“Temos de pensar no futuro”, asseverou Nelson Jobim, em agosto de 2008. “O passado já passou.” Ministro da Defesa na época, ele estava traçando uma linha na areia. O ministro da Justiça, Tarso Genro, e o dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, haviam sugerido que a tortura e o assassinato durante a ditadura militar não deveriam ser tratados como crimes políticos, provocando a indignação dos generais que suspeitavam de uma tentativa de revisar a Lei da Anistia de 1979. Um ano antes, havia ocorrido uma reação semelhante depois da publicação pelo governo do PT do relatório Direito à memória e à verdade, desenvolvido pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (que, dissolvida no último mês do governo de Bolsonaro, ainda não foi restabelecida). Mas Lula, então, evitou se envolver na controvérsia, demonstrando uma cautela em relação ao passado que parece ser produto tanto de convicção – de fato, de ideologia – quanto de estratégia política.
Lula exerceu essa mesma cautela recentemente, quando bloqueou o envolvimento do governo em eventos a serem realizados em comemoração ao 60º aniversário do golpe de 1964. A eleição de Bolsonaro, em 2018, trouxe das profundezas do porão os piores elementos das Forças Armadas. O fato de que, online e nas ruas, os bolsonaristas têm continuado a invocar a ditadura, mesmo com o esmorecimento da fortuna política de Bolsonaro, não deve deixar dúvidas sobre o domínio que ela ainda exerce sobre a imaginação autoritária, estimulando fantasias violentas de uma nação sem transgressores morais. Quando, no final de fevereiro, Lula comunicou que está “mais preocupado com o golpe de 8 de janeiro de 2023 do que com 1964”, ele, no entanto, obscureceu as continuidades históricas entre o passado ditatorial e o presente democrático. “Não vou ficar remoendo”, insistiu, “vou tentar tocar esse país para frente.”
Deixando de lado os méritos da decisão de Lula, o debate que se seguiu demonstrou a relação constrangida da política atual com a história. Alguns adeptos se submeteram à fé na intuição política de Lula, mas outros, como Rui Falcão, ex-presidente do PT, questionaram-na. “Não podemos apagar a memória”, exortou Falcão. Em uma nota em resposta à decisão de Lula, a coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia, formada por mais de 150 organizações, declarou que “falar sobre 64 não é remoer o passado, é discutir o futuro […], repudiar veementemente o golpe de 1964 é uma forma de reafirmar o compromisso de punir os golpes também do presente e eventuais tentativas futuras”. Os notáveis dos quartéis receberam a decisão de Lula com um gozo que velou finamente as saudades que eles têm dos anos de chumbo.
Para os progressistas, o passado é visto como uma ferida aberta que precisa ser suturada, ou como uma parábola de advertência. Para os reacionários, um alicerce mítico que acena com o retorno de uma nação errante. Em nenhum lugar encontra-se mais a noção de que no passado podem estar as sementes de um futuro melhor; em nenhum lugar se concede agora uma instrumentalidade à história. Quando o futuro é invocado, não é para vislumbrar um novo horizonte, mas para consolidar o próprio presente, nos protegendo de um lapso ao passado. A conservação torna-se, assim, a principal função política da memória. De qualquer modo, o engajamento crítico com a memória como um terreno histórico sob contestação pode nos ajudar a entender como ela desenvolveu essa função e quais são as implicações disso.
Em uma carta a Walter Benjamin, escrita em 1937, Max Horkheimer, exilado da Alemanha nazista nos Estados Unidos, refletiu sobre a circunscrição dos períodos históricos. “A injustiça do passado ocorreu e está concluída”, disse ele. “Os abatidos são realmente abatidos.” A isso, Benjamin ofereceu uma réplica, incluída em sua obra inacabada, o Passagen-Werk (O trabalho das passagens, traduzido no Brasil como Passagens, Editora UFMG/Imprensa Oficial), ao dizer que a história deveria ser vista como uma forma de “rememoração”, de modo que os atos e eventos aparentemente completos se tornassem incompletos. Como diz o historiador Martin Jay, Benjamin se recusava a deixar os mortos descansarem em paz “enquanto permanecessem em sepulturas falsas”. A rememoração não servia para produzir um fac-símile do passado por meio de uma narrativa – Benjamin tinha ojeriza da “cultura da comemoração” –, mas sim para “cravar sua pá em lugares sempre novos, e nos antigos, aprofundar cada vez mais”. Era um ato de escavação que destruía o solo da história universal existente, recoletando os objetos do passado ali enterrados para utilizá-los em uma construção que revelasse o genuinamente universal.
