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Lincoln – ilusionismo nocivo

O que torna Lincoln uma paródia, quando pretende ser uma representação realista, é o teor imutável dos diálogos. Na tentativa de dar dimensão mítica aos seus personagens, Kuschner e Spielberg os fazem emitir apenas frases para a eternidade, a serem impressas em livros ou gravadas em pedra.

| 14 fev 2013_13h30
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Escrevendo no Brasil, criticar é quase tão patético, e inútil, quanto elogiar o filme dirigido por Steven Spielberg. Mas apesar de ser irrisória a diferença entre, de um lado, mostrar o que todos se negam a ver e, de outro, aplaudir a operação de ilusionismo, dizer qual é a roupa nova do rei serve ao menos para preservar a integridade.

Spielberg têm razões de sobra para estar satisfeito e jamais tomará conhecimento do que alguém escrever, no Brasil, a favor ou contra . Ainda assim, resta a esperança de ser lido por algum espectador desavisado e servir de alerta à prestidigitação nociva que vem provocando tantas vítimas mundo afora.

Produzido por 65 milhões de dólares, rendeu mais de 220 milhões desde seu lançamento há três meses e está concorrendo a 12 Oscars, incluindo os de melhor filme, diretor e roteiro adaptado. Mesmo que Argo continue a estragar a festa de , ganhando alguns dos principais prêmios na cerimônia do próximo dia 24, o filme escrito por Tony Kuschner e dirigido por Spielberg não deixará de ser um sucesso incontestável.

O que haveria, então, de ilusionismo maléfico em ? Alguns historiadores americanos consideram que o filme exagera as opções em jogo, simplifica os fatos e é repleto de pequenas gafes. Outros o defendem como sendo autêntico, historicamente sólido, importante, apesar de erros irrelevantes. Tratando-se de um filme, o debate nesses termos é fútil, por não levar em conta sua linguagem – componente básico do seu significado.

A fragilidade de estaria, então, como alguns espectadores disseram, em ser narrado através dos diálogos e não, como é mais usual, pela ação? Ou no decorrente aspecto “teatral” do filme, como também foi comentado? Não seriam essas, tampouco, as principais questões que tornam anacrônico.

O que torna uma paródia, quando pretende ser uma representação realista, é o teor imutável dos diálogos. Na tentativa de dar dimensão mítica aos seus personagens, Kuschner e Spielberg os fazem emitir apenas frases para a eternidade, a serem impressas em livros ou gravadas em pedra.

Spielberg encena com competência burocrática o roteiro de Kuschner que chegou a ter 500 páginas antes de ser cortado para caber em duas horas e meia de projeção. Concentrando a ação no mês de janeiro de 1865, e nas manobras políticas necessárias para obter a aprovação pelo Congresso da 13ª emenda à Constituição que aboliria a escravidão, roteirista e diretor evitaram as armadilhas usuais das narrativas biográficas. Mantiveram, porém, flagrantes do drama familiar do casal Lincoln que destoam do conjunto, não só por trincarem a unidade narrativa, mas por virarem um dramalhão, em especial na sequência em que Mary Todd Lincoln, mulher do presidente, opõe-se à decisão de se alistar tomada pelo filho.

Além desse momento fora de tom, ao tratar o processo histórico numa dimensão espacial e temporal restrita, o roteiro filia-se a uma historiografia que busca delimitar o objeto da investigação, deixando de lado tudo que há de indeterminado e resta por decifrar em qualquer investigação do passado.

Kuschner e Spielberg subordinam-se à tradição que considera a ação individual de seres de exceção como o motor da História.  E o sucesso de Lincoln talvez provenha justamente do filme não se emancipar da narrativa e historiografia do século dezenove, com as quais o espectador se sente à vontade. A ênfase está no episódico – fato, personagem e enredo singulares – alicerces da bem sucedida fórmula de marketing ideológico Spielberg + Lincoln = patriotada edificante. 

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