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As melhores leituras de 2023

A equipe da piauí comenta alguns livros marcantes do ano que termina

21 dez 2023_14h03
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Criar narrativas ficcionais a partir da trajetória de figurões da história da ciência é um método recorrente do escritor chileno Benjamín Labatut, de 43 anos. Ele já tinha lançado mão do recurso em Quando deixamos de entender o mundo, de 2020, lançado no Brasil pela Todavia em 2022. Ali, pôs em cena Werner Heisenberg, Erwin Schrödinger e outros pesquisadores em relatos que exploravam e entrelaçavam não só suas realizações científicas, mas também suas contradições e fantasmas interiores. Em Maniac, que saiu em novembro de 2023 pela mesma editora, Labatut adotou com sucesso a mesma receita, agora numa narrativa de maior fôlego. 

Desta vez, a história gira em torno de John von Neumann, matemático húngaro que se naturalizou americano depois de sair da Europa no período entre guerras. Von Neumann deu contribuições fundamentais para o desenvolvimento dos computadores e da inteligência artificial, para a teoria dos jogos, adotada por várias disciplinas, para a mecânica quântica e vários outros campos. Participou ainda do desenvolvimento da bomba de hidrogênio pelos Estados Unidos no Projeto Manhattan – Maniac é o acrônimo em inglês para “Analisador matemático, integrador numérico e computador”, uma máquina que von Neumann ajudou a construir e que foi usada nos cálculos por trás da bomba H.

Em Maniac, Labatut recorre a uma estratégia narrativa engenhosa que lhe permite retratar o protagonista nas muitas dimensões de sua vida pessoal e profissional. Cada capítulo é narrado por um personagem – real – diferente, sempre alguém próximo de von Neumann: seus colegas, professores e subordinados, o melhor amigo, a filha, as duas esposas. O conjunto oferece um retrato cubista que realça a complexidade do personagem: o von Neumann que se depreende desse caleidoscópio de relatos é tanto um matemático brilhante de talento incomparável quanto um pai ausente, um marido desleixado ou um cientista por vezes inescrupuloso.

Como já fizera em Quando deixamos de entender o mundo, o escritor chileno usa as tormentas do protagonista para lançar reflexões provocadoras sobre a ciência e suas implicações. O von Neumann de Labatut é uma figura assombrada por dúvidas sobre os limites da matemática para descrever a realidade, a possibilidade de se modelar a motivação humana, e a replicação de entidades biológicas.

Em 2016, uma inteligência artificial desenvolvida por um prodígio da ciência da computação obcecado com o trabalho de von Neumann derrotou Lee Sedol, um dos maiores jogadores contemporâneos de go – um jogo de tabuleiro milenar criado na China que é mais complexo que o xadrez em vários aspectos. O episódio é matéria-prima para a parte final do livro, ambientada seis décadas após a morte de von Neumann. O livro termina com um relato instigante que discute a capacidade de as máquinas emularem a criatividade humana. Romance que prende o leitor ao longo de 354 páginas, Maniac reforça o lugar de Benjamín Labatut entre os grandes da ficção latino-americana contemporânea.


 

 

A mais recôndita memória dos homens, do escritor senegalês Mohamed Mbougar Sarr, é um livro delicioso, feito de várias histórias que correm como afluentes e vão dando corpo ao rio principal: uma engenhosa declaração de amor à literatura.

O fio que amarra a ideia central é a saga de um jovem escritor senegalês que descobre um livro raro tão bom, mas tão bom, que tem o poder de subjugar seus leitores. Sai, então, em busca dos rastros de seu autor, um conterrâneo que, humilhado por críticos franceses, passa a vagar por vários lugares do mundo como um ser fantasmagórico, sedutor, até meio maligno – uma história que faz referências ao caso real do escritor maliano Yambo Ouologuem, premiado na França nos anos 1960, mas proscrito depois de uma acusação de plágio.

Esse fio condutor trança, de maneira vertiginosa, outras histórias. Há um triângulo amoroso entre uma linda mulher e dois irmãos gêmeos senegaleses – um deles encantado pela cultura europeia, o outro com os dois pés muito bem fincados nas tradições locais. Aparecem jovens escritores africanos vagando por Paris, acossados pela angústia de escrever e atormentados pela dúvida sobre o que é se render à cultura europeia. Emergem dilemas entre personagens que se julgavam assimilados a outras culturas, até que são submetidos a violências. Surgem histórias de esperanças coletivas num momento de ebulição política no Senegal. E fica posta uma discussão sobre o que é plágio e o que é referência na literatura – onde está, afinal de contas, a singularidade na enorme nuvem do legado cultural – e sobre como a brutal herança colonialista influencia nessa definição.

Esse caleidoscópio, todo feito de metáforas da literatura, é empacotado numa escrita que brinca com escolas literárias, sobretudo o realismo mágico, e homenageia autores, principalmente o chileno Roberto Bolaño. O livro ganhou em 2021 o prêmio Goncourt, o mais prestigioso da língua francesa. A partir daí, levou o mundo para dentro de sua apaixonada jornada literária. 


 

 

“Tudo está como sempre esteve, nada mudou, mas assim mesmo tudo mudou, ela pensa, porque depois que ele desapareceu e nunca mais voltou, nada mais foi o mesmo, ela simplesmente está aqui, porém sem estar aqui …” Assim, com esta precisa descrição da dor da ausência, começa É a Ales, do norueguês Jon Fosse, Nobel de literatura em 2023.

Publicado em 2003 e lançado agora no Brasil, É a Ales é a história de um homem que sai no seu barco para nunca mais voltar, e de sua mulher que há 23 anos espera pela sua volta. O cenário é sempre o mesmo. Ela se movimenta da janela para o banco da sala, do banco para janela, refletindo sobre o desaparecimento do marido, com momentos de sobressalto diante da sensação da sua improvável chegada.

Nesse exíguo espaço em que ela se movimenta, se desenrolam histórias de quatro gerações de uma mesma família – histórias que se mesclam umas nas outras, com suas dores, seus traumas, suas pequenas alegrias. Um passado e um presente que se fundem e se repetem tragicamente.

A narrativa é potente e inovadora. Ela se dá sem pausas. As vozes dos personagens interferem umas nas outras incessantemente, como o movimento das ondas de um mar tormentoso. Mar, onde, na história de Fosse, vida e morte se embaralham todo o tempo. 

