Juan Cárdenas e Alejandro Chacoff - Foto: Giovanna Silveira
Literatura em movimento na Casa de Histórias
Escritores contam seu processo criativo no espaço da Flip promovido pela piauí em parceria com a Netflix, a Janela Livraria e a editora Mapa Lab
Texto atualizado às 20h30 de sábado (12)
“Não vejo a geração do boom literário latino-americano como uma sombra, mas como vovôs fofinhos”, brincou o escritor colombiano Juan Cárdenas em conversa com o editor de literatura da piauí Alejandro Chacoff na sexta-feira (11) na Casa de Histórias, uma parceria entre a piauí e a Netflix, em conjunto com a Janela Livraria e a editora Mapa Lab, na 22ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty. Essa onda latino-americana, que tem como marco inicial Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, foi um movimento que aconteceu entre os anos 1960 e 1970, no qual a literatura da América Latina ganhou destaque mundial, principalmente na Europa.
“O boom trouxe uma idealização do que o sucesso para um escritor latino-americano deve ser em termos de vendas, popularidade, relevância política. Eu acho isso negativo. Os lados B, C, D da literatura latino-americana são muito mais interessantes para mim”, disse o escritor colombiano.
Cárdenas já visitou o Brasil algumas vezes. Desta vez, veio para a Flip lançar o livro O diabo das províncias, pela editora DBA. O romance vem conquistando muitos leitores, e sua tradução foi finalista do National Book Award. Mas a carreira de Cárdenas é mais extensa – desde O diabo das províncias, ele publicou dois outros livros (Elástico de sombra e Peregrino Transparente), e tem ao todo sete livros, entre romances e ensaios. Fluente em português, Cárdenas é tradutor de Machado de Assis e Guimarães Rosa para o espanhol. Também atua como curador e crítico de arte.
A obra O diabo das províncias combina o horror e a beleza de pequenas cidades da América do Sul. Conta a história de um prestigiado biólogo que se vê desamparado por não conseguir atuar onde gostaria, uma universidade de alto nível na Colômbia. Com isso, vira professor em um internato feminino, onde presencia diversos episódios de opressão contra mulher. A história tem como pano de fundo um país afundado pela violência política, econômica e ambiental por toda parte. “Eu gosto de trabalhar com ideias simples no início da realização de uma história, com figuras da tradição literária que são simples. Eu queria que o personagem voltasse para casa. Inicialmente eu nem sabia que ele era biólogo, mas estava interessado em explorar a paisagem do local”, revelou Cárdenas. “Precisei pesquisar muitas coisas de biologia para dar verossimilhança ao personagem.” Uma parte importante do livro, ressaltou o escritor, é confrontar o leitor com as ambiguidades morais que o personagem encontra.
Na obra, há descrições líricas das paisagens, que ao mesmo tempo são perturbadoras. Sobre esse tema, Cárdenas disse que tem duas visões de paisagens desde o século XIX: uma decorativa e ornamental e outra cósmica. “A descrição da paisagem é uma possibilidade de entrar dentro do mistério. Uma forma estética de se aproximar de uma questão é científica, mas também é poética”, disse o escritor.
Na história, há um mal pairando no ar que é difícil de identificar. Essa tensão, ressalta o mediador Alejandro Chacoff, lembrou o filme O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho. Cárdenas concordou e disse que é “um fã declarado de Kleber”. Perguntado se o protagonista personifica uma decepção geracional, Juan Cárdenas afirmou que a “homogeneização das promessas incumpridas do neoliberalismo afetaram igualmente o mundo. A crise é global. A história pode ser provinciana, mas não é. Afeta tudo, o corpo, a natureza, a experiência cotidiana e o prazer”.
Questionado se é uma obra autobiográfica, Cárdenas não soube dizer até que ponto. Mas disse que teve a oportunidade de viver e ficar perto de gente que teve experiências similares ao personagem do livro. “Vi como a realidade traía as promessas para esse tipo de gente”, afirmou.
“Mata Doce é uma história de amor por mulheres, amor pelo Brasil, dialogando com o luto.” No palco da Casa de Histórias no dia anterior, quinta-feira (10), a escritora baiana Luciany Aparecida falou sobre a obra em conversa com a editora assistente de redes sociais da piauí Emily Almeida e com Fernanda Dias, editora do livro junto com Marcelo Ferroni.