A abordagem de Benjamin se opõe a um tipo de historicismo que se posiciona ao lado do “vencedor”. Ele acreditava que, lutando pelo “passado oprimido” seria possível e até mesmo necessário romper com “o curso homogêneo da história”. Embora seu messianismo marxista-idiossincrático questionasse a “fé obstinada no progresso”, ele tinha como premissa a possibilidade do movimento histórico na direção de um futuro substancialmente diferente do presente. Mas Benjamin morreu em 1940, antes da expansão do capitalismo até seus limites globais, antes do “triunfo das promessas não cumpridas” (nas palavras do historiador americano Fritz Bartel) que fechou a era da disputa ideológica durante a Guerra Fria, antes também da generalização do motivo do fim da história na cultura popular e na teoria.
Com a dissipação das expectativas de um mundo alternativo ao que oferece o capitalismo, o declínio do sentido de tempo histórico gerou um efeito muito profundo sobre a relação do presente com o passado. A cultura da memória que ascendeu a partir da década de 1960, contra a recorrência de atrocidades – principalmente genocídios –, foi resultado sobretudo da mudança na relação social com o tempo. A produção coletiva de memória se tornou um imperativo moral. Para os que atribuíam as atrocidades do século XX à adesão a sistemas políticos teleológicos, ela se tornou inclusive um meio de impedir a ressurreição da história. Mas a produção coletiva de memória é um substituto minguado para a imaginação histórica. Ela pode reparar, mas não inspirar as esperanças milenares que dão sentido à sobrevivência no presente. Ela pode fornecer uma base para a reconciliação entre os vivos, mas não pode fazer dos mortos uma causa – e, assim, os mortos são abandonados no passado, esse lugar estrangeiro e estranho para nós.
No Brasil, como em grande parte da América Latina, a possibilidade do fim da história foi indicado pelos regimes de exceção. O professor de filosofia Paulo Arantes, seguindo o historiador americano Greg Grandin, argumenta que o objetivo principal da ditadura foi justamente suprimir a política formativa que abriria caminho para um novo futuro. Com o prolongamento do regime militar, a mobilização da memória tornou-se uma atividade central do movimento de direitos humanos, cujo papel foi central às campanhas pela democracia. Mas, com o passar do tempo, a perda da perspectiva histórica foi deixando os democratas desatentos às condições materiais de uma subversão profunda da ordem moral.
Nasci em Londres, dois meses após a morte de Tancredo Neves, ocorrida em 21 de abril de 1985. Filho de autoexilados das ditaduras militares latino-americanas, ainda criança tomei conhecimento delas, por meio das campanhas de solidariedade das quais minha família participava na Inglaterra. Em meados da década de 1980, a ditadura brasileira parecia um capítulo encerrado, mas a cultura da memória, cultivada por meus pais e seus companheiros para conscientizar sobre os crimes na América Latina, foi fundamental à formação da minha identidade. Também reforçou, à distância, meu vínculo afetivo com o Brasil.
No capítulo da ditadura, o personagem mais intrigante para mim era Ernani Maria Fiori, meu avô. Assim como Tancredo Neves, ele morreu em abril de 1985, aos 71 anos. Professor interino de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 1947 fundou (e depois dirigiu) o Instituto de Filosofia na mesma escola. Em 1962, apoiou ativamente a “greve do um terço”, em que os estudantes reivindicaram o direito de ocuparem um terço dos assentos nos órgãos diretivos universitários em todo o país. No ano seguinte, Ernani juntou-se à Ação Popular, formada durante a greve por membros de agremiações da Ação Católica – um agrupamento de movimentos católicos surgido na Europa e que se internacionalizou no período entreguerras –, em especial a Juventude Universitária Católica e a Juventude Estudantil Católica. O concurso para a efetivação de Ernani como professor da UFRGS, em 1963, acabou adiado, depois que um membro da banca se recusou a participar por causa do apoio dado por meu avô à greve do um terço.