O fascinante é que o autor não se vale de palavras grandiosas para descrever a intensidade dos sentimentos. “A alegria levou-os um na direção um do outro, como se fosse uma coisa que tivesse estado ausente e faltado durante a vida inteira, mas agora estava lá, foi esse o sentimento quando os dois se encontraram pela primeira vez.” Da mesma forma, o horror imenso do desaparecimento repentino é também expressado de forma contida. “Ele simplesmente nunca mais voltou, nunca mais voltou para sempre, mas o que foi que ele disse antes de sair no dia em que nunca mais voltou?” Pequenos gestos sugerem sentimentos potentes. “E ele segura a alça da sacola de compras e então a Vó pousa um par de dedos sobre os dedos frios dele e assim os dois levam a sacola de compras juntos.” 

Essa é a linguagem de Fosse. Belíssima, mas sempre contida. Com pouco mais de cem páginas, É a Ales é uma pequena obra-prima. 


 

 

Como já indica o subtítulo do livro, o primeiro achado de Treze: a política de rua de Lula a Dilma está na inversão de perspectiva. Em vez de ver junho de 2013 como ponto de partida de um roteiro que culminaria, cinco anos mais tarde, na eleição de Jair Bolsonaro, a socióloga Angela Alonso põe os olhos no retrovisor para acompanhar “como se chegou lá”. 

Na contramão da imensa maioria das análises, portanto, Alonso se debruça sobre a gestação, lenta, sinuosa, complexa e muitas vezes invisível que pariu nas ruas aquele bicho de sete cabeças, cuja paternidade é até hoje, mais de dez anos depois, motivo de discussões.

A tese da autora, que ela anuncia logo nas primeiras páginas – e trata de provar, amparada por uma pesquisa documental meticulosa e exaustiva –, é que junho de 2013 foi “várias mobilizações simultâneas”. Alonso resume sua tese na imagem do “mosaico”. À primeira vista pode parecer pouco, mas tem grande efeito desmistificador. 

Conforme o livro avança, vão se dissolvendo, ou se relativizando, quatro grandes linhas interpretativas sobre junho, formuladas ainda sob efeito do calor das ruas. Alonso as enumera: primeiro, a ideia de que as revoltas exprimiam expectativas crescentes da população, enunciada por Lula na frase “o povo tem pão e agora quer manteiga”. Em seguida, a avaliação de que as manifestações expressavam a “crise de representação” da política, ou a crise das engrenagens da democracia representativa. A essa leitura se associou uma terceira, de acordo com a qual as ruas haviam sido tomadas por uma “nova esquerda”, cujo horizonte utópico e energia social fazia lembrar Maio de 1968 ou mesmo a Comuna de Paris, de 1871 – de onde a expressão “jornadas de junho”, usada por intelectuais e jornalistas para descrever o que lhes parecia ser uma grande esperança. Por fim, a quarta tese citada por Alonso é a do “sequestro da mobilização de esquerda pela direita”, surgida mais para o fim daquele mês, quando a força do verde-amarelo havia se imposto nas ruas.

Ao defender que “as manifestações não configuraram um movimento social unificado, mas um ciclo de protestos, composto de muitos movimentos, de orientações distintas, agendas próprias (e mesmo opostas), que foram às ruas em simultâneo, numa justaposição”, a autora de Treze acrescenta que a única coisa em comum entre todos era o “alvo”: “A contestação às políticas dos governos do PT.”

O livro então se ocupa de rastrear detidamente as insatisfações que foram tomando corpo, à esquerda e à direita, ao longo dos governos petistas, organizando-as em três grandes campos, ou “zonas de conflito”: em torno da redistribuição de recursos públicos (programas de transferência de renda, por exemplo); em torno dos princípios de orientação moral da vida coletiva e do regramento da vida privada (corrupção e aborto, por exemplo); e em torno dos limites do uso da força pelo Estado (políticas de segurança pública e de reparação dos crimes da ditadura, por exemplo).

Pouco visíveis ou pouco expressivos durante os mandatos de Lula, os protestos públicos ganharam tração sob Dilma. A rua, diz a autora, “que fora exclusividade da esquerda por décadas, passou a ser disputada pelo lado direito”. Um dos méritos do livro é mostrar como foi se formando, por diferentes caminhos, já ao longo da primeira década do século, o que Alonso chama de “campo patriótico”. A imprensa e os estudiosos tiveram dificuldade em identificá-lo mesmo durante as manifestações de junho. Cito uma passagem que ilumina isso: 

“Desconsiderados como parte de um campo político legítimo e complexo, movimentos, novos e antigos, protestando à direita do governo ficaram sem nome, nem crédito. Dado por amorfo, nem se buscaram suas lideranças, negligenciadas tanto pelas autoridades nas negociações quanto nas entrevistas de imprensa. O campo patriótico na rua desde o início do ciclo – e mesmo desde antes de 2013 – foi o ponto cego das leituras de Junho. E seria seu ponto de fuga.”

Às vésperas da conclusão do primeiro ano do terceiro mandato de Lula, a rua está em baixa, numa espécie de hibernação, depois da traumática tentativa de golpe de Estado em janeiro. Boa parte da atenção e da energia do governo e de outras instituições da república ainda se dedica a reparar os estragos daquele dia. Essa é uma ferida aberta no país que está longe de cicatrizar. Prestar atenção ao rumor das ruas, mesmo quando elas parecem não dizer muita coisa, é uma das lições que os democratas, agora mais do que escaldados, devem guardar deste belíssimo Treze.   


 

 

Comprei o livro de presente para minha namorada e, mal-educado, comecei a ler antes dela. Eu não tinha particular interesse pela obra de Édouard Manet ou pela pintura francesa do século XIX, mas, fora o prefácio e o posfácio, o livro não trata disso. É um compilado de cartas que Manet escreveu para a família quando viajou ao Rio de Janeiro a bordo de um navio-escola. Tinha 17 anos, ainda não pintava, queria ser marinheiro – por isso a viagem. A bordo do navio, tinha aulas de matemática, jogava damas e aprendia sobre a vida de marujo. O trajeto até o Brasil dura cerca de quarenta dias, ao longo dos quais Manet faz observações banais, divertidas e frequentemente mal-humoradas sobre a vida no mar. 

As cartas foram compiladas em um livro pela primeira vez em 1928, e agora ganharam uma reedição pela editora Ercolano. O projeto gráfico, em tons marítimos, é muito bonito. Para o leitor, pouco importa que Manet seja Manet. O diário causa certo fascínio porque serve de janela para uma época que, embora não esteja tão distante assim, parecia ainda ser regulada por forças da tradição e do misticismo. O tempo é lento. As figuras do navio – o capitão, sr. Besson, “sempre bem educado e amável”; o imediato, “uma verdadeira besta, um lobo do mar”; os grumetes “encardidos” –, têm um ar romântico, fantasioso. A vida é permeada por todo tipo de formalidade: barcos pequenos devem, por cortesia, saudar os barcos maiores ao passar por eles (Manet recrimina um brigue espanhol que ignora essa etiqueta); os marujos se preocupam em pintar o navio antes de entrar na Baía de Guanabara, para que ele cause boa impressão; quando cruzam a linha do Equador, dão início a uma cerimônia de batismo fantástica, que envolve um astrólogo, um padre, um barbeiro, um camponês bretão e marujos interpretando o papel de Netuno e do diabo.

