Apesar do nome, o banco Neman, de banco, tinha pouco. Não tinha correntistas, muito menos movimentava dinheiro em suas próprias contas. Sua especialidade era cobrar dívidas: recebia depósitos de empresas devedoras (desde que acima de 100 mil reais) usando contas em bancos convencionais e entregava em espécie para a firma credora em poucos dias ou mesmo horas – não à toa, a sede do Neman ficava dentro do Aeroporto Campo de Marte, em São Paulo, a poucos passos de um avião. O que parecia apenas uma facilidade para o mercado (a burocracia dos bancos convencionais prejudica a rapidez de transações desse tipo) logo tornou-se, segundo a Polícia Federal, uma enorme lavanderia de dinheiro, com uma carteira eclética de clientes: de contrabandistas de cigarro a empreiteiras, de organizações sociais de saúde ao tráfico de cocaína operado pelo PCC (Primeiro Comando da Capital).
O banco Neman, cuja razão social era Bidu Cobranças, Investimentos, Transportes e Participações, surgiu em 2016. Por dois anos, ficou em nome de um corretor com salário declarado de 967 reais. Na prática, a empresa era controlada pelo empresário e doleiro Dalton Baptista Neman e pelo filho dele, Caio. O Neman não tinha autorização do Banco Central para exercer atividade bancária. Utilizava contas em bancos convencionais para suas transações. Entre os clientes, segundo o site da empresa, estavam empreiteiras, fintechs e firmas do setor de alimentação. Em quase três anos, entre janeiro de 2017 e outubro de 2019, o Neman movimentou 321 milhões de reais, conforme a PF.
Uma vez depositado na conta de um banco convencional indicada por Neman, o dinheiro sujo percorria um longo caminho: ia passando entre contas bancárias em nome de empresas fantasmas, todas em nome de laranjas (inclusive um cozinheiro e um pedreiro). Essas sucessivas transações serviam para afastar o dinheiro da origem criminosa. Ao final, o montante era sacado e entregue em espécie para o cliente, com o uso de aviões, carros-fortes da Protege, empresa de segurança sediada na capital paulista, ou mesmo em ônibus – um irmão de Dalton Neman foi flagrado dentro de um deles levando 160 mil reais de São Paulo para Brasília, em outubro de 2019. Os Neman criaram assim uma fábrica de dinheiro vivo, com alguma semelhança com o esquema do empresário e doleiro Dario Messer, que gerava reais por meio de negócios espúrios de boletos com transportadoras de valores.
Foi dessa forma, de acordo com a PF, que o Neman lavou dinheiro para o Iabas (Instituto de Atenção Básica), pivô do escândalo de corrupção na saúde pública do Rio de Janeiro que levou ao impeachment do governador Wilson Witzel. Em 29 de janeiro de 2020, o advogado e lobista Roberto Bertholdo, apontado pelo Ministério Público como um dos controladores do Iabas, depositou 700 mil reais na conta indicada pelo Neman. Três dias depois, o dinheiro foi sacado de uma agência da Caixa Econômica Federal em Jandira, na Grande São Paulo, e levado de avião do Aeroporto Campo de Marte até Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio. Agentes da PF acompanharam a entrega do dinheiro em uma mochila a um advogado ligado a Bertholdo. “Considerando as recentes operações deflagradas pelo Ministério Público Federal, Polícia Federal e Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro, é forçoso reconhecer que há indícios fortíssimos que levam à possibilidade de que os valores transportados pelos Neman, fisicamente, possam ter como destino o pagamento de propina a membros do governo daquele estado”, escreveu o delegado da PF Rodrigo de Campos Costa, em relatório a que a piauí teve acesso.
Além desse episódio, um relatório do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) apontou que, entre abril de 2019 e março de 2020, o Iabas depositou 6,58 milhões de reais na conta do escritório de advocacia de Bertholdo, e que nesse mesmo período o escritório transferiu 2,47 milhões de reais para o banco Neman. Bertholdo é dono de um currículo polêmico. Em 2005, ele chegou a ser preso, acusado de interceptar ilegalmente telefones do então juiz da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba, Sergio Moro. Na época, o advogado era investigado por pagar propina a um juiz federal em troca de decisões favoráveis aos seus clientes.
A investigação da Polícia Federal descobriu que o banco Neman também lavou dinheiro supostamente desviado dos cofres públicos por meio de contratos superfaturados com prefeituras, em licitações com cartas marcadas, em um esquema formado por mais de 150 empresas. “Eles têm 150 amigos que fazem as mesmas coisas lá. É aquele joguinho: hoje eu ganho, amanhã ganha você”, disse Dalton Neman a um terceiro em telefonema captado pela PF. Uma das empresas era uma empreiteira do Paraná contratada por diversas prefeituras para a construção de quadras esportivas em escolas. Em 2017 e 2018, a empresa transferiu 22,5 milhões de reais para o banco Neman – para a PF, a empreiteira lavava dinheiro nessas transações.
