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    Ilustração: Yacunã Tuxá

questões indígenas

“Ele vai me matar, ele vai me matar”

A história de um crime brutal que tirou a vida de uma adolescente karipuna de 15 anos, no Oiapoque

Leandra Souza | 02 out 2023_09h27
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Maria Clara Batista Vieira acordou numa quarta-feira e foi à padaria comprar pão. Era uma atividade rotineira para a jovem indígena Karipuna, de 15 anos, moradora de Oiapoque (AP), município com menos de 30 mil habitantes no extremo Norte do Brasil. Ela saiu de sua casa por volta das sete da manhã. Morava com o pai e a madrasta numa casa simples na Aldeia do Manga, às margens do Rio Curupi. Não se sabe se no trajeto de ida ou de volta, foi agarrada por um homem quando passava pela BR-156, rodovia que cruza a cidade. Voltou para casa vinte minutos depois de ter saído. Mal conseguia falar. Tinha marcas de agressão pelo corpo e estava suja de lama da cabeça aos pés. Contou para a madrasta que tinha sido estuprada.

A madrasta levou Maria Clara para o hospital e acionou a mãe da menina, Clarinda Batista, que correu até a delegacia da cidade para registrar o crime. Segundo o boletim de ocorrência, registrado às nove da manhã, ela relatou que “a adolescente retornou [para casa] quase se arrastando, extremamente machucada, falando com dificuldade que havia sido abordada por um homem na ponte para pegar informações. Que foi violentada sexualmente e estava bastante machucada […]. Que o Autor chegou a enterrar a vítima no lamaçal, acreditando que ela estaria morta. Que a vítima conseguiu se arrastar e chegar até sua residência.”

O crime ocorreu há duas semanas, em 13 de setembro. O delegado Charles Corrêa relatou que foi difícil estabelecer comunicação com Maria Clara. Ela vomitava lama e não estava plenamente consciente. Ele desistiu do primeiro interrogatório e foi atrás das imagens de câmeras de segurança que ficavam próximas ao local do crime. Não teve dificuldade em obtê-las, e, naquele mesmo dia, à tarde, tinha em mãos o nome e a foto do suspeito.

As imagens, obtidas de diferentes ângulos, mostram o momento em que Maria Clara escapa do pântano onde havia sido sufocada. Ela anda a passos trôpegos por uma rua de terra batida, onde há algumas casas simples, de tijolo aparente. Não parecia haver ninguém ali perto que pudesse socorrê-la. Outra câmera registrou o momento em que Claúdio Roberto da Silva Ferreira, apontado pela polícia como autor do crime, lava pés e mãos numa torneira de rua.

O delegado, ao assistir às gravações, retornou ao hospital onde Maria Clara estava internada, levando dessa vez uma imagem do suspeito para que ela o identificasse. “Quando mostrei a foto, ela confirmou que era ele. Ao mesmo tempo se apavorou e disse: ‘Ele vai me matar, ele vai me matar.’ Ou seja, a vítima estava num estado de choque tremendo”, relembra Corrêa.

Às 13h40, a Polícia Militar prendeu Ferreira a bordo de um barco, enquanto ele tentava fugir em direção ao Pará. O suspeito, que ganhava a vida como pescador, resistiu à abordagem dos policiais. Foi levado à força para a delegacia e, mais tarde, transferido para um presídio em Macapá, onde permanece até hoje, acusado pelos crimes de estupro e tentativa de homicídio. Segundo a Polícia Civil, Ferreira tinha antecedentes. Chegou a ser preso no ano passado por tentativa de estupro contra uma adolescente não indígena. Dessa vez, depois de ser detido, ele negou à polícia ter estuprado Maria Clara. Disse que a agarrou para roubar seu celular.

Maria Clara tecia roupas e as vendia para ajudar a família. “O maior sonho da minha filha era ser alguém na vida. Ela dizia pra mim: ‘Eu quero terminar meus estudos pra ser alguma coisa na vida, ser uma pessoa importante e reconhecida no mundo todo’”, relembra o pai, Neo Vieira, com a voz embargada de choro.

 

Em março deste ano, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) publicou o Relatório de Violência Contra Povos Indígenas. A entidade, vinculada à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), registrou vinte casos de violência sexual contra indígenas em 2022. O número restrito diante da população de 1,7 milhão de indígenas no país indica ampla subnotificação, por uma série de fatores – entre eles, o fato de muitas etnias viverem em áreas onde não há presença do Estado e, portanto, sem acesso a delegacias.

Ainda assim, esse foi o maior número de casos já registrado pelo relatório, feito anualmente desde 2008. O auge, até então, tinha ocorrido em 2014, quando foram listados dezoito casos de violência sexual contra indígenas. Entre 2017 e 2021, a média vinha sendo de doze casos por ano.