A viagem se inicia em dezembro de 1848, dez meses depois da revolução que destronou a monarquia francesa e pôs os burgueses no poder. O assunto aparece de vez em quando nas cartas de Manet, que, preocupado com a figura de Luís Napoleão Bonaparte, sobrinho de Napoleão, escreve para seu primo Jules: “Por favor, só não vá me dizer que ele será nomeado imperador, isso seria bizarro demais.” Eu conto ou vocês contam?

O registro histórico de maior interesse, no entanto, trata do Rio. Manet, um adolescente de família rica, enfastiado com a rotina repetitiva da Marinha e cansado da viagem longuíssima, é pouco generoso ao descrever a cidade que encontra. Disso resulta um retrato caricato, engraçado para nós brasileiros. Os homens são descritos como “indolentes” e sem “muita energia”; e, segundo ele, “ninguém pode ser mais pudica e tola do que uma brasileira”.

Mas, em sua má vontade, Manet conseguiu captar o ar inegavelmente patético do Brasil imperial. Ele descreve as mulheres ricas que passam o dia escondidas em casa, invisíveis, sempre arrumadas, enquanto uma multidão de escravos vaga pelas ruas. Quando não está fazendo elogios protocolares às montanhas e à floresta, Manet é impiedoso. Sobre as igrejas, comenta que “tudo é dourado, tudo é iluminado, mas de mau gosto”; o palácio do imperador é “uma verdadeira biboca, uma coisa mesquinha”; e o exército brasileiro “não passa de algo cômico”. Por mais que possam conter pitadas de arrogância europeia, as espinafradas do jovem francês, distribuídas em frases curtas, resultam numa leitura prazerosa.


 

 

Em setembro de 2023, a funkeira Anitta se apresentou no palco do Video Music Awards cantando funk carioca. Naquela noite, o ritmo que ganhou vida nos bailes frequentados por negros da periferia do Rio de Janeiro estava no topo do mundo. Mas, no Brasil, Estado e parte da sociedade ainda enxergam o funk com lentes criminais. No livro O funk na batida: baile, rua e parlamento, lançado pela Edições Sesc, Danilo Cymrot, doutor em direito penal pela USP, conta a saga do funk sob a perspectiva penalista. Na obra, finalista do Prêmio Jabuti de 2023, Cymrot recorre à teoria crítica criminológica para mostrar como o funk foi arrastado pelo poder público para a marginalização, assim como aconteceu com outras manifestações culturais negras, como o samba ou a capoeira. 

Mas O funk na batida é um apontamento cuja qualidade extrapola o interesse da comunidade jurídica. Foge do juridiquês, tem rica pesquisa histórica e revela bastidores saborosos da história do funk. Como, por exemplo, os bailes de corredor, onde jovens funkeiros se dividiam em dois grupos e, por um tempo definido pelo DJ, se enfrentavam em brigas organizadas. Perseguido pelas autoridades e com cobertura midiática sensacionalista, Cymrot conta que o baile de corredor representava uma fração diminuta entre os bailes funk no Rio. E que essas brigas eram o ponto alto das festas: “O tempo [das brigas] era limitado severamente pelos organizadores. Durante o evento, os seguranças reprimiam qualquer esboço de briga, mas quando chegavam ao final, eles se afastavam e ocorria o que se convencionou chamar de ‘quinze minutos de alegria’.”

O autor não confere um olhar romantizado sobre o ritmo. Apresenta o funk em sua pluralidade de manifestações e intenções. Ele está interessado em apontar a seletividade do poder público. E pergunta: Por que as brigas nos bailes funk incomodavam ao ponto de algumas festas serem proibidas, enquanto as brigas nas boates da classe média alta da Zona Sul não eram reprimidas? Por que outros atos criminosos retratados no cinema e na tevê não são perseguidos, como quando aparecem nas letras dos funks proibidões? Cymrot não demora a dar a resposta ao sublinhar o tratamento díspar do Estado e seus critérios de raça e classe: “Há dois níveis de criminalização, ambos fortemente marcados pela seletividade, essa seletividade é movida por interesses de classe em uma sociedade dividida e conflitiva […], o que deve ser considerado crime para um grupo não necessariamente é o mesmo que deve ser considerado para outro.”

Desde o surgimento dos bailes funk, o poder público age para reprimir. DJs chegaram a ser encapuzados e levados para o Departamento de Ordem Política e Social (Dops).  A juventude negra reunida, e orgulhosa de sua identidade, soava como algo ameaçador: “Uma das mais significativas formas de lazer da juventude pobre e negra foi e ainda é sistematicamente reprimida”, diz o autor. Em 2019, enquanto Anitta tocava sua carreira internacional, o DJ Rennan da Penha foi preso e acusado de associação ao tráfico de drogas (e inocentado pelo STJ em junho de 2023), e nove jovens morreram pisoteados num baile funk da favela paulistana de Paraisópolis, durante uma operação policial truculenta.


 

 

Cheguei ao livro Salvar o fogo pela necessidade despertada por Torto arado, de ler mais sobre as histórias de pessoas de origem humilde que vivem longe do litoral. Por mais que essas trajetórias fossem localizadas em territórios distantes de Goiânia, onde nasci, elas lembravam as histórias picadas que sempre ouvi. Se separar dos irmãos para buscar melhores condições de vida, por exemplo. Não voltar ou reencontrar muito tarde sua família – no caso do meu avô materno, José Francisco, só depois de aproximadamente três décadas, por insistência da mineiridade da minha avó, Ilda.

Também me influenciou na chegada ao livro o zum-zum-pá criado pela publicação de uma resenha de Lígia G. Diniz na revista Quatro Cinco Um.

Salvar o fogo demora mais a engatar do que Torto arado, que já no primeiro capítulo pega o leitor e a leitora. No caso do livro mais recente, o desenrolar da figura de Luzia foi responsável por minha aproximação. A vontade dela de ir embora, casada, na juventude com um pretendente promissor, e o pesadelo em que esse suposto amor se converte; a intuição que a liga a uma espiritualidade que não pode mais existir, frente a uma estrutura de poder católica que se impõe; a corcunda que a faz, ainda mais, alvo e diferença. 

As dores de Luzia são compreensíveis, mas ela é uma personagem complexa, com algumas características que às vezes repelem. A amargura que vem com seu cuidado, por exemplo; ou sua submissão, sempre acompanhada de uma dureza que serve à mímica de ser parte de uma “elite”, mesmo que seja tida como um fantasma. Há também a confiança que se faz cegueira e, de novo, gera o abuso.

