com doze facadas por um eleitor do capitão ao declarar voto no PT.

Nesse panorama, surgiu outro “inimigo” a ser enfrentado: a própria imprensa. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, a Abraji, registrou que, desde o início de 2018, foram 138 ataques a jornalistas, todos realizados no contexto político-eleitoral. Um dos mais violentos se deu com uma colega da empresa na qual trabalhei durante vinte anos. No domingo passado, ela estava de crachá funcional e dois homens, um deles com a camiseta do candidato do PSL, outro vestido de verde e amarelo, a identificaram como repórter. Estavam com uma barra de ferro. Seu relato é tão chocante quanto o silêncio do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação a respeito da escalada de violência que atingiu seu próprio coração. O concorrente, Diário de Pernambuco, publicou um necessário editorial em prol da democracia, assim como a revista Época e o jornal El País Brasil.

Como instituição, a imprensa vem sendo atacada (à semelhança do que acontece nos Estados Unidos de Donald Trump), e sua legitimidade jogada na lata do lixo por milhões de pessoas que, na função repeat, preferem dizer que tudo o que ela publica é fake news, enquanto se informam por memes. Mas, também como instituição, a imprensa se apequena e se autoimplode quando não cumpre seu papel fundador: o do esclarecimento. E as coisas só podem estar claras quando tratadas pelos seus devidos nomes, sem um véu entre elas e a realidade. Sendo assim, é preciso dizer: não, o candidato do PSL à Presidência do Brasil não é “polêmico” nem “controverso”. Os adjetivos, sinônimos, referem-se a pessoas que não se fecham para o debate, a discussão, a crítica, a diferentes perspectivas. Que respeitam o ponto de vista próximo. Polêmica era a escritora Hilda Hilst, “indomesticável”, produtiva. Polêmicas eram as artistas Isadora Duncan e Josephine Baker.  Polêmica é a tenista Serena Williams e sua genial e simbólica saia de tule usada nas quadras após a Federação Francesa de Tênis proibir o uso do “macacão pantera negra”. Com suas falas, escritos, danças e manifestos, essas pessoas quebram o que parece estabilizado, reconduzem o olhar. Criam. Dizer que “vai metralhar” adversários é o oposto disso. É destruição.

Não, o candidato do PSL não é engraçado ou “meio Sérgio Mallandro”, como ouvi há alguns dias de colegas jornalistas. Ao contrário dos mitos, ele é real e seu discurso propaga a intolerância, reverberada por eleitores mais extremistas. Os últimos dias tornaram-se pesadelos para milhões de pessoas no Brasil, onde, entre 2016 e 2017, o número de mortes de LGBTs aumentou 30% e se deu em sua maioria, adivinhe, por arma de fogo. Nos banheiros e muros, proliferam mensagens de ódio decoradas com tristes suásticas tupiniquins. Um aluno gay, morador de Caruaru, agreste de Pernambuco, passeava na rua quando um homem, de moto, aproximou-se e gritou “o capitão vai acabar com essa raça”. Em Recife, um amigo, promotor de Justiça, estava em uma fila, ao lado de seu namorado, quando ouviu ameaça semelhante: “Isso já já vai acabar.” Outro amigo estava com os filhos e uma colega que usava uma camiseta #EleNão quando vários adolescentes – sim, adolescentes – quase os agrediram na rua.

Assim, a imprensa precisa perguntar para a maioria dos LGBTs, pretos e mulheres se eles e elas acham o candidato polêmico. Se o acham controverso. Engraçado. “Meio Sérgio Mallandro.” Para indígenas, quilombolas. Para as pessoas que trabalham com movimentos sociais. Para quem está deixando de usar uma camiseta vermelha ou um #EleNão com medo de ser espancado. O jornalismo que está agora atônito, dizendo que estamos vendo a ascensão de uma população violenta até então silenciosa, não percebe que um naco considerável dessa violência, a que deseja o extermínio do que é visto como diferente, sempre acompanhou milhões de brasileiras e brasileiros que vivem nas faixas mais pobres. Ela, agora, amplia-se e mostra-se à luz do dia, atingindo setores da classe média e da elite intelectual – com destaque para os jornalistas.

A imprensa deve se perguntar, ainda, se continuará atuando em uma espécie de looping perverso do jogo de esconde-esconde da história do Brasil. Os atos #EleNão do dia 29 de setembro tiveram atenção e cobertura muito menor que os atos de 2016 relacionados ao impeachment de Dilma Rousseff, apesar do caráter suprapartidário de ambos. O primeiro surgiu para nomear aquilo que o jornalismo brasileiro não nomeou: o perigo do discurso de ódio representado pela candidatura do capitão da reserva. A Globo, maior rede de televisão do Brasil, merece atenção especial: periga daqui a algumas décadas vir a público dizer que errou, como admitiu ao falar da histórica edição do Jornal Nacional na qual um comício da campanha Diretas Já, em 1984, foi noticiado como evento relativo ao aniversário de São Paulo. A empresa também já admitiu ter errado ao apoiar o golpe militar. Mas, diferentemente de dezenas de revistas e jornais ao redor do mundo que usam as palavras certas para falar do candidato do PSL à Presidência (extrema-direita, ameaça, perigo, autoritarismo), está silenciosa sobre o Brasil de agora. E o silêncio… Bem, você sabe.

Essa imprensa precisa fazer sua autocrítica.

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