Enquanto a indústria nacional amargou uma queda de 18,8% na produção em abril, a fábrica de medicamentos Vitamedic, de Anápolis (no estado de Goiás, a 60 km da capital), trabalhou 24 horas por dia para dar conta das encomendas de seu produto mais popular: a ivermectina, usado tradicionalmente contra vermes, sarna e piolho. A fábrica responde pela produção de mais de 80% do remédio no Brasil. E, nessa fábrica, produzir 24 horas por dia não é força de expressão: ela contratou mais empregados, comprou equipamentos e instituiu o terceiro turno de oito horas. Mesmo assim, não consegue suprir a demanda desde que o remédio começou a ser associado ao tratamento da Covid-19. Tem encomendas para os próximos dois meses, mantido o ritmo atual de produção, sem parar.
Não há comprovação científica da eficácia da ivermectina sobre o Sars-Cov-2, causador da Covid-19. Mesmo assim, o remédio vem sendo cada vez mais adotado com este propósito por estados e prefeituras, sobretudo no Norte e Nordeste do país. Secretários municipais de Saúde contam que foram estimulados por depoimentos de médicos na internet e pelas redes de WhatsApp, os quais sustentam que, se for ministrada na fase inicial da doença, a ivermectina pode conter a expansão do vírus no organismo, e com isto evitar a piora dos pacientes e reduzir as internações e óbitos. A Fiocruz e a Sociedade Brasileira de Infectologia contestam a versão e dizem que, até o momento, só há testes da ação da ivermectina sobre o coronavírus em laboratório. O Ministério da Saúde e a Anvisa não a reconhecem como medicamento contra a Covid. Já o presidente Jair Bolsonaro, depois de defender a hidroxicloroquina (também sem eficácia comprovada), se referiu à “ivermeticina” na última quinta-feira (11) como um medicamento que dá resultado até melhor: “Eu acho que o resultado é até melhor que a cloroquina, porque mata os vermes todos”, afirmou em sua live semanal. Bolsonaro errou o nome do remédio e seus efeitos.
Não se sabe a extensão da “onda” ivermectina durante a pandemia, mas os dados do Sindusfarma (Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos) não deixam dúvidas de que o consumo explodiu. Em abril foram produzidas 2,04 milhões de caixas do remédio, mais que o dobro da produção do mês anterior (820,5 mil) e quase o triplo da produção de abril do ano passado (689,3 mil). Com a oferta escassa, as prefeituras não conseguem adquirir o produto dos distribuidores e encomendam a produção em farmácias locais de manipulação. Ou seja, o consumo real pode ser muito maior do que o apontado pelo Sindusfarma. A automedicação também disparou, tanto na periferia quanto na classe média das cidades.
Segundo especialistas da indústria farmacêutica, a ivermectina não é um produto com grandes oscilações de demanda. Os picos costumam se dar no início das aulas escolares, quando as crianças voltam das férias e algumas retornam com piolhos, espalhando-os entre os colegas. Trata-se de um produto muito conhecido das mães e, por isso mesmo, tido como praticamente inofensivo à saúde. Essa fama amigável é um dos fatores que ajudaram a explosão de consumo, dentro da lógica de que, se não fizer bem, mal não fará.
“Se ele não matar o vírus da Covid, pelo menos vai livrar minha gente dos vermes, da sarna e dos piolhos”, pensou Maria Alice Leal, secretária de Saúde do município de Marapanim, a 122 km de Belém. É uma cidade praiana, de 28 mil habitantes, banhada tanto pelo mar quanto pelo Rio Marapanim. Até o dia 10 de junho, haviam sido registrados 197 casos confirmados e onze óbitos por Covid. O município tem 56 pequenas comunidades rurais interligadas por estradas de terra, e a verminose e a sarna são corriqueiras ali. A secretária diz que a prefeitura reduziu a incidência de casos (de 60 para cerca de 20 por dia) com o trabalho preventivo e com a distribuição do kit-Covid – azitromicina, ivermectina, paracetamol e ácido acetilsalicílico – a todos os pacientes com suspeita de contaminação, que são medicados em domicílio. Ela própria diz que visitou mais de cem casas.
Maria Alice chegou à ivermectina da mesma forma que a maioria dos secretários de saúde do Norte e do Nordeste que também compraram o remédio: pelas redes sociais e pela internet, onde pôde conhecer os protocolos adotados por outras cidades e por hospitais públicos e privados, alguns da rede Unimed, que além da ivermectina também recomendam o uso da cloroquina. A secretária disse que não teve coragem de incluir a cloroquina no kit básico da prefeitura, por causa dos relatos de alteração cardíaca. Marapanim não tem hospital com UTI e os doentes mais graves são levados para Castanhal, Capanema ou Belém.