Em 1964, alguns meses depois do golpe militar, a UFRGS criou a Comissão Especial de Investigação Sumária. Com exceção de um general, a comissão era composta inteiramente por professores que, em uma série de julgamentos de fachada, presidiram zelosamente o expurgo de seus colegas, inclusive de Ernani, sob a acusação de subversão. Na apresentação do caso, o professor Ney Messias o acusou de ser um “monitor ideológico de alunos”, citando sua afiliação à Ação Popular e seu papel na greve estudantil. Em artigo publicado no Jornal do Brasil depois do julgamento, o crítico literário e pensador católico Tristão de Athayde condenou a comissão, argumentando que Ernani havia sido expulso da universidade “pelo simples fato de ter ficado ao lado dos estudantes em algum movimento coletivo”. O fato de o próprio Ney Messias, grosso modo um liberal, ter apoiado a greve é um indicativo da maneira como, desde o início, o aparato repressivo do governo militar dependia da traição e da duplicidade da população civil.
Embora a expulsão da universidade fosse um fato consumado, Ernani apresentou sua defesa: “Minha pregação não é subversiva, embora possa ser considerada revolucionária.” Para o ouvido contemporâneo, essa afirmação pode soar diabolicamente contraintuitiva, talvez até sofismática (o que, sob o atual império da técnica, poderia ser mais subversivo do que a revolução?). Mas, em 1964, era uma constatação lógica razoável. Para Ernani, a subversão da ordem social e política implicava a subversão da ordem jurídica que regulava o comportamento humano. E o conteúdo dessa ordem jurídica não podia ser definido doutrinariamente, mas apenas pelos direitos e deveres que já haviam ganhado legitimidade na sociedade.
Ernani argumentou que, na época, duas tentativas paradigmáticas melhor definiam o conteúdo da ordem jurídica: a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e a encíclica Pacem in Terris (Paz na Terra, de 1963), do papa João XXIII. Ao definir os direitos fundamentais, elas estabeleceram, segundo Ernani, “que o homem não pode ser objeto, que o homem deve ser realmente sujeito de sua história”. Isso exigia, ele continuou, “a democratização das nossas instituições e da nossa vida social”: a organização econômica da sociedade para atender às necessidades, não ao lucro; a humanização do trabalho, de modo que a divisão das funções produtivas não mais determinasse a consciência coletiva; e o desenvolvimento da democracia política, a partir da direção racional do processo econômico.
Foi por causa de seu apoio a essa transformação das estruturas sociais que Ernani apresentou suas ideias como “revolucionárias” – e também como contribuição à “Revolução Brasileira”, como sugeriu em outras ocasiões. A implicação era clara: se o efetivo comprometimento com a ordem jurídica existente exigia a democratização da sociedade, os verdadeiros subversivos eram aqueles que tanto deixavam de promover essa democratização como a minavam ativamente, junto com a própria ordem jurídica.
A expulsão, em 1965, deixou Ernani sem salário ou pensão. Em março do mesmo ano, ele aceitou um convite para coordenar o Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília (UnB). Mas, logo depois de nomeado, foi expulso pelo reitor-interventor da universidade, Zeferino Vaz, a pedido dos militares. A expulsão foi a gota d’água de uma crise que se avolumava na UnB. Os alunos entraram em greve, mais de duzentos professores pediram demissão, e o reitor foi forçado a sair.
Embora expulso da academia brasileira, Ernani permaneceu convencido da importância da universidade para a transformação social que defendia. Em uma palestra sobre reforma universitária, proferida na Faculdade de Direito da UFRGS em 22 de junho de 1962, no auge da greve estudantil, ele caracterizou a universidade como “o centro da máxima consciencialização do processo cultural”. E completou: “Cultura é a alma da civilização.”
Não era uma formulação elitista. Em 1963, durante o governo João Goulart, ele já havia atuado no Instituto de Cultura Popular, do Ministério da Educação e da Cultura, como diretor regional. Foi então que estreitou os vínculos com o educador Paulo Freire. “Nem a cultura iletrada é a negação do homem, nem a cultura letrada chegou a ser sua plenitude”, escreveu Ernani em seu prefácio à Pedagogia do Oprimido, livro de Freire publicado em 1967. O método de alfabetização por meio do qual os oprimidos podiam “aprender a dizer a sua palavra” respondia, em última análise, à mesma demanda histórica que a reforma do ensino superior – a demanda de uma humanização progressiva do mundo, que, principalmente por meio do trabalho, desenvolvia “consciências na sua intersubjetividade”. Ernani chamou esse processo de “socialização personalizante”, seguindo o filósofo católico francês Emmanuel Mounier (1905-50), que, enfatizando a integração do indivíduo na comunidade, criticou o marxismo por subjugar a personalidade humana às transformações materiais.