Mas Luzia muda, solta os cabelos crespos que viviam represados. Sai do encarceramento doloroso. Talvez o desfecho do livro seja previsível, mas era disso mesmo que eu precisava, como leitora. Alguém para me dizer que ser quem não se é de fato é um fardo muito pesado para se carregar pela vida inteira. É preciso salvar a lava do vulcão, em que o artista plástico Leonilson (1957-93) construiu seu autorretrato. Algo que parece muito diferente do fogo de Vieira, que faz questão de levar em conta as urgências cotidianas da vida. Mas os dois, ao final, são parecidos quando tomados como combustível para assumir a controvérsia gigante que é ser sincero consigo mesmo. 

Leia um trecho do livro, publicado na edição da piauí de março de 2023.


 

 

Paixão simples, escrito pela ganhadora do Prêmio Nobel Annie Ernaux, foi lançado na França em 1991, mas, exceto por alguns elementos que delatam o anacronismo da época – como a falta de um telefone celular –, poderia ser uma obra recente. Ao contrário da maior parte de seus romances, em que ela evoca acontecimentos do passado usando um estilo quase jornalístico para falar de si, Paixão simples é um mergulho atemporal e psicanalítico na obsessão vivida durante um caso amoroso. Não há passado, presente ou futuro. Apenas a objetividade sociológica e o rigor descritivo para narrar todas as fases da obsessão e do desejo, até eles se esvanecerem, em razão da separação, dois anos depois de seu início.

A história é autobiográfica. Uma escritora de cinquenta e poucos anos, divorciada, com dois filhos crescidos, se envolve com um homem casado. Ele é descrito apenas por uma inicial (A.) e poucas características (certa semelhança com o ator Alain Delon e ser originário do Leste europeu). À parte disso, tudo é sobre ela, sua obsessão e sua espera. Os encontros sempre se dão em sua casa, no subúrbio de Paris, de acordo com a disponibilidade de A., que telefona avisando quando poderá ir. A autora parece confortável em sua passividade. Não há questionamentos nem cobranças, tampouco saídas em público, jantares ou cinema. A espera pela ligação se torna a vida da escritora. Sua rotina enquanto aguarda o próximo encontro (programas familiares, amigos, vida acadêmica) ganha um tom opaco, enquanto a ansiedade pela chegada do grande dia torna-se quase tão prazerosa quanto o ato sexual. 

A autora não se justifica ou dá explicações. Nem julga a si mesma quando, num rompante de desespero, promete dar 200 francos à Unicef caso o destino fizesse com que A. fosse vê-la antes do previsto. Com a precisão de uma repórter, ela se limita a descrever a obsessão. Não fala de amor ou de um futuro com A. Um dos romances mais lidos da França na ocasião de seu lançamento, Paixão simples foi publicado no Brasil primeiro pela editora Objetiva, na década de 1990. Em 2023, foi relançado pela Fósforo, que passou a representar a escritora pouco antes de ela ganhar o Nobel, em 2022. 

Também em 2023, a Fósforo traduziu A outra filha, romance em que Ernaux usa o recurso narrativo mais frequente em sua obra: o relato descritivo de seu próprio passado, embora, desta vez, a autora recorra ainda mais à psicanálise do que em Paixão simples e seus outros escritos traduzidos no Brasil. 

Ela conta sua relação com sua irmã Ginette, que não chegou a conhecer porque morreu aos seis anos, vítima de difteria, antes do nascimento da autora. Aos dez anos, Ernaux descobriu por acaso a existência da irmã durante um diálogo descuidado de sua mãe com uma cliente do café administrado pela família, num pequeno vilarejo da Normandia. A partir da descoberta, ela passa a viver tal como um duplo da irmã morta, como se ambas fossem indissociáveis, embora completamente estranhas uma à outra. Numa carta à irmã, ela tece hipóteses para justificar o ocorrido. Uma delas é o sacrifício: Ginette ter morrido para que ela pudesse nascer, já que os pais estavam decididos a ter apenas um filho. Ou ainda: para que ela pudesse escrever (“Eu não escrevo porque você está morta. Você morreu para que eu escreva, isso faz uma grande diferença”). 

Como a autora jamais ousou tocar no assunto com os pais, nem mesmo adulta, depois de ter se tornado mãe, toda história se constrói com base em observações e análises de sua infância. Por um comentário feito pela mãe à cliente, “ela era mais boazinha que essa aí”, a autora traça o perfil da irmã como um mito que ela jamais alcançaria, uma santa, estabelecendo frequentemente uma competição da qual ela sairia invariavelmente perdedora. Em outros momentos, constata sentir-se mais forte e viva por saber que ela, sim, sobreviveu, enquanto Ginette, não.

A ausência de Ginette dita a relação da autora com os pais, e a própria relação do casal, que ela acredita só existir em razão da dor em comum que partilham. Em A vergonha, lançado em 2022, ela descreve o episódio de violência em que o pai quase matara a mãe, depois de uma discussão. Em A outra filha, ela vai além: só não a matou por causa da irmã morta.


 

 

Ler a biografia de um autor estreante cuja história de vida não é pública poderia ser pouco convidativo. No entanto, o efeito em O que é meu é justamente o contrário. Filho de um caminhoneiro e uma dona de casa, o professor universitário José Henrique Bortoluci teve a sua infância e adolescência no interior paulista preenchidas pela ausência física – e depois com os causos das viagens – do pai caminhoneiro. Foram muitos dias, semanas e meses sem a presença paterna nas mais variadas datas marcantes, fosse uma reunião de escola ou um aniversário, numa era distante em que não havia e-mail nem WhatsApp. As ausências tinham um impacto tremendo enquanto o filho crescia imerso em livros – ele venceu olimpíadas escolares, ingressou na faculdade e fez doutorado pela Universidade de Michigan.

Na vida adulta, Bortoluci quis investigar a sua própria história e preencher os vazios causados pelo ofício do pai. À medida que gravava as entrevistas com seu pai, feitas na mesma casa onde nasceu e cresceu em Jaú, o autor percebeu que mergulhar na vida de um caminhoneiro com cinco décadas de trabalho era também conhecer a história de um Brasil que se desenvolveu percorrendo as estradas de rodagem. Da boleia, seu Didi testemunhou o impacto da ditadura militar com sua promessa de progresso econômico, a construção da Transamazônica, a destruição de biomas naturais – momentos históricos vivenciados imerso em sua própria solidão. O livro O que é meu fala também de uma categoria que, nos últimos tempos, aderiu em peso ao bolsonarismo. No meio da série de entrevistas feitas com o pai, veio a descoberta do câncer de Didi. Exames, tratamento e avanço da doença pavimentaram uma estrada de carinho que aproximou pai e filho.