A piauí constatou que a ivermectina faz parte do kit-Covid em praticamente todo o território do Pará, bem como em Rondônia, Amapá e Maranhão. O kit é distribuído aos pacientes detectados com o vírus, mesmo os assintomáticos, depois de passarem pelo médico. Paragominas, Curuçá e Bragança (todas no Pará) adquiriram um total de 62 mil comprimidos em maio. Os medicamentos que compõem o kit variam de uma cidade para outra e podem incluir xarope para tosse, vitamina D, zinco, hidroxicloroquina, remédio para febre e para dor. No Amapá, equipes volantes levam a medicação a comunidades ribeirinhas e quilombolas. Na capital, Macapá, duas vans foram transformadas em farmácia móvel para distribuição do kit aos pacientes depois da consulta médica.
No município de Castanhal (de 200 mil habitantes, a 75 km de Belém), o kit inclui o anti-inflamatório prednisona, além da ivermectina, azitromicina e do paracetamol. A enfermeira Cris Yokote, assessora da Secretaria Municipal de Saúde, conta que o primeiro caso de Covid foi anunciado em 26 de março. A propagação foi rápida, e o sistema de saúde entrou em colapso no início de maio. Um plano de emergência foi adotado, com abertura de novos leitos, e logo em seguida foi decretado lockdown por duas semanas. Entre as medidas, está a prescrição da ivermectina para os pacientes com sintomas leves. A prefeitura considera que o pico da doença passou, mas deixou um rastro de 113 mortos (entre eles, dois médicos) até o final de maio.
Yokote avalia que a medicação dos pacientes no início da doença é fundamental para conter a multiplicação do vírus. Perguntada sobre o que a levou a incluir um vermífugo no kit de medicamentos, respondeu que uma equipe de médicos e farmacêuticos do município fez a escolha baseada em experiências relatadas por médicos de outros estados.
Quase 2 mil km, em linha reta, separam Castanhal (PA) de Ouro Preto do Oeste, em Rondônia (36 mil habitantes), onde a ivermectina também foi adotada. A prefeitura não conseguiu comprar o produto industrializado e fez uma licitação entre farmácias de manipulação, mas, segundo o secretário de Saúde, Cristiano Ramos, o remédio manipulado também encareceu à medida que outras prefeituras aderiram ao tratamento. O preço do comprimido subiu de 1,90 reais para 6 reais em duas semanas.
A prefeitura de Ouro Preto do Oeste testou 500 moradores em uma semana entre o final de maio e o começo de junho. Mais de 70 deram positivo e receberam o kit-Covid. O prefeito Vagno Gonçalves (PSDC) não gostou do resultado e postou um vídeo na internet questionando os testes (fornecidos pelo governo federal) que lhe obrigaram a mandar funcionários públicos sem sintomas da doença para casa. “A testagem em massa pode trazer vantagens, mas também traz problemas”, afirmou.
Gonçalves, de 41 anos, é comerciante dono de padarias e está no primeiro mandato político. À piauí, disse que não é “partidário nem politizado”, mas que torce por quem está no comando – no caso, Bolsonaro –, e lamentou a falta de sintonia entre o presidente, os governadores e prefeitos no enfrentamento à pandemia. Perguntado sobre se acredita no poder da ivermectina contra o coronavírus, respondeu: “Acreditar, a gente não acredita. Mas por que não tentar? Não fui pela minha ideia, mas pela ideia dos médicos.”
Muitas prefeituras do Norte e Nordeste têm prefeitos médicos, os quais também influenciam na decisão pela ivermectina. É o caso de Hilton Gonçalo, prefeito de Santa Rita, no Maranhão, cuja mulher, Fernanda Gonçalo, é prefeita da cidade vizinha, Bacabeira. As duas prefeituras compraram ivermectina em farmácias de manipulação de São Luís, porque o produto industrializado está em falta na região.
Segundo o secretário de Saúde de Santa Rita, Crezus Ralph, o prefeito criou um comitê de médicos, farmacêuticos e infectologistas que escolheu os medicamentos baseado nos protocolos dos dois maiores hospitais privados de São Luís. A cloroquina foi excluída por causa dos efeitos colaterais. O kit vem com cinco comprimidos de azitromicina e dois de ivermectina que, segundo o secretário, “tiram a gordura do vírus “ e contêm sua reprodução. Até o dia 11 de junho, a cidade (de 38 mil habitantes) registrava 161 casos confirmados e sete óbitos, pelo boletim estadual.
Dois médicos de São Paulo tiveram forte influência na disseminação do uso da ivermectina no tratamento da Covid-19, em razão de vídeos e palestras postadas no YouTube: o pediatra e toxicologista Anthony Wong, chefe do Centro de Assistência Toxicológica do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas de SP, e a médica Lucy Kerr. Segundo Wong, a eficácia da ivermectina sobre o coronavírus foi constatada em laboratório na Austrália, com eliminação das células virais em 48 horas. Para ele, a ivermectina é uma “arma, barata, eficaz e extremamente segura” contra a pandemia, que deve ser usada pelos médicos, com a hidroxicloroquina e azitromicina . “Com isso, vamos esvaziar as UTIs e o velhinho com comorbidades não vai morrer, ou terá chance muito maior de sobrevida”, diz ele, em um de seus vídeos na internet.