Como nunca conheci meu avô, soube de sua história graças à memória cultivada por familiares e amigos, que inevitavelmente enfatizou os elementos mitificadores de sua biografia: a expulsão da academia brasileira e a corajosa defesa de princípios diante de um regime truculento; o posterior exílio no Chile; a proeza intelectual como filósofo e a retidão moral como homem de fé católica. Como a minha geração encarou com ceticismo o projeto de transformação revolucionária da história com o qual ele procurou contribuir, sempre pareceu mais simples deixar meu avô no passado. Contudo, o tratamento da memória como um relicário presta um desserviço aos mortos, principalmente àqueles que, em vida, fizeram contribuições significativas para o mundo imaterial das ideias.
“Não prego subversão”, insistiu Ernani, na conclusão de sua defesa em 1964. “Mas ajudo os que tentam alargar as aberturas da história, para que por elas passe o homem, na medida inteira de sua dignidade de pessoa.” Apesar de sua intenção declarada de evitar discussões doutrinárias, nessa formulação poética transpareceu um artifício, mais visível do ponto de vista geracional, que obriga ao ceticismo histórico.
Ernani apresentou a ordem jurídica como o terreno no qual as aperturas da história seriam alargadas, identificando-a com duas declarações de direitos universais (a da ONU e a de João XXIII) cuja realização poderia ser promovida por meio do próprio socialismo personalista, tal como formulado por Mounier, com o qual ele estava comprometido. No entanto, como não definiu a ordem jurídica de acordo com leis nacionais e internacionais em vigor, ele poderia muito bem tê-la identificado com, por exemplo, as “leis do mercado”, ou com o sistema de Bretton Woods (os acordos internacionais que em 1944 definiram o novo sistema econômico mundial no pós-Segunda Guerra, ancorado no dólar).
Embora tenha sido promulgada em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos recebeu pouca atenção até a década de 1970. Foi nessa época que os direitos humanos, invocados em protestos contra a repressão estatal, sobretudo na América Latina, tornaram-se um totem do novo discurso cosmopolita do império americano. A declaração, como aponta o historiador americano Samuel Moyn, “é mais bem compreendida como a canonização dos direitos políticos e sociais como parte de um consenso de que os cidadãos precisavam de novos e poderosos estados”. Ela refletia um pacto social em prol do estado de bem-estar social, que já havia sido assinado com o sangue que escorria da Segunda Guerra Mundial. E, portanto, era de relevância limitada para os movimentos nacionais da periferia que tinham como prioridade a libertação do colonialismo e do subdesenvolvimento.
Pacem in Terris, por sua vez, foi a encíclica papal de maior alcance da metade do século XX. Publicada na íntegra pelo New York Times, ela também recebeu bastante atenção nos países do bloco do Leste, contribuindo para a Ostpolitik (política do Leste) do papado. Foi desenvolvida sobre bases humanistas, estabelecidas por filósofos católicos progressistas, como Mounier e Jacques Maritain, apresentando um vínculo inextricável entre o catolicismo e os direitos humanos. Mas sua influência se limitou em grande parte às instituições católicas e, como argumenta Moyn, “não conseguiu desencadear um movimento de direitos humanos em nenhum lugar na década de 1960”.
A relativa marginalidade dessas declarações em relação à governança global em meados dos anos 1960 põe em dúvida sua exemplificação de uma ordem jurídica internacional, especialmente a que fornecesse pontos de referência necessários para a política democrática no Brasil. Formado em direito, Ernani certamente tinha uma preocupação maior com questões legais do que outros defensores da chamada Revolução Brasileira, muitos dos quais estavam à sua esquerda. Não obstante, era uma ética social-cristã que guiava seu pensamento, mais do que qualquer legalismo. Sua referência à ordem jurídica no contexto do julgamento foi fundamental para sua defesa. Mas, ao invocar a Declaração dos Direitos Humanos e a encíclica papal, ele estava, no fim das contas, apelando não para a lei em si, mas para uma moral “iluminada” e igualitária. A ditadura de fato representou uma ruptura com a moral estabelecida, bem como com a legalidade. Como tal, ela lançou as bases a partir das quais, meio século depois, surgiria um movimento político com a intenção de subverter a ordem dos direitos humanos: aquilo que hoje chamamos de bolsonarismo.