Bortoluci escreve muito bem e aborda de forma natural e bem amarrada um dos temas mais pulsantes do momento, a trânsfuga de classe, quando alguém vindo de um ambiente pobre ascende pela educação. Mas o autor não olha apenas para dentro de si – a história do acadêmico e do caminhoneiro é também uma história do país. “Palavras são estradas. É com elas que conectamos os pontos entre o presente e um passado que não podemos mais acessar”, escreveu ele. As suas palavras, assim como o caminhão de seu pai, rodaram bastante. 

O que é meu já foi vendido para mais de dez editoras no exterior e, no Brasil, um mês depois do lançamento em março deste ano, já foi para a sua primeira reimpressão. Eu mesmo perdi a conta de quantos exemplares comprei para presentear meus amigos. O sucesso fez o autor tomar a decisão de ser escritor em tempo integral, deixando de lecionar na Fundação Getúlio Vargas. Em novembro, tendo testemunhado o sucesso de seu filho, Didi morreu de câncer, fazendo com isso sua última viagem.  

Leia um trecho do livro, publicado na edição da piauí de fevereiro de 2023.


 

 

“Em Mata doce, o tempo não permitia distanciamentos. Tendo ou não alguém para ouvir histórias, a própria geografia do lajedo, da mata, das estradas ajeitava enredos.”

Uma das melhores leituras que fiz neste ano de 2023 foi a do livro Mata doce, da escritora baiana Luciany Aparecida. É o primeiro romance da autora, que já publicou outros livros sob o nome de Ruth Ducaso – que ela não considera um pseudônimo, mas um projeto estético-político.

Mata doce dá nome a um vilarejo situado no interior da Bahia. Somos introduzidos às histórias de seus habitantes por meio de Maria Teresa da Vazante, matadora de bois e datilógrafa, filha adotiva de Mariinha e de Tuninha. Conhecemos Maria Teresa a partir de seu rebatismo, já que logo nas primeiras páginas do romance ela comunica: “Agora sou Filinha Mata-Boi.” A narrativa irrompe na dureza da ação, enquanto Maria Teresa assume o papel que, tradicionalmente, pertencia aos homens da região. 

Todos os personagens são negros, com exceção do coronel Gerônimo Amâncio, o primeiro a duvidar que Maria Teresa, cria de duas mulheres, pudesse dar conta de dar fim aos bois. Apesar da presença de personagens masculinos, é uma história essencialmente matriarcal, que se materializa na existência da própria Maria Teresa, da professora Mariinha, da travesti idosa Tuninha, da ex-prostituta Lai, entre outras. 

A partir do velho casarão onde moram as três principais personagens, navegamos na história familiar (aqui, família assume uma abordagem nada tradicionalista) que, cercada pela memória, expressa traumas e lutos, mas também beleza e leveza. O livro nos transporta para essa atmosfera rural e interiorana da Bahia, que lembra, sobretudo pela ambientação, o celebrado Torto arado, de Itamar Vieira Junior. O livro de Luciany apresenta uma narrativa épica que vale ser lida e apreciada, trazendo um belo retrato da literatura que está sendo produzida hoje no país.


 

 

Em uma inspeção pela fábrica de carros elétricos da Tesla, Elon Musk se aproxima de um engenheiro na linha de produção e começa a pressioná-lo.

– Ei, isso aqui não está alinhado. Você que fez isso?

O funcionário hesita. Musk prossegue: 

– Você que fez essa porra?

Confuso e assustado, o rapaz se atrapalha na resposta. 

– Você é um idiota – diz Musk. – Caia fora daqui e não volte mais.

A cena acima é relatada no livro Elon Musk, biografia escrita por Walter Isaacson. Ela resume o estilo do bilionário que emergiu do setor de tecnologia para se tornar uma figura celebrada, ou odiada, em escala mundial.  

Musk aparenta ter aversão ao convívio social, uma característica relacionada, segundo Isaacson, à Síndrome de Asperger – associada ao espectro do autismo e conhecida por afetar a capacidade de socialização. Ex-diretor da CNN e ex-editor da revista Time, Isaacson é um biógrafo consagrado, e já havia produzido biografias de Leonardo da Vinci e Steve Jobs. Para escrever o novo livro, ele conviveu com Musk por dois anos, proximidade que pesou no resultado final – a favor do entrevistado. O comportamento tóxico de Musk é constatado em muitos episódios descritos no livro, mas a narrativa tende a minimizar as reações negativas do personagem. A Síndrome de Asperger, por exemplo, é citada com recorrência para justificar os múltiplos surtos de raiva do empresário. Ao relatar discussões agressivas com Musk, a ex-mulher Justine contemporiza: “A determinação e a distância emocional que faziam dele um marido difícil podem ser a razão do sucesso que ele obteve nos negócios.” 

Com uma fortuna estimada em mais de 230 bilhões de dólares, Musk é hoje o homem mais rico do mundo e, pelo perfil de seus negócios, passou a ser um personagem de destaque no cenário geopolítico. Em fevereiro de 2022, nas horas seguintes ao primeiro ataque da Rússia contra a Ucrânia, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky entrou numa chamada por Zoom com Musk. A ofensiva russa interrompeu a distribuição de internet no país. Para restabelecer a comunicação na Ucrânia, a salvação foi a Starlink, rede de satélites criada por Musk para fornecer sinal de internet em todos os pontos do planeta. Musk discutiu a logística da operação diretamente com Zelensky, além de se reportar também ao alto comando das Forças Armadas dos Estados Unidos. 

Com a Starlink, Musk deu uma contribuição decisiva para o funcionamento de serviços públicos ucranianos, como os hospitais, e para a comunicação das tropas de defesa em um país sob bombardeio. Com a Tesla, primeira fabricante de carros elétricos em larga escala nos Estados Unidos, ele ajudou a consolidar um setor que pode contribuir significativamente para o futuro do meio ambiente. A montadora criada por Musk vale hoje 1 trilhão de dólares. 

O livro destaca o pioneirismo de suas empresas. Relata a evolução da SpaceX, a empresa de exploração espacial fundada em 2002, com o modesto objetivo de promover a colonização de Marte. O que inicialmente parecia uma excentricidade se converteu em uma companhia avaliada em 100 bilhões de dólares, que passou a liderar as missões espaciais e firmou contratos bilionários com a Nasa. 

