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Incerteza radical

Eleitorado disperso e polarizado pode transformar indefinição em ameaça à democracia

Sergio Fausto | 21 ago 2018_07h30
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Nunca antes na história deste país, desde que a democracia foi restabelecida em 1985, existiu tamanha incerteza eleitoral a dois meses do pleito para a Presidência da República. Nem mesmo em 1989. Naquela primeira disputa depois da ditadura, Fernando Collor a essa altura já havia consolidado a liderança nas pesquisas, restando dúvida apenas sobre quem seria o seu adversário (acabou por ser Lula, com um fiapo de votos a mais que Brizola). Nas eleições seguintes, a dúvida se restringiu a se o candidato do PSDB ou do PT venceria em primeiro ou segundo turno. No pleito de 2014, após a morte de Eduardo Campos, no início de agosto, Marina Silva criou incerteza sobre a dupla de adversários no segundo turno, sendo ultrapassada só nos últimos dias por Aécio. Ninguém duvidava, porém, que a candidata do PT tinha lugar garantido no tira-teima final.

Em 2018, vivemos uma incerteza muito mais radical. Faltam menos de dois meses para o primeiro turno e nenhum dos candidatos principais desponta como claro favorito. Com Lula virtualmente inabilitado pela Lei da Ficha Limpa, há grande dispersão entre as intenções de voto. Como se fosse pouco, pesquisas sobre intenções espontâneas de voto indicam que cerca de 60% do eleitorado ou se declaram indecisos ou dispostos a votar em branco ou anular seu voto. Conhece-se o perfil desses 60% (mais mulheres que homens, mais nordestinos que habitantes de outras regiões, com renda e instrução menor do que a média). É difícil prognosticar, no entanto, para onde se deslocará essa massa de eleitores, se para as urnas ou para a abstenção (que poderá superar os 19% do primeiro turno das eleições de 2014). E, no primeiro caso, na direção de quais candidaturas.

Em meio ao nevoeiro, ainda é possível divisar dois grandes campos políticos, resquícios da longa polarização entre PT e PSDB. Mas se os dois grandes campos não desapareceram, o número de jogadores aumentou e as condições do gramado se alteraram drasticamente.

No campo da centro-direita, é inédita a presença de um candidato competitivo à direita do PSDB, o que não acontecia desde que Maluf saiu da cena nacional. E não se trata de um candidato convencional. A disputa nesse campo coloca frente a frente não apenas dois candidatos de perfis radicalmente distintos, mas também dois modelos de construção de candidaturas opostos: de um lado, Geraldo Alckmin, apoiado por uma ampla coalização de partidos e apostando na força do tempo de tevê; de outro, Jair Bolsonaro, jogando todas as suas fichas nas mídias sociais e na imagem do candidato antissistema.

Quadro semelhante se reproduz na centro-esquerda, com uma radical diferença chamada Lula. Favorito nas pesquisas, ele não participará da disputa. Além disso, há um pequeno detalhe: se encontra preso, impossibilitado de se engajar de corpo presente na campanha e restringido pela Justiça na sua comunicação digital com o eleitorado. Nada obstante, seu partido e as forças políticas que o apoiam pretendem mantê-lo como candidato fictício até os 44 minutos do segundo tempo para só então apresentar ao eleitorado o verdadeiro candidato. Partem da premissa de que Lula será capaz de produzir uma maciça transferência de seus votos para o ex-prefeito Fernando Haddad em vinte dias de campanha aproximadamente. Não me recordo de nada igual em qualquer outra parte do planeta, em tempo algum. Nem mesmo a eleição de Héctor Cámpora, fantoche de Perón, nas eleições presidenciais argentinas, em 1973.

Tanto no campo da centro-direita como da centro-esquerda, estamos prestes a assistir a experimentos políticos sem precedentes.



Não invejo a condição de quem, por dever de ofício, tem de arriscar previsões eleitorais neste ano. Não arriscarei eu mesmo a fazê-lo. Prefiro chamar a atenção para o risco de a radical incerteza eleitoral se transformar em não menos aguda incerteza quanto à governabilidade do país no próximo mandato presidencial. Estou convencido de que na hipótese de um confronto entre Fernando Haddad e Jair Bolsonaro no segundo turno, esse risco é real.

Em que pese ser político aberto ao diálogo e à reflexão, Haddad encabeça um bloco político e social que apostou na polarização e no confronto institucional para impulsionar as chances de vitória do Lula-lá, desta vez como peça de ficção. O programa apresentado pela coligação liderada pelo PT serve para o partido manter sua hegemonia no campo da esquerda, mas inviabiliza a governança do país no próximo mandato presidencial. Ao tudo-vivi-e-nada-aprendi no que diz respeito ao “modelo de desenvolvimento”, um remake do governo Dilma, somam-se propostas de “democratização” da mídia e do Estado que levantam o espectro da “venezualização” do Brasil.

Lula foi capaz de fazer seu partido rasgar o programa aprovado ao final de 2001 (“A Ruptura Necessária” se chamava), aliar-se com partidos fora do campo da esquerda, aceitar a “Carta aos Brasileiros” e a súbita conversão à ortodoxia macroeconômica, ao mesmo tempo que deu satisfação simbólica aos impulsos mais radicais de sua base social e política. Contou para tanto com o seu inigualável talento político e com recursos abundantes. O que sobrava a Lula falta a Haddad.

O ex-prefeito não dispõe de liderança própria e a situação fiscal do país é de penúria. Não poderá nem saberá agradar a gregos e troianos. Se eleito presidente, Haddad logo se verá espremido entre as pressões de seus partidários, que querem Lula solto e a “radicalização da democracia social e política”, se necessário pelo confronto com o Judiciário e a “mídia golpista”, e as contrapressões do chamado “mercado” e das ditas “elites”, num país profundamente dividido (em tempo: elites que representam aproximadamente metade do país não são elites, por definição).

Com Bolsonaro, não é menor o risco de o vencedor não convencer os que perderam de que o Brasil continua ser a um país de todos. No caso do ex-capitão com o agravante de que ele tem indisfarçáveis tendências autoritárias, nenhuma experiência administrativa e pouco traquejo negociador, a despeito de ser parlamentar há mais de vinte anos. Se Haddad levantaria o espectro da “venezualização”, Bolsonaro acionaria os alarmes de uma regressão autoritária à direita. Parte significativa de seus apoiadores interpretaria sua vitória como sinal verde para ligar motosserras, armar-se, pôr fim ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, restringir direitos reprodutivos das mulheres, em ampla, geral e irrestrita ofensiva contra a proteção ao meio ambiente e aos direitos humanos. O ex-capitão não dispõe das qualidades nem da vontade para desativar a polarização que sua vitória exacerbaria.

O problema de Haddad seria outro: as circunstâncias da sua eleição e as forças que o apoiam o impediriam de desarmar a polarização. Para tanto, politicamente, o ex-prefeito teria de cometer um estelionato eleitoral, lançando a lata de lixo da história parte do programa que apresentou. Psicanaliticamente, teria de matar o pai. Ou seja, libertar-se de Lula. Ambas as coisas me parecem além das suas possibilidades.

Se eu estiver certo, o país tem pouco menos de dois meses para decidir se irá ou não transformar a incerteza eleitoral, saudável para democracia, em risco para a governabilidade e, quem sabe, para a própria democracia.

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