O pretexto contraditório para o golpe militar foi ensaiado ad nauseam nos anos anteriores a 1964: que a democracia no Brasil, diante das ameaças que estava sofrendo, deveria ser suspensa temporariamente, sob a tutela dos militares, para garantir que sobrevivesse no país. Isso foi articulado como um chamado às armas em uma circular reservada endereçada aos membros do Estado-Maior do Exército e das organizações subordinadas, em 20 de março de 1964, por seu chefe, o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. A circular afirmava que a criação de uma nova Assembleia Constituinte para levar adiante as reformas de base propostas pelo governo João Goulart provocaria “a instituição de uma ditadura”. Portanto, caberia às Forças Armadas “garantir os poderes constitucionais”.
É claro que não demorou muito para que o regime militar resolvesse a contradição por meio do abandono explícito da ordem democrática. O Ato Institucional nº 1, emitido em 9 de abril, oito dias após o golpe, afirmava que “a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte se legitima por si mesma […] não procura legitimar-se através do Congresso […] que recebe deste Ato Institucional […] a sua legitimação”. Dois dias mais tarde, depois da cassação de 41 deputados, o Congresso elegeu Castelo Branco como presidente. O Ato Institucional nº 2, emitido em outubro de 1964, normalizou a imposição de presidentes e vice-presidentes pelo Congresso.
Iniciado por meio da ruptura institucional, o estado de exceção foi então mantido por meio da mutilação do corpo político – um corpo que nasceu desfigurado, mas que tinha adquirido certa aparência de funcionalidade democrática. A proibição de organizações políticas foi complementada pela produção de uma cultura do medo através da violência estatal. Os contornos morais da sociedade brasileira seriam fundamentalmente reconfigurados pela criação de uma indústria estatal de tortura, desaparecimento e assassinato de oponentes políticos. Uma vez que a exceção se tornou a regra, qualquer um poderia ser alvo, não apenas aqueles cuja descartabilidade era constitutiva da formação do Brasil. Isso minou radicalmente qualquer pretensão ao direito à vida, à liberdade e à segurança individual – decretado pela Declaração dos Direitos Humanos, mas também pela Constituição brasileira de 1946, que vigorou até o golpe de 1964. Entretanto, isso não representou um ataque direcionado contra uma ordem moral de direitos humanos.
Foi a experiência da ditadura que produziu um movimento de direitos humanos no Brasil. A ditadura forjou os direitos humanos no Brasil, por assim dizer. Ao tratar os corpos dos brasileiros como objetos de decisão governamental, ela anulou a Revolução Brasileira, o que resultou em nova antítese: uma política humanitária do presente, na qual o discurso dos direitos humanos desempenharia um papel central.
Ao promover a inclusão dos marginalizados em uma sociedade da sobrevivência, essa política humanitária tornou-se muito influente depois da ditadura militar, refletida na Constituição de 1988, que introduziu novos compromissos com a redução da pobreza. Atingiu sua apoteose na primeira década do governo do PT, que teve como prioridade política a luta contra a fome e a pobreza extrema (em particular, por meio da racionalização e expansão da “proteção social”, elevação do salário mínimo e extensão da cobertura da Previdência).
Levantando a bandeira dos direitos humanos, as ONGs passaram a ocupar um espaço maior na esfera pública e na consciência moral coletiva nesse período, apresentando-se como protagonistas de um processo social mais harmonioso, a encarnação burocrática de um pacto democrático histórico. Esse pacto foi produzido por uma expansão dos mercados domésticos de produtos básicos por meio da inclusão de uma nova classe consumidora, mas também se deveu muito à engenhosidade política de Lula.
Quando o pacto se desfez, em meio à crise econômica da primeira metade dos anos 2010, foi justamente a política humanitária que se tornou a bête noire dos ativistas da nova direita, cujo individualismo radical se refletia em sua ontologia atomística de organização política. Um programa moral comum – de reação ao assistencialismo, aos direitos humanos e à ação afirmativa – tornou-se crucial para a consolidação política dessa nova direita em torno da figura de Jair Bolsonaro, no período que antecedeu a eleição de 2018.
