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Leonardo

Paulo da Costa e Silva | 13 maio 2016_19h52
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Para o querido amigo Petar

Uma fusão dos extremos, da beleza e do terror. Foi assim que o ensaísta inglês Walter Pater descreveu, no século XIX, a qualidade misteriosa da arte de Leonardo. Basta observar a paisagem pré-humana que absorve a Gioconda, ou os ameaçadores rochedos que emolduram a Virgem, ou ainda o limiar do abismo sob os delicados pés de Sant’Ana, a mãe de Maria, para entender o comentário de Pater. Muito rapidamente passamos da indiferença brutal da pedra à leveza calorosa e efêmera dos sorrisos femininos, e mais uma vez retornamos à opacidade da pedra. A aparição dessas mulheres soa como um breve intervalo de beleza no seio do infinito, do imemorial, do caótico, do eternamente indiferente ao humano. Nas pinturas de Leonardo, figura e fundo não se distinguem. No fundo, as paisagens nunca são apenas paisagens.

Não há momento cultural expressivo sem conexão profunda com o passado. Em meio a tantas novidades, o Renascimento trazia dois grandes “retornos”. O primeiro dizia respeito ao renovatio italiano propriamente dito, uma retomada da grandiosa herança do Império Romano: a arquitetura romana é redescoberta e estudada a fundo; a antiga tradição estatuária é reconsiderada; o passado é literalmente desenterrado em canteiros arqueológicos. Tal retorno, contudo, não se atém a Roma. Espraiando-se Antiguidade adentro, desemboca na retomada dos grandes textos da Grécia clássica, no contato entusiasmado com a mitologia do Olimpo, criando um novo gosto, tão típico dos renascentistas, pela modesta escala humana.

O segundo retorno é a redescoberta efusiva da natureza. A relação do Renascimento com o mundo natural é, a um só tempo, de ordem científica, mística e sensual. Não mais o abominável local do pecado, da matéria e da perdição, mas o palco onde se desenrola, sob luzes divinas, o próprio enigma da criação. Também o homem é parte desse enigma, que pode ser decifrado por uma Razão que o torna apto a enunciar uma nova verdade – não a verdade revelada das Escrituras, mas a verdade cumulativa da experiência, do orgulhoso conhecimento humano. Tal como na Primavera de Botticelli, a natureza é a mãe, origem de todas as coisas, guardiã do mistério maior da fecundidade. Ela é a própria divindade. Deus é natureza, formularia mais tarde o filósofo Espinosa. E o homem, seu filho mais pródigo, não apenas a investiga e a conhece, mas torna-se semelhante a ela, participando da criação do mundo e de si mesmo.

Como em nenhum outro artista, há em Leonardo a síntese desse duplo retorno, condizente com a dupla dimensão de seu gênio: por um lado, uma curiosidade infinita sobre o funcionamento das coisas que estão no mundo; por outro, uma inesgotável sede de beleza. Em Leonardo, arte e ciência ainda estão intimamente unidas, perfeitamente integradas, uma a se desdobrar na outra. As horas que, ainda garoto, ele passava observando a natureza nos bosques ao redor da província de Vinci são também as horas de seu aprendizado do desenho. Leonardo desenhava a natureza para conhecê-la; e tal conhecimento, por sua vez, estava inextricavelmente ligado à experiência da beleza. Precisão científica e beleza eram concebidas como um único corpo.

Ao longo de toda a vida, foi fascinado pela metamorfose das flores, o modo como germinam, desabrocham e morrem. Quando jovem, criou sequências de imagens que tentavam colher o próprio movimento vital delas, seu devir. Sua filosofia sempre foi clara: a vida é definida pelo contínuo movimento e pela constante mudança. Para captar essa mobilidade, precisava empenhar uma observação e uma reflexão mais acuradas sobre o que desenhava. Pensamento e desenho foram se tornando uma só coisa. O esforço não era apenas o de representar o mundo visual, mas também o de penetrar no fundo das coisas. Mais tarde, a pintura seria por ele definida como “discorso mentale”, e não como simples atividade manual. “Seu problema era a transmutação das ideias em imagens”, escreveu Pater.

A observação da metamorfose das flores acabou por impeli-lo a desenhar a anatomia humana e animal. O menino que outrora dissecava flores e pequenos animais unicamente para saber o que havia dentro deles torna-se um explorador de cadáveres. Imagine-se o impacto de seus esboços de fetos humanos encapsulados nas paredes uterinas. Em outros momentos, braços e ombros são desenhados em sequências que revelam, além da dinâmica do movimento, as camadas simultâneas do real, o denso emaranhamento de feixes musculares, ossos, tecidos, articulações, tendões… É estranho pensar o quanto de “ciência” há por trás do inefável sorriso da Gioconda – o profundo conhecimento da maquinaria muscular da anatomia do rosto.