Em suas incursões empresariais, Musk aposta em uma equipe compacta, submetida a uma rotina extenuante de trabalho, prazos exíguos e muita pressão por resultados. Ao comprar o Twitter no ano passado, que passou a se chamar X, ele encontrou uma empresa que se orgulhava de seu ambiente de trabalho acolhedor, marcado pela preocupação com inclusão e diversidade. Uma premissa do Twitter era a valorização da chamada “segurança psicológica” de seus funcionários. Isaacson conta que, ao escutar esse termo, Musk “deu uma risada mordaz”.

Ele demitiu 75% dos funcionários do Twitter nos primeiros meses de operação. Assumiu a plataforma com o plano de abrir espaço para o que chama de “liberdade de expressão”. Na prática, houve uma escalada do discurso de ódio dentro da plataforma, que afugentou a publicidade. Quando usuários passaram a pedir um boicote de anunciantes ao Twitter, o defensor da “liberdade de expressão” reagiu furiosamente, e orientou sua equipe a remover as contas que faziam campanha contra a plataforma.

Isaacson pondera sobre a agressividade de Musk dizendo que ele não tem os “receptores emocionais responsáveis pela gentileza”. Em que pese o tom excessivamente diplomático do autor, o livro consegue expor as contradições marcantes na trajetória de Musk – um homem que expressa sua preocupação com o futuro da humanidade, ao mesmo tempo em que reage com desprezo ou indiferença aos humanos que estão ao seu redor.


 

 

“Os Estados Unidos nada mais são que categorias”, escreve Hilton Als em Garotas brancas, um conjunto de ensaios que o escritor lançou pela primeira vez em 2013, e que agora chega ao Brasil na tradução de Marilene Felinto. O autor caberia dentro de muitas delas: é homem, negro, gay e grande. É um escritor, um dos críticos de maior renome dos Estados Unidos, vencedor do Pulitzer e professor das Universidades da Califórnia e Columbia. Nascido no Brooklyn, mas numa família de Barbados, viveu o pico da Aids nos anos 1980 em Nova York. Seu grupo de amigos incluía Jean-Michel Basquiat. Naquela época, era faminto por amor, “Simone Weil do gueto”, escreve. Em Garotas brancas, Hilton Als faz um esforço intelectual de criação e destruição de categorias, sejam elas de gênero e raça, ou literárias. Seus ensaios borram as linhas entre a ficção e a não ficção, a memória e a crítica.

Ao longo do livro, Als desenvolve uma conceituação elástica de “garotas brancas”, uma categoria menos sociológica do que estética, que talvez possa ser definida como uma sensibilidade, ou a característica daquilo que é visto, mas não tem poder. Ele constrói perfis sofisticados de importantes figuras da cultura americana. Truman Capote vira uma garota branca nessa tipologia, assim como a escritora de romances históricos Flannery O’Connor era também uma garota branca. Malcolm X, Michael Jackson e o comediante Richard Pryor também viram objetos de Als. Nesses perfis, o autor mostra uma imensa capacidade de discutir gênero e raça, e traz perspectivas iluminadoras a respeito dessas temáticas. A brincadeira com o conceito de “garotas brancas” é saborosa, mas não é só aí que mora o ouro.

O forte de Als está na sua engenhosidade literária. O livro é um exemplo de como a escrita de não ficção pode ser criativa e instigante. Ao longo dos capítulos, Als testa os limites do gênero de maneira cada vez mais corajosa. Um dos pontos altos é o perfil da atriz Louise Brooks. Símbolo “flapper”, é nela que se pensa quando se fala de atrizes dos anos 1920: o cabelo reto e curto, preto como carvão, com franjinhas rentes às sobrancelhas finíssimas e os lábios pequenos pintados de batom escuro. “Eu sou Louise Brooks, aquela que nenhum homem jamais possuirá”, ele escreve, abrindo o texto. O que se segue é um relato em primeira pessoa na voz da narradora Louise Brooks, uma mulher branca como a neve que durante toda a vida foi abusada, explorada e observada, mas escrito pelo escritor Hilton Als, um homem negro que durante toda a sua vida se sentiu incompreendido e dolorosamente observado. “Eu sou Louise Brooks, aquela que nenhum homem jamais possuirá – nem o biógrafo, nem o cronista, nem o fã. Todos nós somos o produto do sonho de outra pessoa. Eu sei disso desde a infância.”

Por coincidência, em fevereiro, mesmo mês em que Garotas brancas foi lançado no Brasil, a Harper Collins publicou a tradução de Vou te dizer o que penso, de Joan Didion. É Hilton Als, que tem Didion como uma de suas garotas brancas favoritas, quem assina a introdução. “Parte do aspecto notável do trabalho de Didion está relacionada à recusa em fingir que não existe”, escreve Als. A observação poderia ser aplicada também ao seu próprio trabalho. Cada frase presente em Garotas brancas é um testamento da existência do autor. É impossível ignorá-lo. Afinal, como ele escreve no primeiro ensaio do livro, “o que é escrever se não apenas um ‘eu’ insistindo no seu ponto de vista?”


 

 

Num dia de setembro de 1986, um grupo de representantes dos partidos chilenos de esquerda se encontrou na antiga estação ferroviária de Mapocho, no coração de Santiago, para debater a oposição ao regime de Augusto Pinochet. No meio de homens e mulheres de ternos e cabelos engomados, surgiu no palanque uma figura andrógina, usando salto alto, com a foice e o martelo pintados em metade do rosto. Ela se apresentou como Pedro, chegou perto do microfone e proclamou um manifesto: “Fico puto com a injustiça, e desconfio dessa dança democrática. Mas não venha me falar de proletariado, porque ser bicha e pobre é pior.” Até o fim daquela década, o manifesto intitulado “Falo pela minha diferença” faria de sua autora, Pedro Lemebel, uma figura conhecida – e, em certo grau, rejeitada – nos meios literário e artístico do Chile. Ela escreveu centenas de crônicas a partir de então, algumas das quais foram reunidas na antologia Poco hombre, da Zahar – seu primeiro livro traduzido para o português. 

Nascida em 1952 num dos bairros mais pobres de Santiago, Lemebel estudou forjaria de metais e fabricação de móveis antes de atuar brevemente como professora de artes. Por revelar sua homossexualidade, foi demitida dos dois colégios onde trabalhava. Pela mesma razão, não foi aceita pela esquerda chilena. Criada numa casa sem livros, começou a escrever em oficinas organizadas pela Sociedade de Escritores Chilenos, as quais frequentava, diria mais tarde, porque havia biscoitos e café. “Lá também tinha vinho e homens bonitos.” Mais do que ambição literária, ela foi motivada “pelo desejo dessas outras coisas, pelas fomes de todos os tipos”. 