Em um ensaio seminal, publicado na piauí em maio de 2021 (ed. 176), o cientista político Miguel Lago identificou Bolsonaro como “a vanguarda da primeira verdadeira revolução da nossa história”. Ou seja, contra expectativas do século XX, a ruptura com o status quo teria vindo finalmente não pela esquerda, mas pela direita. Tendo inaugurado um “governo da suspensão” – notadamente, por meio de sua não gestão da pandemia –, Bolsonaro forçou a oposição a assumir a postura de governo, defendendo políticas impopulares, mesmo que necessárias, enquanto ele se dedicava à desconstrução substantiva de instrumentos de organização coletiva que, de outra forma, poderiam deter o avanço de seus militantes monádicos. Se ele tivesse sido mais competente, sua revolução das estruturas sociais teria sido ainda mais profunda e poderia estar agora em ritmo acelerado. Mas é muito cedo para presumir seu fim. A multidão de “perfis” que ainda constitui uma base substancial, embora amorfa, para o bolsonarismo mantém a capacidade de sair de suas moradas digitais e, no mínimo, perturbar a calma ilusória.
No governo, Bolsonaro frequentemente parecia mais animado pela imaginação da ultraviolência infligida a seus inimigos do que pela realização de qualquer objetivo político discreto. Embora o espírito do porão circule livremente nos comícios de Bolsonaro, a continuidade deles, apesar de sua marginalização das estruturas políticas e de seu relativo afastamento das mídias sociais, é um indicativo de que algo além dos impetuosos gritos de guerra está mobilizando os bolsonaristas.
Resposta mimética a uma sociedade sob o efeito do ressentimento, Bolsonaro não inventou seu momento político, mas foi a invenção de um momento antipolítico – a grosseria, a mediocridade e a insensibilidade violenta sendo suas características mais atraentes. Seu feito político mais notável como presidente foi se manter como uma força insurgente. E é ainda essa negatividade que em certa medida continua a alimentar o fervor dos bolsonaristas.
Foram vários os fatores que levaram ao descontentamento com a ordem normal das coisas. Mas as esperanças suscitadas pelo programa político do PT continham os germes de sua própria negação. Uma vez que o progresso mudou de significado em termos de aspiração, a ser validado pelo consumo, com o tempo os laços de solidariedade passaram a ser vistos como amarras para o indivíduo. Quando essas esperanças desmoronaram, uma nova negatividade submergiu diferentes grupos sociais naquilo que Theodor Adorno, em referência às massas heterogêneas sob o fascismo, chamou de “grande unidade inarticulada”. Essa negatividade, porém, passou a ser vinculada a um ideal transcendente. Conforme observado por Lago, a revolução de Bolsonaro deu expressão a uma cosmovisão que conjuga “pré-milenarismo com anarcocapitalismo”. A “liberação do indivíduo” para empreender ganhou justificativa escatológica, fazendo-se de meio para uma salvação concedida apenas àqueles que provam ser bons através de provações e sacrifícios.
Em seguida ao descontentamento político, a conjugação ideológica desses elementos fortaleceu a oposição à política humanitária prevalecente. Uma vez que, de acordo com a cosmovisão bolsonarista, a salvação é uma exclusividade dos bons, os universalismos humanistas, por mais minimalistas que sejam, beneficiam indevidamente aqueles que não se enquadram no código moral da prosperidade individual. Dessa forma, o bolsonarismo inverte a valência das teleologias modernas, ressuscitando um senso de história por meio de uma concepção negativa.
As profecias europeias de progresso do século XIX – que ainda geram, mesmo nessa altura, ecos no discurso político brasileiro – postulavam que a evolução da civilização humana permitiria, por meio do desenvolvimento de instituições, uma autorrealização e uma harmonia social cada vez maiores, com o efeito inevitável de deixar no passado convenções e tradições primitivas. Para o bolsonarismo, é a destruição de instituições e vínculos sociais, muitas vezes em nome da tradição, que se torna o meio de entrada em um reino apocalíptico. Esse é o verdadeiro significado da revolução do bolsonarismo: ela representa uma ruptura total – na prática e na ideologia – com a construção de instituições que constitui a formação nacional. Mas, nesse aspecto, não é mais revolucionária do que o próprio capitalismo brasileiro.
O trabalho, no capitalismo, desempenha o papel central na mediação do processo social. No Brasil, porém, a centralidade do trabalho é negativa, como reconhecem vários teóricos críticos. Ou seja, as relações sociais são moldadas pela centralidade do não trabalho. A aparente impossibilidade de conceder à massa de trabalhadores uma instrumentalidade na economia por meio de sua exploração formal (via trabalho) resulta não apenas na persistência, mas na crescente sofisticação de formas coercitivas de dominação.