Nota-se em Leonardo uma reversão contínua entre o detalhe e o todo. Folhas de papel repletas de narizes, bocas, caricaturas grotescas, mãos e detalhes de partes do corpo humano, convivem com inusitados mapas aéreos de cidades, vales e rios, vistas e paisagens. Em geral, como disse o historiador da arte Giulio Carlo Argan, o Renascimento parece ter eliminado os extremos do muito grande e do muito pequeno, tão característicos da Idade Média em suas catedrais e miniaturas. Concentrou-se na escala do corpo humano. E foi Leonardo quem concebeu um dos grandes símbolos desse humanismo, consagrado no famoso desenho do Homem vitruviano. Seu conhecimento e amor das delicadezas infinitas de nossa expressão corporal, da musicalidade que emana desse amplo conjunto de harmonias que nos constituem, levou-o a criticar a qualidade bruta, a nota altissonante das representações corporais de Michelangelo. Mas se em Michelangelo o corpo humano se expande até ocupar, em agonia e êxtase, o lugar do divino, fazendo recuar todo o resto, em Leonardo ele está sempre imbricado numa rede que o ultrapassa. É sempre, por assim dizer, um todo em si e também um detalhe de outro todo maior. Um pouco como acontece na teoria dos fractais, ou no “paradoxo de holon”, no qual uma entidade autocontida é simultaneamente um componente de algo que forma um todo maior.

As figuras de Leonardo possuem um altíssimo grau de presença. Contam-se histórias de pessoas que, no convívio com suas obras, foram flagradas comunicando-se intimamente com elas, dispensando-lhe carícias; guardas de museus foram afastados de seus cargos porque passaram a manifestar afetos delirantes pelas figuras, não mais distinguindo entre a fantasia e o real. Parecem, de fato, pinturas vivas, pulsando com uma beleza que vibra desde dentro e se exterioriza na carne. Não à toa suas obras foram as mais vandalizadas da história da arte.

Mas esse incomparável grau de presença, capaz de por vezes suscitar a loucura, coexiste com um estranho grau de ausência. De fato, a Gioconda praticamente não está lá: ela nos escapa, ao mesmo tempo em que se instaura como forma viva, concreta, possivelmente mais real do que todos nós. Talvez por isso continue sendo tão fotografada, reproduzida, parodiada, incompreendida – porque está sempre a nos escapar. A mente moderna não admite enigmas tão abissais. Multiplicar a Gioconda ad infinitum é apenas nosso modo de tentar destruí-la, pelo cansaço e pela exaustão. E no entanto não é difícil imaginar o quadro sem ela, ocupado apenas pela paisagem.

Talvez esse caráter incerto e fugidio dos sorrisos – e ele foi o primeiro a pintar retratos de pessoas sorrindo – tenha a ver com outra de suas obsessões: o estudo das formas fluidas do movimento das águas. Seja como for, o que vale para a Gioconda vale também para a Virgem dos Rochedos ou, talvez ainda mais, para a Sant’Ana. E o último dos quadros pintados por Leonardo, a representação pouco ortodoxa de um são João Batista que surge, faceiro, do breu, parece levar ao paroxismo essa mistura de presença e rarefação.

O interesse de Leonardo pelo aspecto humano jamais ofuscou sua percepção mais ampla da rede única que envolve e religa a vida no planeta. Nutrindo profundo amor pela vida natural, tornou-se vegetariano – tipo raríssimo numa época de pesado consumo de carne – porque não suportava a ideia de que um animal com sistema nervoso pudesse experimentar algum sofrimento para lhe servir de refeição à mesa. “Perceba que tudo se conecta com tudo”, escreveu numa passagem de seu diário, onde recomendava a si mesmo que não se esquecesse dos “princípios para o desenvolvimento de uma mente completa”. Com essa consciência holística, intuiu por exemplo, que ao jogarmos uma pedra num lago, os padrões de ondas concêntricas que se formam na superfície lisa da água são análogos aos padrões de propagação do som pelo ar – que se tornam claros, por exemplo, quando toca um sino no alto de um campanário. Foi ele também o primeiro a conceber a Terra como um organismo integrado, altamente complexo – e tal percepção só seria confirmada no meio científico nos anos 70, por pesquisadores da NASA. Examinando sua obra, tem-se a impressão de que as formas das flores ecoam nas formas do movimento das águas, que ecoam nas formas dos cabelos de Leda, as coisas desdobrando-se maciamente umas nas outras, qual expressões de um mesmo princípio maior.

É nesse contexto radicalmente holístico que se dá a reversão contínua entre detalhe e todo, presença e ausência. Na qualidade atmosférica de suas pinturas se realiza plasticamente a essência de tal modo de visão, certo milagre da integração, capaz de manter a especificidade das coisas. No tratado que escreveu sobre a arte da pintura, Leonardo ponderou que a fronteira de um corpo não é parte do corpo acabado, tampouco é parte da atmosfera circundante. O procedimento de trabalho por camadas finíssimas de micropinceladas, assim como a radicalização do recurso do sfumato, apenas reafirmam, no plano estilístico, a inseparabilidade das partes e do todo. Kenneth Clark, grande especialista na obra de Da Vinci, escreveu que a Gioconda possui o ar de uma “deusa submarina” – tão completamente embebida na substância do quadro ela estaria.

Tanto na Gioconda como em outros de seus quadros, o que fascina é justamente o que liga profundamente as figuras à paisagem ao fundo. Nesse sentido, Leonardo permaneceu algo alheio ao pensamento moderno para o qual ele próprio contribuiu decisivamente. Não desconectou o humano do mundo natural. Sabia que o impulso científico de manipulação e fragmentação precisa caminhar junto com sua contrapartida necessária: o sentimento holístico de unidade, a intuição mística (não-racional) da conexão de tudo com tudo.

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