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    Ilustração: CRIS VECTOR_2023

imprensa & justiça

Juiz censura trecho de reportagem da piauí

Na prática, a decisão implica o recolhimento da revista nas bancas

| 14 jul 2023_13h11
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No dia 20 de junho, Hilmar Castelo Branco Raposo Filho, juiz da 21ª Vara Cível do Distrito Federal, deu uma liminar determinando a remoção de um trecho da reportagem O cupinzeiro, do repórter Breno Pires, publicada na edição 201 da piauí de junho deste ano.  A reportagem mostra como o governo Bolsonaro desidratou o programa Mais Médicos e colocou no lugar uma agência que se transformou num ninho de falcatruas, com casos de nepotismo, irregularidades administrativas, denúncias de assédio moral e mau uso de verba pública.

Em um parágrafo, o texto da reportagem faz referência à denúncia de 95 páginas, entregue ao Ministério da Saúde, na qual se apontava que, entre os contratados para a nova agência, havia uma lista de amigos de ex e atuais dirigentes do órgão, inclusive casais, com o marido e a mulher assumindo bons cargos. A reportagem dava três exemplos. Em uma única frase, mencionava, sem emitir juízo de valor, os nomes do casal L. W. (contratado para a gerência de formação, ensino e pesquisa) e de sua mulher D. O. M. (que assumiu como assessora da diretoria técnica). Era uma menção sumária ao caso dos dois, que, no relatório preliminar da investigação interna aberta para apurar as denúncias, ocupa cinco páginas.

Alegando que a matéria noticia “fato inverídico”, o casal recorreu à Justiça e pediu a remoção da reportagem do site da piauí e a retirada de circulação da edição impressa da revista. Também pedia que, dali em diante, a piauí fosse proibida de fazer menção aos seus nomes em futuras matérias sobre o caso.

O juiz Raposo Filho entendeu que o pedido de censura prévia era excessivo, mas ordenou que a piauí suprimisse a menção a L.W. e D.O.M.  tanto dos “textos publicados na rede mundial de computadores”, quanto dos “exemplares da revista piauí edição 201”. Como a edição já havia sido distribuída no início do mês de junho, e o juiz estava informado disso, a consequência inevitável de sua decisão era o recolhimento da edição das bancas – dado que seria impraticável contratar um exército de pessoas que, munidas de canetas, saíssem riscando os nomes do casal de cada um dos exemplares distribuídos a mais de 5 mil pontos de venda no país.

No dia 11 de julho, a piauí recorreu da decisão junto ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Numa peça de 22 páginas, sustenta que “o conteúdo da matéria é estritamente narrativo, baseado em documentos oficiais e fontes fidedignas” e mostra que a existência de indícios de irregularidades e troca de favores é tão incontroversa que a própria agência instaurou investigação interna sobre o assunto – e afastou toda a diretoria. Ao ressaltar que o assunto é de interesse público, a defesa diz que é “dever da imprensa noticiar fatos […] que envolvem suspeitas de contratação irregular de agentes públicos”

O recurso da revista ainda sustenta, com fundamento na decisão de 2014 tomada pela ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça, que o dever do jornalista é “buscar fontes fidedignas”, e o exercício de sua profissão não pode ser engessado pelo rigor dos procedimentos judiciais de investigação. Em outras palavras, o jornalismo não tem poder de polícia, não quebra sigilo bancário, fiscal, não faz escuta telefônica, não manda prender, nem promove operações de busca e apreensão. Segundo Andrighi, os instrumentos à disposição dos jornalistas são limitados aos de sua profissão, razão pela qual, por óbvio, uma reportagem jornalística não é um inquérito policial nem uma sentença judicial.

Por fim, a defesa da piauí faz referência à decisão de 2018 do ministro Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, na qual o magistrado diz que a corte proíbe “enfaticamente a censura de publicações jornalísticas, bem como tornou excepcional qualquer tipo de intervenção estatal na divulgação de notícias e de opiniões”. E acrescenta: “A liberdade de expressão desfruta de uma posição preferencial no Estado democrático brasileiro, por ser uma pré-condição para o exercício esclarecido dos demais direitos e liberdades. Eventual uso abusivo da liberdade de expressão deve ser reparado, preferencialmente, por meio de retificação, direito de resposta ou indenização.” E, referindo-se ao caso específico de que tratava na ocasião, Barroso concluiu: “Ao determinar a retirada de matéria jornalística de sítio eletrônico de meio de comunicação, a decisão reclamada violou essa orientação”.

Em outro julgamento, em que se discutiu a necessidade ou não de autorização prévia para a publicação de biografias, o ministro Barroso voltou ao assunto em uma intervenção oral dirigida ao presidente do STF. Disse: “Agora, gostaria de demonstrar, ainda que brevemente, presidente, por qual razão eu afirmo que a liberdade de expressão, na democracia brasileira, deve ser tratada como uma liberdade preferencial. E acho importante insistir nisso, porque o Supremo tem sido um guardião importante da liberdade de expressão, mas é inevitável reconhecer que, nas instâncias inferiores, há uma quantidade impressionante de precedentes negativos em relação à liberdade de expressão. Eles vão desde a proibição de divulgação de fatos e a suspensão da circulação de revistas, até a proibição de biografias.”