Historicamente, a incipiente modernização da sociedade e da economia brasileiras foi inseparável do uso da violência como forma de mediação social, em lugar do trabalho estruturado. Entretanto, quando a desindustrialização, acelerada pela liberalização do comércio e das finanças, confirmou o colapso da modernização brasileira, as formas de trabalho precárias, informais e criminosas se tornaram mais prevalentes. Apesar de toda a parolagem dos políticos sobre a expansão e a formalização dos mercados de trabalho estruturado, o principal desafio dos governos da Nova República tem sido frear a sua deterioração. A redução do desemprego durante os dois primeiros mandatos de Lula obscureceu a tendência de aumento da concorrência por empregos com salário digno e também obscureceu a contribuição da progressiva desintegração do trabalho formal para a hecatombe dos negros e dos pobres nas periferias urbanas desde a democratização.
Em meados da década de 2010, travou-se uma verdadeira guerra pelo trabalho. A nova direita não apenas reconheceu, mas também comemorou o triunfo da negatividade do trabalho, expressa em fenômenos distintos – desde o surgimento do trabalho de aplicativo, passando pelo aumento da influência, da crueldade impudente e da impunidade das milícias, até o crescimento das redes criminosas nas fronteiras de acumulação na Amazônia e no Centro-Oeste. A aceitação dessa nova realidade de cada um por si trouxe para a nova direita uma coalizão heterogênea que inclui classes médias revanchistas, trabalhadores de baixa renda em periferias urbanas abandonadas, ruralistas e empreendedores de si, que aprovaram a franqueza de Bolsonaro sobre as suas implicações para qualquer compromisso coletivo com a vida. “Não sou coveiro” poderia muito bem ter sido o slogan de sua Presidência.
Assim, o bolsonarismo cultivou uma imaginação moral que, em coerência com a tendência destrutiva do capitalismo atual, exigia a subversão da antiga ordem dos direitos humanos. Defendendo a negatividade do trabalho, levou a cabo não apenas a “primeira verdadeira revolução” brasileira, senão também a primeira revolução verdadeiramente brasileira. Poderíamos até dizer que ele representa o primeiro verdadeiro movimento político da negatividade brasileira, na medida em que se organizou de acordo com uma concepção alternativa da história moderna que é verdadeiramente negativa – isto é, uma concepção que estabelece a salvação individual como o telos histórico, a ser possibilitado pela subtração de instituições, vínculos sociais e até pessoas.
É preciso reconhecer o profundo significado da inflexão histórica que isso produziu para entender o caráter e os desafios da política brasileira atual, uma vez que o terceiro mandato presidencial de Lula nada mais é do que uma reação à revolução bolsonarista. Durante toda a sua campanha eleitoral, Lula prometeu a restauração da ordem normal das coisas. Conforme observado por Thiago Canettieri, no posfácio de seu novo livro, o excelente Brasil-Catástrofe (Consequência Editora), slogans como “Brasil feliz de novo” anunciavam a esquerda como “o agente ‘conservador’ da política, que deseja restituir o mundo tal qual ele era”.
Diante da força histórica da negatividade destrutiva do bolsonarismo, a esquerda se reconhecia como a legítima defensora da ordem jurídica – entendida em termos mais positivos do que os elaborados por Ernani Maria Fiori em 1964 –, embora não tenha um programa para revolucionar as estruturas sociais e garantir a realização duradoura dos compromissos mais modestos da Constituição de 1988. Tanto a subversão quanto a revolução parecem ser, agora, exclusividade da direita radical. Portanto, a contínua acusação de que a esquerda quer subverter a ordem social é apenas um artifício retórico da direita radical que obscurece seu materialismo implacável.
No contexto atual, parece improvável que o governo desfaça grande parte da destruição causada por Bolsonaro, não apenas por causa do ato de equilíbrio exigido pela composição do Congresso, mas porque – como é sempre o caso para a esquerda – está limitado pelo regime de acumulação do capitalismo atual. A tática de Lula (que, não sem razão, acaba sendo confundida com seu objetivo) é a mesma de antes: conciliação de classes. No entanto, em vez de restaurar um consenso sobre a construção de uma ordem humanitária, garantindo o mínimo para a sobrevivência de todos, seu governo está tentando humanizar uma guerra de todos contra todos, que, por definição, causará a morte de alguns.