Lucy Kerr tem um canal na internet onde propaga os supostos efeitos benéficos do medicamento. No dia 20 de maio, ela postou um vídeo em que aplaude a pesquisa australiana e diz ter curado 23 pacientes com o medicamento. Afirma também que compartilhou a informação com 550 médicos de seu grupo de WhatsApp, que teriam adotado o tratamento com igual sucesso. O vídeo teve quase 400 mil visualizações em uma semana e foi excluído pelo YouTube. Checado pelo projeto Comprova, foi qualificado como enganoso. Outro vídeo com o mesmo teor está disponível no canal de Kerr e já conta com 181 mil visualizações.
O uso da ivermectina ganhou nova escala no Rio Grande do Norte, depois que o Conselho Regional de Medicina recomendou sua prescrição contra a Covid-19. “A alternativa de não intervenção terapêutica, deixando a doença seguir seu curso natural, tem colapsado o sistema de saúde de vários países”, diz o protocolo aprovado em 18 de maio, que sugere as doses e as combinações do remédio para os diferentes estágios da doença.
A Prefeitura de Natal deu um passo além e decidiu usar o medicamento como preventivo por profissionais de saúde que ainda não foram contaminados. Posteriormente, estendeu a medida a todas as pessoas do grupo de risco: mais de 60 anos e demais faixas etárias com comorbidades, como obesos, diabéticos e hipertensos. Foi a primeira prefeitura, até o momento, a usar a ivermectina como profilático. Por trás dessa decisão está o infectologista Fernando Suassuna, que assumiu a Presidência do Comitê Municipal de Enfrentamento da Covid de Natal. Ele é o mais explícito defensor dos supostos benefícios da ivermectina e recentemente anunciou ter obtido a comprovação prática de tais efeitos.
Segundo Suassuna, o fato teria sido comprovado no asilo Lar Jesus Misericordioso, de Natal, onde 27 internos, com idades entre 70 e 82 anos, tinham tomado ivermectina para tratar escabiose (sarna). No dia 18 de maio, foram constatados os sinais da Covid em cinco deles, mas o restante não foi contaminado ou teve apenas sintomas leves. O infectologista atribuiu a baixa contaminação à ingestão da ivermectina.
A consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia Raquel Stucchi encara tais notícias com ceticismo: “Tudo que parece milagre se espalha muito rápido na internet. Na verdade, não existe nenhuma comprovação. Há resultados positivos em experiências em laboratório, mas nenhum caso cientificamente comprovado em humanos.” Ela lembra que 80% das pessoas infectadas com o novo coronavírus evoluem muito bem com água e repouso em casa. “Talvez elas também evoluíssem bem se tomassem guaraná ou coca-cola.”
O vice-diretor de Serviços Clínicos do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (órgão da Fundação Oswaldo Cruz), Estevão Portela Nunes, diz que a ivermectina funcionou bem em testes “in vitro” contra uma série de vírus, como os da dengue e da influenza, o que não significa que dê resultado em humanos. “Até este momento, não temos clareza de seus efeitos. É preciso ser testado com estudos clínicos, em ambientes controláveis. Sem isso, a ciência não avança.”
Portela está diretamente envolvido com as pesquisas de medicamentos contra o novo coronavírus. Ele é o pesquisador principal do ensaio clínico Solidarity, da Organização Mundial da Saúde, que envolve 18 hospitais de 12 estados. Segundo ele, a ivermectina não está incluída nessa pesquisa, exatamente por não haver estudo científico de sua eficácia contra o vírus da Covid. “A ivermectina pode até ser uma esperança, mas é não uma estratégia de enfrentamento da Covid”, diz ele
Independentemente da falta de comprovação científica da eficácia contra a Covid-19, o uso da ivermectina começa a produzir resultados políticos para os dirigentes municipais que apostaram suas fichas nela. Uma evidência (não científica) disso pode ser constatada na cidade de Tucumã, no Sul do estado do Pará, na região de São Félix do Xingu, a 1 mil km de Belém. O ex-secretário de Saúde, Raphael Antônio, deixou o cargo em 4 de junho para concorrer a prefeito pelo MDB na próxima eleição, com apoio do atual do prefeito, Adelar Pelegrini, do mesmo partido. Raphael da Saúde, como ficou conhecido na cidade, diz que a prefeitura transformou as instalações de uma escola em centro de atendimento ambulatorial às pessoas com suspeita de Covid, onde elas são testadas e recebem os medicamentos, sem esperar o resultado do teste. Com 39 mil habitantes, Tucumã registrava seis óbitos pela Covid até o dia 10 de junho. Em entrevista por telefone à piauí, o ex-secretário reconheceu que ter estado à frente da secretaria no auge da pandemia lhe deu notoriedade e aumentou seu cacife político. “Apareci na mídia mais do que o prefeito”, afirmou.