Parte inescapável da experiência humana, o luto é tarefa dura de se descrever. Esse ano li dois livros de autores estreantes brasileiros que encararam o desafio com sensibilidade.
Em O céu no meio da cara, uma necromaquiadora se vê diante da tarefa mais difícil de sua vida: preparar o corpo de sua mãe, morta repentinamente, para o velório. Na antessala da funerária, sua avó enfrenta a ideia de enterrar a filha. Enquanto atravessam o dia, avó e neta reviram suas memórias e obsessões, tentando encontrar, no passado, alicerces para um futuro inimaginável.
Morte e leveza se costuram com precisão no romance de estreia de Júlia Portes – finalista do Prêmio Jabuti de Literatura deste ano, no eixo Inovação. Nas elaborações da filha Laura e da avó Carmelita, há percepções ácidas sobre nossos ritos de morte, e uma atenção cuidadosa para as pequenas experiências da vida.
Especialmente comoventes são as memórias de Carmelita, da vida calejada pela relação tumultuada com a cidade em que nasceu, no noroeste de Minas Gerais. Na pequena Manduim, há “uma rua que vai, outra que volta e outra que a gente fica na dúvida”. É um lugar, como Portes descreve, que “de tão invisível poderia ser o inconsciente de um país”. Na busca desesperada por refúgio e propósito, a mente de Carmelita volta a Manduim e se reencontra com os fantasmas guardados por lá. Terminei o livro envolvida pelo desejo de tomar um café com as personagens, de modo a encontrar reflexos de minhas próprias loucuras no luto.
Em Triste não é ao certo a palavra, do também estreante Gabriel Abreu, uma caixa de papelão esquecida no topo da estante vira um tesouro nas mãos de G. – o protagonista e narrador. Lá, um diário, centenas de fotografias e sessenta e oito cartas são matéria-prima para a reconstrução da voz de sua mãe, cuja mente há muito fora acometida por uma doença neurodegenerativa.
Ao longo do romance, G. compartilha estudos insistentes desses arquivos – que vão de bulas de remédios a mapas astrais – e nos deixa espiar sua busca pela conversa impossível entre mãe e filho. Cria-se uma intimidade inquieta com o personagem: ora somos intrusos, ora confidentes. Espectadores de um processo de elaboração de luto ainda em curso, dividimos as tentativas de criar sentido e sensação. O debruçar do personagem se torna o do leitor, e o contato com os documentos e fotografias nos permite desenhar diálogos além daqueles encontrados pelo narrador. Desde que terminei o livro, cultivo a vontade de conviver com meus arquivos, com as caixas empoeiradas no armário, e de continuar reimaginando minhas memórias e relações.
“Escrevo para dizer que encontrei o caderno dentro da caixa no topo da estante e que ainda me lembro de você. Que você sobrevive, mesmo que não saiba disso. […] Escrevo e envio esta carta para você para tentar reencontrar, em minha própria voz, a tua.”
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