A demonstração mais clara disso até o momento foi dada recentemente pelo projeto de lei do governo para regulamentar o trabalho dos motoristas de aplicativo. Em vez de formalizar o vínculo empregatício desses trabalhadores, garantindo seu acesso à proteção social e trabalhista prevista na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o governo optou por conceder-lhes “autonomia com direitos”, para grande satisfação das empresas envolvidas. “Sempre fomos favoráveis à construção de uma regulamentação que oferecesse equilíbrio entre as demandas dos trabalhadores e a sustentabilidade de um modelo de negócios inovador”, disse André Porto, diretor executivo da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia, que representa as maiores empresas de aplicativos de transporte. Lula, por sua vez, proclamou que “foi parida uma criança nova”. Com certeza, uma criança que é a cara do Brasil, filhote do ornitorrinco, “esse bicho que não é isso nem aquilo” (como descreve o crítico Roberto Schwarz, referindo-se à memorável metáfora do sociólogo Chico de Oliveira).
O discurso atual da democracia obscurece a alteração dos objetivos – o estreitamento das possibilidades – desde os dois primeiros mandatos de Lula até agora. O regime global de direitos humanos também contribuiu para isso. Desde a década de 1970, esse regime tem dado muito mais atenção aos direitos políticos e civis, minimizando a importância dos direitos sociais e econômicos, cuja proteção também é fundamental para a manutenção da estabilidade política. Ao promover a “autonomia do político”, os direitos humanos se tornaram um recruta eficaz do neoliberalismo, estruturando sua economia moral. É claro que a ameaça à democracia tem sido muito real – como confirmado pelas informações agora disponíveis sobre a conspiração por trás da invasão dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023. E, embora o passado deva ser mais do que um repositório de estatísticas e anedotas úteis, a mobilização da memória fornece referências narrativas que podem ajudar a promover a cultura democrática, por meio da construção do que Tocqueville chamou de “império do exemplo”. A memorialização de lutas passadas e, em particular, de derrotas passadas, serve a um propósito defensivo. É uma forma de evitar a perda dos elementos do passado aos quais agora atribuímos significado. Mas isso pode nos cegar para o que está sendo perdido no presente, à medida que a destruição das instituições sociais faz retroceder os limites internos do capitalismo.
O discurso do fim da história tem sido frequentemente entendido como um artifício da direita para deslegitimar a crítica estrutural ao capitalismo. Porém, a notificação do fim tem se mostrado estranhamente ambígua para a esquerda, produzindo, por um lado, uma profunda desorientação e, por outro, uma incômoda sensação de alívio, ao sinalizar o fim da dor recorrente da derrota. Também tem aumentado a melancolia pelos ideais do passado. A memória pode abrir um portal para traumas trancados nas câmaras da consciência suprimida. Mas, quando as aperturas da história parecem estar fechadas, ela também se torna um meio de deslocar sentimentos tristes sobre o presente.
Através da memória, projetamos no passado aquilo que precisa ser preservado hoje, extraindo lições que amenizam nossos temores de perda contínua. O caráter afetivo de nossa memória é condicionado por nosso estado no presente. A memorialização, portanto, torna-se uma forma de produção de imagens de desejo relativas ao passado que atendem às preocupações do presente; produzimos memórias do presente, por assim dizer. Assim como meu avô Ernani idealizou uma ordem moral que ainda não havia sido criada, agora memorizamos os anos de ditadura em referência a essa mesma ordem moral. Imaginamos no passado um exemplo que possa ajudar a salvar hoje a democracia e os direitos. Na falta de esperanças para o futuro, o culto à memória é idealismo ao contrário.
Ainda jovem, em uma fase mais anarquista de seu desenvolvimento intelectual, Walter Benjamin identificou a violência inerente à criação e à preservação de leis. Ele argumentou que o objetivo da criação de leis não era a justiça, mas o poder. A relação entre justiça e poder é, seguramente, mais complexa do que a sugerida pela crítica à violência feita por Benjamin. Porém, no Brasil atual, a ordem jurídica que protege a democracia e os direitos humanos, de fato, não só permite a violência – praticada por facções do Estado e facções do mercado – como depende cada vez mais dela para a gestão dos antagonismos sociais. Reconhecendo a necessidade de transcender a ordem jurídica para escapar desse apuro, uma boa parte da teoria crítica contemporânea, não obstante, entrega-se a uma resignação fatalista diante da virada negativa da história. No entanto, a própria desconstrução das instituições e dos ideais modernos revela aberturas sistêmicas, forçando aqueles comprometidos com “o genuinamente universal” a repensar suas estratégias políticas. É nesse contexto que a memória política pode ganhar um novo significado.