Luciany Aparecida vem colecionando elogios da crítica por Mata Doce, publicado pela Alfaguara, e recentemente se tornou finalista do Prêmio São Paulo de Literatura na categoria Melhor Romance de 2023 e semifinalista do Prêmio Oceanos. É o primeiro romance da autora e narra os acontecimentos de um pequeno vilarejo rural no interior da Bahia.
Na história, Maria Teresa, matadora de bois e datilógrafa, vive em um casarão antigo com suas duas mães. Todos os personagens são negros, com exceção do coronel Gerônimo Amâncio, o primeiro a duvidar que Maria Teresa pudesse dar conta de abater aos animais. Apesar da presença de personagens masculinos, é uma história essencialmente matriarcal. “Como leitora e pesquisadora, vivi a angustia de ler personagens negros em um lugar exotificado nos livros clássicos brasileiros. Mas tem diversas escritoras contemporâneas tirando essas personagens desse local. Eu tinha esse referencial e queria escrever histórias de mulheres sendo amadas e saber quais são os sonhos de duas mães e mulheres negras em uma comunidade rural”, disse Aparecida.
Ela contou que começou escrevendo o livro em terceira pessoa. Quando estava finalizando o primeiro capítulo, escreveu a seguinte frase: “Naquele instante, a assombração, formada de areia e vento, em parecença de boi, não estava mais entre nós”. Imediatamente, se perguntou “quem nós?” “Parei, fechei o computador e fui chorar”, revelou ao público da Casa de Histórias, que caiu na risada. Ela acreditava ter perdido tudo o que já tinha escrito, mas quando voltou para continuar o segundo capítulo a autora entendeu que a personagem queria aparecer e se manifestar como primeira pessoa. “Eu, como escritora, fui vencida pela personagem e ainda bem. Eu tinha todo o material para escrever em primeira pessoa, mas não estava dando autoridade a ela até então.”
A autora já publicou outros livros sob o nome de Ruth Ducaso – que ela não considera um pseudônimo, mas um projeto estético-político. É uma prática também usada por escritoras negras como bell hooks, que reescreveram seus nomes após o sequestro do escravismo, como movimento de liberdade. Ruth é o nome da avó materna de Luciany, e Ducaso remete às histórias que falam de casos de violências patriarcais e raciais.
“Mata Doce tem uma história triste, mas tem um carisma grande que fez as pessoas da edição se envolverem muito. Cada pessoa nova que lia a obra no processo de edição vinha com diversos elogios”, disse a editora Fernanda Dias.
Na mesa A língua viva, que aconteceu logo depois, Amara Moira e Jana Viscardi conversaram com a jornalista Cris Fibe. Escritora, professora e ativista, Moira é doutora em teoria literária pela Unicamp. Ela foi a primeira mulher trans a assinar a tese de doutorado usando o nome social. Nesta semana, lançou seu novo romance Neca pela pela Companhia das Letras, escrito em bajubá, a linguagem de resistência usada pela comunidade LGBTQIAP+. “Por muito tempo, foi tratada como uma língua de marginais”, disse Moira. “Hoje ela cai no Enem, tem música e até livro.”
Neca narra o reencontro de uma travesti com um antigo amor que está começando a trabalhar nas ruas – e revisita memórias e aventuras da protagonista como prostituta. “O livro é um ode à oralidade”, disse Amara Moira. Sobre as mudanças constantes do bajubá, ela afirmou que “quem precisa de uma língua de segurança, muda ela constantemente.” Na rua, o bajubá hoje em dia já é diferente do que foi retratado no livro.
“É preciso sempre pensar que língua é viva. É heterogênea, se mexe, assim como o bajubá”, ressaltou a linguista Jana Viscardi, autora de Escrever sem medo: um guia para todo tipo de texto.
Para algumas pessoas, há passagens no livro Neca que não são compreendidas pelo vocabulário usado. “Precisa entender tudo?”, se perguntaram as convidadas da mesa. “O “mal dito”, o “não dito”, o “desdito” fazem parte da comunicação. Pensar em dessacralizar a escrita é pensar que ela é para muita gente. Dessacralizar a escrita é trazer diversos corpos que são dissonantes de uma norma que vai muito além da escrita”, afirmou Viscardi.
Na sexta-feira (11), a escritora camaronesa Léonora Miano conversou com a jornalista Cláudia Lamego. A autora publicou recentemente três livros no Brasil: Stardust (Autêntica Contemporânea), Vermelha imperatriz e A outra língua das mulheres (Pallas Editora).