O estupro de indígenas é um crime cometido há séculos no Brasil. Tende a se tornar mais frequente à medida que grupos econômicos, como garimpeiros e grileiros, avançam sobre a Amazônia. Um estudo preliminar publicado pelo Ipea este ano aponta que, no Amapá, a ocorrência de crimes de gênero e contra indígenas está diretamente ligada à dinâmica do garimpo. Numa região onde há pouca oferta de emprego, os jovens, tanto homens quanto mulheres, são atraídos pelo trabalho nos acampamentos ilegais de garimpeiros. Muitas mulheres acabam sendo abusadas ou levadas a se prostituir para ter o mínimo de renda.

Mas os crimes não ficam restritos aos acampamentos. O que o estudo do Ipea mostra é que a presença de garimpos ilegais tende a aumentar os índices de violência por toda a região, tornando mais provável a ocorrência de crimes como o cometido contra Maria Clara. O pescador acusado de tê-la estuprado não tem, até onde se sabe, relação com o garimpo. Segundo os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Amapá registrou 21,1 estupros por 100 mil habitantes em 2022, uma das maiores taxas do país, atrás apenas de Acre e Roraima. Quando se considera estupros de vulneráveis, o Amapá também tem a terceira maior taxa: 64,5 casos por 100 mil habitantes. A média nacional é 28 por 100 mil.

“É um número que assusta, principalmente porque a maioria das vítimas são crianças e adolescentes abusadas sexualmente”, lamenta Nice Tupinambá, fundadora do Instituto Nossa Voz, ONG que atua em causas ligadas ao meio ambiente e à questão indígena. Ela argumenta que a subnotificação de crimes como esses não se deve apenas à dificuldade de se chegar a uma delegacia: também se dá porque os indígenas temem sofrer retaliações caso denunciem seus algozes à polícia. “Muitos órgãos não têm interesse em registrar ou perguntar se o crime se trata de uma questão indígena”, diz Nice. “Além disso, falta confiança na própria polícia, que às vezes é responsável por fazer guarda armada para invasores e fazendeiros.”

O município de Oiapoque abriga três terras indígenas contíguas, demarcadas e homologadas em 2002. São elas: Galibi, Uaçá e Juminá. Estima-se que vivem ali 8 mil indígenas de quatro etnias: Karipuna, Galibi Marworno, Palikur e Galibi Kali’nã. É uma região que faz fronteira com a Guiana Francesa e que historicamente atrai garimpeiros em busca de ouro. Uma investigação da Polícia Federal apontou, em 2021, que esse grupos vinham lucrando com o uso de mão de obra indígena. Em novembro do ano passado, o Exército brasileiro fez uma operação em Oiapoque e detonou túneis de extração ilegal de ouro. Ninguém foi preso.

No último dia 18 de setembro, indígenas karipuna, mesma etnia de Maria Clara, fizeram um protesto pelas ruas de Oiapoque. Caminharam carregando faixas com dizeres como “Vidas indígenas importam! Justiça por Maria Clara”. A Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Amapá e Norte do Pará (Apoainp), uma das entidades que organizaram a manifestação, publicou uma nota afirmando que “cobrará da Justiça e dos órgãos competentes as ações necessárias para que o culpado seja devidamente punido”. A Funai afirmou que o crime “bárbaro” cometido contra a jovem indígena não ficará impune. “A violência que Maria Clara sofreu não é apenas uma tragédia individual, mas também uma triste realidade enfrentada por muitas mulheres indígenas em nosso país”, diz a nota.

 

Oiapoque fica a sete horas de carro de Macapá, capital do estado. É mais fácil, portanto, chegar a Caiena, capital da Guiana Francesa, que fica a menos de três horas de distância. Por se tratar de um local remoto, afastado dos principais centros urbanos, Oiapoque sofre com uma dificuldade crônica em oferecer bons serviços de policiamento, educação e saúde. 

O pai de Maria Clara diz que o hospital estadual onde a filha foi atendida não estava equipado para lidar com um caso tão grave. Dois dias depois de ser internada, em 13 de setembro, a jovem de 15 anos foi transferida para Caiena, onde pôde ser levada para a UTI de um hospital de grande porte. Segundo os médicos brasileiros, Maria Clara estava com um quadro sério de infecção pulmonar. Os pais acompanharam a filha o tempo todo. Estavam com ela no momento em que ela morreu, em Caiena, no domingo, 17 de setembro.

Neo Vieira conta, emocionado: “O médico falou na minha cara: ‘Paizinho, se a sua filha tivesse vindo no mesmo dia talvez ela não tivesse morrido. Infelizmente você chegou tarde’.”

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