Embora eu tenha familiaridade com obras e autores queer brasileiros e estrangeiros, Lemebel nunca passou nem perto do meu radar, até a publicação de Poco hombre no Brasil, em maio deste ano. Delirei diante de textos que posicionam a autora no lado oposto de establishments de todos os tipos: ela repeliu a ditadura  de Pinochet, mas também a resistência marxista que condenava a homossexualidade; apontou o equívoco do consenso neoliberal por trás do milagre econômico do Chile, e culpou ativistas LGBT por estarem transformando o sofrimento e as vidas de pessoas queer em mercadorias. Numa crônica,  lamenta que um grupo de amigas “bichas-loucas” tenha desaparecido misteriosamente depois do golpe. Em outro trecho do livro que beira a historiografia, ensina que, enquanto moleques ricos dançavam Michael Jackson e assistiam a filmes gringos, havia um outro Chile juvenil onde “ser ripongo era bacana, usar lã peruana era ser dissidente e decente”.

Lemebel morreu em 2015. Geralmente se definia como “travesti”, ou uma “bicha louca”. A causa de sua morte foi um câncer na laringe, o que a impediu de falar em seus últimos dias de vida. Gosto de pensar que a circulação de Poco hombre pode ajudar a realizar um desejo que a escritora exprimiu naquele manifesto lido em setembro de 1986: “Há tantos moleques que vão nascer com uma asinha quebrada. E eu quero que eles voem, companheiro.”


 

 

O mais novo livro do pesquisador e jornalista Bruno Paes Manso retrata um ponto cego de uma sociedade em transformação. A fé e o fuzil narra o crescimento das igrejas neopentecostais e o desenvolvimento do crime organizado no país como dois fenômenos distintos que, no entanto, compõem um mesmo quadro: o da busca por afirmação, ou mesmo sobrevivência, de grupos que ficaram excluídos no processo de urbanização do país no século XX. “Diante dos desvalidos abandonados no meio do caminho por governos frágeis e ineficientes, a própria sociedade precisou descobrir maneiras de atenuar a miséria e sobreviver. Com o passar do tempo, duas soluções foram adotadas para organizar a vida caótica das cidades: a fé e o fuzil”, escreve o autor. 

Situando-se entre o livro-reportagem e o ensaio, o texto de Paes Manso conduz o leitor para dentro desses dois mundos à medida que apresenta e conta a história de personagens como o pastor Edson, Marcelinho, Alexandre, entre outros tantos. Pessoas com quem o próprio autor conviveu ao longo de mais de vinte anos de repórter, focado na temática da segurança pública. 

De acordo com Paes Manso, o novo pensamento pentecostal, difundido de boca em boca, admirador de um Deus guerreiro do Velho Testamento, colocou no diabo a culpa da miséria e da falta de oportunidade, apontando caminhos para os pobres se aceitarem, se transformarem e, com autocontrole, ganharem dinheiro, tornando-se consumidores e cidadãos respeitados. De outro lado, ao menos em São Paulo, o PCC também criou uma nova ordem: atuaria como uma “agência reguladora do mercado do crime, para criar ordem e previsibilidade em um mundo violento e sem governo”. 

Com equilíbrio e amparado por pesquisas nas duas áreas, o autor fala de religião e crime tomando o cuidado de não misturar religião e crime. Em geral, os dois campos de fato não se misturam — com algumas exceções, entre elas o Complexo de Israel, facção criminosa que cresce no Rio de Janeiro apoiando-se num discurso religioso, e casos como o de Valdeci “Colorido”, que Paes Manso também menciona. Aí, sim, a fé e o fuzil se fundem. “Apesar do abismo que separa as visões do crime e da religião, também existiam afinidades relevantes entre as duas esferas, como a defesa da prosperidade e o espírito guerreiro, típico dos que emergiram da miséria. Dependendo das circunstâncias e dos resultados da parceria, desde que certos limites fossem respeitados, ambos os lados podiam se tolerar ou até mesmo se misturar.”

O livro é mais uma contribuição do autor, depois da publicação de A República das Milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro, de 2020, no qual ele descreveu as origens dos grupos milicianos, com um domínio crescente nos bairros cariocas iniciado nos anos 2000. Naquela obra, ele sustenta que a tolerância da sociedade para com os assassinatos cometidos pela polícia empurrou muitos policiais para a carreira no crime. Paes Manso também é autor de A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil, de 2018, em coautoria com Camila Nunes Dias.


 

 

Parte inescapável da experiência humana, o luto é tarefa dura de se descrever. Esse ano li dois livros de autores estreantes brasileiros que encararam o desafio com sensibilidade.

Em O céu no meio da cara, uma necromaquiadora se vê diante da tarefa mais difícil de sua vida: preparar o corpo de sua mãe, morta repentinamente, para o velório. Na antessala da funerária, sua avó enfrenta a ideia de enterrar a filha. Enquanto atravessam o dia, avó e neta reviram suas memórias e obsessões, tentando encontrar, no passado, alicerces para um futuro inimaginável. 

Morte e leveza se costuram com precisão no romance de estreia de Júlia Portes – finalista do Prêmio Jabuti de Literatura deste ano, no eixo Inovação. Nas elaborações da filha Laura e da avó Carmelita, há percepções ácidas sobre nossos ritos de morte, e uma atenção cuidadosa para as pequenas experiências da vida. 

Especialmente comoventes são as memórias de Carmelita, da vida calejada pela relação tumultuada com a cidade em que nasceu, no noroeste de Minas Gerais. Na pequena Manduim, há “uma rua que vai, outra que volta e outra que a gente fica na dúvida”. É um lugar, como Portes descreve, que “de tão invisível poderia ser o inconsciente de um país”. Na busca desesperada por refúgio e propósito, a mente de Carmelita volta a Manduim e se reencontra com os fantasmas guardados por lá. Terminei o livro envolvida pelo desejo de tomar um café com as personagens, de modo a encontrar reflexos de minhas próprias loucuras no luto.

Em Triste não é ao certo a palavra, do também estreante Gabriel Abreu, uma caixa de papelão esquecida no topo da estante vira um tesouro nas mãos de G. – o protagonista e narrador. Lá, um diário, centenas de fotografias e sessenta e oito cartas são matéria-prima para a reconstrução da voz de sua mãe, cuja mente há muito fora acometida por uma doença neurodegenerativa. 

Ao longo do romance, G. compartilha estudos insistentes desses arquivos – que vão de bulas de remédios a mapas astrais – e nos deixa espiar sua busca pela conversa impossível entre mãe e filho. Cria-se uma intimidade inquieta com o personagem: ora somos intrusos, ora confidentes. Espectadores de um processo de elaboração de luto ainda em curso, dividimos as tentativas de criar sentido e sensação. O debruçar do personagem se torna o do leitor, e o contato com os documentos e fotografias nos permite desenhar diálogos além daqueles encontrados pelo narrador. Desde que terminei o livro, cultivo a vontade de conviver com meus arquivos, com as caixas empoeiradas no armário, e de continuar reimaginando minhas memórias e relações. 