Léonora Miano nasceu em Douala, na costa de Camarões, onde viveu a infância e a adolescência, antes de migrar para a França para fazer a faculdade. Em 2010, fundou a ONG Mahogany, dedicada a projetos sobre diáspora. Com 14 obras literárias publicadas, a escritora camaronesa ganhou o Prêmio Goncourt des Lycéens com Contornos do dia que vem vindo e A estação das sombras, vencedor do Prix Femina e do Grand Prix du Roman Métis. As obras de Miano abordam as vivências de afro-europeus que residem na França, perpassando questões de raça e o rescaldo do colonialismo no país.
Sobre a sua obra mais recente, A outra língua das mulheres, a jornalista Cláudia Lamego a perguntou “que outra língua é essa que a gente precisa conhecer?” Léonora Miano disse que “é uma forma particular de ser mulher, de ter conhecimento próprio de seu poder enquanto mulher”.
“O conhecimento primário que chega a nós, brasileiros, sobre a África Subsaariana é de mulheres que sofrem incisão, são pobres, mas não temos ideia de histórias de liberdade feminina nas quais podemos nos inspirar”, disse Lamego. O livro de Léonora Miano busca desmistificar exatamente isso. A obra narra, por exemplo, histórias de mulheres incentivadas a ter diversos parceiros antes de casar. A outra língua das mulheres é um ensaio sobre feminismo a partir da perspectiva da mulher africana.
“As palavras África, africano, do jeito que compreendemos hoje, fala sobre a maneira com que fomos definidos pela Europa, ou seja, quando dizemos que somos africanos, reconhecemos a visão europeia”, disse Lamego. “Quem tem o direito de nomear o outro senão os pais?”.
A autora faz críticas ao feminismo clássico: “Não é só ser contra o patriarcado, é saber reconhecer o que mulheres ancestrais, como da África Subsaariana, fizeram e construíram. Isso é mais importante do que se opor ao patriarcado”.
Lamego tem outros dois livros publicados no Brasil: Stardust, que narra as dificuldades enfrentadas por uma jovem mãe imigrante ao chegar em um novo país, e Vermelha imperatriz, romance afrofuturista que envolve uma professora e um homem muito poderoso.
“O luto é uma transformação que é imposta, seja por morte ou perda de alguma coisa. A questão é o que a gente vai fazer com o que a vida nos impõe, e isso acaba sendo a nossa história”, disse Natalia Timerman em uma mesa apresentada no sábado (12) sobre o luto como processo literário e emocional entre com os escritores Daniel Dornelas e João Anzanello Carrascoza, mediada por Leonardo Neto.
O luto é um processo de transformação e uma experiência universal. A escritora e psiquiatra Natalia Timerman revelou no encontro que começou a escrever o livro As pequenas chances, publicado pela Todavia, depois que o pai morreu. “Depois que a perda estava dada, me vieram as perguntas o que faço, quem eu sou, e o que tive que fazer foi escrever”, disse Timerman. Ela escreveu dois terços do livro dois meses depois que o pai faleceu. “Foi visceral. Escrevi chorando. Vivi o luto escrevendo.” Depois de três anos, voltou a trabalhar na obra. “O livro não é só sobre a morte do meu pai, falar de uma dor pessoal é algo que provoca um encontro coletivo”, disse.
Na infância, o grande questionamento de Daniel Dornelas foi a morte baseada nas experiências com o irmão gêmeo que tinha uma síndrome rara – e morreu há cinco meses – e com a avó que também faleceu. “Quando me dei conta disso, passei a deixar de viver pelo medo de morrer”, revelou o escritor e estudante de medicina. Dornelas lançou na Flip seu primeiro livro, Para morrer como um passarinho, pela Editora Oficina Raquel. A obra de crônicas aborda temas como a finitude da vida, o luto e os cuidados paliativos a partir de vivências familiares do autor e de um serviço de cuidado paliativo do SUS que atuou no interior de Minas Gerais.
Já João Anzanello Carrascoza, autor de O céu implacável, publicado pela Alfaguara, aborda a experiência do viver a partir de um romance de um homem de sessenta anos que pela primeira vez encara a solidão na velhice. “Na literatura, a gente primeiro escreve para se abraçar, mas a gente pode transformar isso em uma história que toca o outro”, disse o escritor. O autor é vencedor dos prêmios Jabuti, Fundação Biblioteca Nacional, APCA e Candango. “No luto, às vezes o outro não pode fazer nada senão estar conosco”, encerrou Carrascoza.
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