A Polícia Federal só chegou ao esquema da família Neman por meio da delação de Felipe Ramos Morais, piloto de helicóptero que trabalhou para o PCC. Preso em 2018, acusado de envolvimento no assassinato dos líderes da facção Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, e de Fabiano Alves de Souza, o Paca, no Ceará, Morais fechou acordo de colaboração premiada com o Ministério Público Federal. A delação levou a polícia a desvendar um sofisticado esquema de lavagem de dinheiro do PCC por meio de transações imobiliárias e postos de combustível, em 2020.
Morais ainda contou mais aos procuradores. Em 2016, o piloto apresentou Caio Neman a Wagner Ferreira da Silva, o Cabelo Duro, traficante que gerenciava a exportação de cocaína do PCC pelo porto de Santos. Na época, segundo Morais, Silva vinha tendo dificuldade para receber os pagamentos pela cocaína por parte dos traficantes na Holanda e na Bélgica.
Fechada a parceria, Caio Neman e o pai passaram a coordenar, do Brasil, a entrega ao PCC dos valores pagos pelos compradores holandeses e belgas. O dinheiro era depositado em contas bancárias na Europa e transferido para a China. Quando o dinheiro chegava na Ásia, Neman casava duas operações dólar-cabo: no Brasil, recebia reais dos comerciantes da Rua 25 de Março interessados em comprar mercadoria vinda da China; e usava os dólares de Silva para pagar os fornecedores chineses dos comerciantes. Os reais depositados pelos comerciantes eram então entregues a Silva em São Paulo – os Neman ficavam com 8% do valor movimentado. O traficante trocava novamente os reais por dólares com outro doleiro, e o piloto levava tudo para o Paraguai, onde o dinheiro era entregue aos fornecedores de drogas do PCC. “Eu transportava de 3 a 4 milhões de dólares por viagem”, disse Morais à piauí – ele deixou a prisão na semana passada. Silva seria assassinado dias depois das mortes de Gegê e Paca, em frente a um hotel de São Paulo.
Os Neman também utilizavam o sistema dólar-cabo para movimentar dinheiro para contrabandistas de cigarro, incluindo o ex-presidente do Paraguai Horácio Cartes – o esquema foi desvendado pela PF em outra operação, batizada de Laços de Família. Em alguns casos, Dalton Neman também levava o dinheiro em espécie até Foz do Iguaçu, fronteira com o Paraguai, e entregava aos contrabandistas. “Este trabalho consiste em recolher todo dinheiro que ele tem, diariamente, de segunda a sexta-feira, aqui em São Paulo, e enviar para Foz, na fronteira, ou em outro lugar que ele queira, e além do dinheiro vivo recolhido com segurança, com carro-forte, resguardando ele, ele não vai aparecer”, diz Neman em conversa interceptada pela PF.
A lavanderia dos Neman movimentou 700 milhões de reais nos últimos quatro anos, de acordo com a Polícia Federal. A estimativa não considera transações ocorridas no exterior – entre 2012 e 2015, os Neman mantiveram uma offshore nas Ilhas Virgens Britânicas, Caribe.
Na segunda-feira, 3, Dalton e Caio Neman foram presos preventivamente; Bertholdo foi detido temporariamente. Todos estão na carceragem da Superintendência da PF em São Paulo e devem ser indiciados por associação criminosa, lavagem de dinheiro e crime contra o sistema financeiro.
O advogado dos Neman, Julio Konkowski da Silva, defendeu a legalidade das operações financeiras do banco Neman. “Eles suprem uma deficiência do sistema financeiro no Brasil ao receber e entregar dinheiro com agilidade, sempre por meio do sistema bancário formal, com nota fiscal no transporte dos valores, tudo declarado. Se alguém utilizou os serviços do Dalton para movimentar dinheiro ilícito, ele não tinha como saber a origem dos valores. Infelizmente a Polícia Federal jogou tudo no mesmo balaio”, disse.
Em nota, o Iabas afirmou que desconhece a investigação da PF e que o advogado Bertholdo prestou serviços ao instituto entre outubro de 2019 e abril de 2020, mas que “nunca fez parte do quadro de funcionários” do instituto. “O Iabas ressalta que está à disposição das autoridades incumbidas das investigações para fornecer os esclarecimentos necessários à elucidação dos fatos.”
A assessoria da Protege afirmou em nota que “todas as operações de transporte de valores são realizadas mediante contrato, com emissão de nota fiscal e sendo intermediada por uma instituição financeira devidamente registrada no Banco Central”. A defesa de Bertholdo não foi localizada pela piauí.