“Escrevo para dizer que encontrei o caderno dentro da caixa no topo da estante e que ainda me lembro de você. Que você sobrevive, mesmo que não saiba disso. […] Escrevo e envio esta carta para você para tentar reencontrar, em minha própria voz, a tua.”


 

 

Caminhando com os mortos se passa numa pequena cidade no interior do Brasil, onde uma mulher é queimada viva pela própria família em um ritual religioso sob a justificativa de purificação da alma por não seguir os preceitos divinos. Qualquer semelhança com a Santa Inquisição e o discurso de ódio a partir da doutrinação religiosa não é coincidência. A obra é da escritora e historiadora pernambucana Micheliny Verunschk, também autora de O som do rugido da onça, vencedor do prêmio Jabuti no ano passado. 

Caminhando com os mortos retrata sucessivos episódios de violência que ocorrem no povoado desde que evangélicos se instauraram no local. Eles passaram a cooptar a comunidade, que tem passado indígena e negro, para a crença neopentecostal. O discurso radical do pastor foi capaz de mudar a rotina e arruinar a vida de todo um território. Os assassinatos que ocorrem não são causados apenas pelo fanatismo religioso, mas também pela intolerância com o corpo – em especial de mulheres e de minorias.

Com um tom catártico e um ritmo agitado, o livro perpassa fragmentos do passado e do presente que ajudam a explicar como a realidade daquela cidade mudou tanto depois da chegada do líder religioso. O romance aborda a dor do luto e a importância de manter viva a memória de quem já partiu. É uma história sobre intolerância, lavagem cerebral e feminicídio, além de ser uma denúncia do conservadorismo e da manipulação religiosa no Brasil. A partir de uma narrativa difícil de digerir, Verunschk dá certa esperança quando parafraseia um dito popular na epígrafe: “Se Deus é grande, o mato é maior.”


 

 

Dor fantasma é o nome que se dá à sensação de que um membro amputado continua presente e sensível. Na obra de Rafael Gallo, publicada pela Biblioteca Azul, acompanhamos a fantasmagoria que estrutura a vida do músico Rômulo Castelo, obcecado por apresentar na Europa a peça Rondeau Fantastique, do compositor e pianista austríaco Franz Liszt.

Confiante de que sua tarefa é única – ninguém nunca teria executado o Rondeau como o mestre Liszt o concebera –, Rômulo Castelo vai criando fantasmas ao seu redor: o casamento falido, a indiferença em relação ao filho deficiente, o pai internado num asilo. Tudo é menor e menos importante diante do gigantismo de sua missão. Entretanto, depois de um trágico acidente, a fantasmagoria é invertida: o que era sublimado na vida do músico evanesce, dando lugar à manifestação dolorosa das ausências que ele fizera questão de construir para pavimentar seu projeto, “imensa soma de vésperas”, ideal fantasma. “O grande trunfo na vida dele, Rômulo Castelo – um dos maiores intérpretes de Liszt, prestes a ser o maior –, perdeu-se, deixou de ser música.”

A escrita de Gallo, vencedor do prémio literário José Saramago, é de uma simplicidade que contrasta com a complexidade do célebre autor português a quem o prêmio homenageia. Mas a simplicidade de Gallo serve a um romance denso, contado em três atos. Dor fantasma nos obriga a manter os olhos abertos diante da exposição da pequenez humana frente ao incomensurável e, pior, da dificuldade em se conformar com isso. 


 

 

Recentemente, o crítico e ficcionista argentino Alan Pauls disse que O deserto e sua semente é o livro que ele mais deu de presente. Nunca entendi muito bem esse ritual de escolher uma obra específica e dá-la a muitas pessoas. O gesto superestima nosso poder de influência, e ao mesmo tempo trivializa a relação íntima com o livro amado (o instinto de guardar o livro como um segredo, por exemplo, ou dá-lo à pessoa amada, eu compreendo melhor). Mas para o autor, nada disso importa, claro – livros bons devem ser lidos. E é assim que entendo o gesto de Pauls: como uma política de reparação a Jorge Baron Biza, que escreveu um grande romance, baseado na história trágica de sua família, e, sem testemunhar o alcance que teria, tirou a própria vida. 

O suicídio é uma constante na história da família Barón Biza, descendentes de latifundiários ricos do fim do século XIX, época em que a Argentina era realmente rica. Em certo sentido, o suicídio do autor foi gestado ao longo da história autobiográfica que conta em O deserto e sua semente, agora finalmente disponível em português, na tradução impecável de Sérgio Molina. 

O romance narra os dias, meses, e anos posteriores a um ataque de ácido do seu pai, Aron, um magnata megalomaníaco, contra a sua mãe, Eligia, uma pioneira feminista e ex-secretária de Educação do país (os personagens são baseados em Raúl Barón Biza e Rosa Clotilde Sabattini, pais do autor). Aron desfigura Eligia e se suicida logo após o ataque; Eligia, acompanhada do filho, começa então uma peregrinação por médicos que tentam reconstruir seu rosto. Reconstruir sua identidade é mais difícil. Catorze anos depois do ataque, Eligia também se suicida (uma irmã do autor também tiraria a própria vida). 

Vivemos uma era literária voyeurística e moralmente dúbia, em que romances sobre traumas e vidas difíceis vendem a rodo. É um paradoxo: constantemente expostos a fatos terríveis, desconfiamos das intenções por trás de histórias calculadas para comover. O deserto e sua semente não é esse tipo de romance. O livro foi originalmente publicado em 1998, uma época em que a ironia provavelmente vendia mais do que o trauma. Há um distanciamento do narrador – gélido, mas também recheado de ansiedade. A prosa, pericial, é neuroticamente avessa a qualquer tipo de sentimentalismo. Com uma lupa minuciosa, o narrador não se furta a descrever as cores e novas formas do rosto de sua mãe, e a natureza assimétrica da passagem do tempo depois da agressão brutal, relembrando memórias de sua infância a conta-gotas. É uma escrita nem sempre fácil de digerir, que às vezes roça no obsceno – mas isso é o que ocorre quando se trata um trauma com a sinceridade que merece. 

Quando o livro ficou pronto, várias editoras o recusaram. Jorge Baron Biza (ele assinava livros sem o acento) bancou uma edição pela pequena editora argentina Simurg, mas o livro só ganhou fôlego em 2013, quando a Eterna Cadencia decidiu fazer uma reedição, doze anos depois da morte do autor. Desde então, O deserto e sua semente tem ganhado mais traduções mundo afora.

Leia um trecho do livro, publicado na edição da piauí de setembro 2023.


 

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Bernardo Esteves
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