O desembargador Robson Teixeira de Freitas, do Tribunal de Justiça do DF, no entanto, concordou com a decisão do seu colega de primeira instância – e manteve a ordem de suprimir os nomes de L.W. e D.O.M. da reportagem, o que implica o recolhimento dos exemplares físicos da revista. Em sua decisão, de quatro páginas, o desembargador disse que a supressão dos nomes do casal “não implica prejuízo imediato e irreparável ao exercício da atividade jornalística” e considerou que, se a decisão de censurar a revista digital e recolher os exemplares das bancas vier a ser revertida mais adiante, a “medida [será] facilmente reversível”, inclusive na versão em papel. Em outras palavras, bastaria que a piauí fizesse uma “reedição impressa”, mandando imprimir novos exemplares da edição de junho e redistribuindo em mais de 5 mil pontos de venda no país.

 

Para  Gustavo Binenbojm, professor titular da Faculdade de Direito da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), o episódio parece um caso clássico de censura judicial e censura prévia. “A regra no Brasil é que prevalece como direito preferencial a liberdade de expressão e, nesse caso, liberdade de imprensa.” Segundo ele, ainda que o juiz não tenha acolhido integralmente o pedido da supressão integral da matéria, ao determinar a retirada dos nomes (sem fundamento relevante de que a matéria é claramente falsa, ou de que houve intenção de prejudicá-los a partir de argumentos falaciosos, ou de que houve erro flagrante de apuração), cria-se um problema. “E a solução minimalista é capciosa porque ela aparentemente preserva a notícia, mas não permite falar o nome. É como se pudesse falar apenas do milagre sem dizer o nome do santo. O próprio STF tem dito que o dever da imprensa é apurar os fatos tal como eles estão sendo retratados naquele momento.” E segue: “Imagina que, se for pra dar uma notícia qualquer a respeito de alguma investigação, você precisasse aguardar uma decisão do Judiciário transitada em julgado, a gente estaria aguardando até hoje para dar uma notícia sobre o ex-presidente Collor, que foi condenado pelo Supremo e transitou em julgado recentemente.” Para Binenbojm, a imprensa não pode ser obrigada a omitir nomes enquanto aguarda decisão final transitada em julgado. “Isso não faz o menor sentido. (…) Me parece que o caso é de censura prévia por meio do Poder Judiciário contrariando a Constituição e também os precedentes mais importantes do Supremo, como a ADPF 130 [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130, que derrubou a Lei de Imprensa da época da ditadura]. Não chega a ser um caso difícil, não, é um caso em que evidentemente há uma censura judicial.”

O presidente da ANJ (Associação Nacional de Jornais), Marcelo Rech, disse que a determinação judicial  é uma violação à Constituição e um exemplo de censura: “A decisão é, na prática, uma censura aos conteúdos jornalísticos e, por si, absurda, uma vez que a supressão de trechos de exemplares já distribuídos é impraticável, além de apenas chamar ainda mais atenção para o caso e os personagens envolvidos. É também uma violação clara dos preceitos da Constituição brasileira, que não admite censura à imprensa de nenhuma forma. A ANJ espera que a decisão seja revista e anulada o quanto antes, como forma de preservar os princípios mais básicos da Constituição e da liberdade de imprensa.”

Maia Fortes, diretora executiva da Ajor (Associação de Jornalismo Digital), destacou que o assédio judicial tem se tornado um estratagema para limitar a atividade jornalística. “As decisões proferidas contra a reportagem da revista piauí ignoram o papel do jornalismo na efetivação da transparência da gestão pública. Também é preocupante a questionável e impraticável determinação de remoção do conteúdo, uma vez que as revistas impressas já se encontram em todos os estados e em diversos municípios. Vivemos um contexto de crescente prática de assédio judicial, que visa limitar a atividade jornalística, fator essencial para a construção de uma democracia efetiva.”

Para a presidente da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), Katia Brembatti, a decisão afeta, mais que a revista piauí, o público: “Consideramos inaceitável que o Judiciário dê respaldo a esse tipo de pleito e lamentamos que a decisão tenha sido referendada em segunda instância. Decisões liminares, sem análise de mérito, têm sido usadas de forma equivocada. Só se aplicaria a remoção de conteúdo em caso de erro ou inverdade, o que não é o caso. Não é a piauí a principal prejudicada, mas sim a população em seu direito de ser informada.”

A presidente da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas), Samira de Castro, classificou a decisão como um ato autoritário que prejudica a revista e os leitores: “Trata-se de uma decisão que prejudica duplamente a revista e todo o seu público: primeiro pelo ato autoritário de censura a um conteúdo apurado com rigor e ética, seguindo o preceito norteador da atividade jornalística que é o de levar à população a informação de relevante interesse público; e segundo pela obrigação de recolhimento de exemplares impressos, causando um dano material à piauí, na medida em que a reimpressão embute custos adicionais ao veículo.”

A piauí cumpriu a decisão e já apresentou recurso no Tribunal de Justiça do DF.

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