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Luz no Fim da Quarentena: Variante sul-africana burla vacina

Estudo publicado e revisado demonstrou que eficácia do imunizante da AstraZeneca contra a cepa predominante na África do Sul é igual à do placebo usado na pesquisa: zero

| 26 mar 2021_18h47
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No 64º episódio do podcast Luz no Fim da Quarentena, José Roberto de Toledo e Fernando Reinach detalham o estudo feito na África do Sul que mostrou a ineficácia da vacina da AstraZeneca contra a variante sul-africana e explicam a necessidade de estudos semelhantes serem feitos no Brasil. Ouça o episódio completo aqui.

José Roberto de Toledo: Países que funcionaram como laboratório para as vacinas contra o Sars-CoV-2 estão testando o imunizante em sua população para confirmar se ele também é eficaz contra as variantes que predominam no seu território. Primeiro foi a Inglaterra com a variante de Kent. Agora, a África do Sul divulgou os resultados do experimento com a variante B.1.351. Fernando Reinach conta pra gente qual foi a conclusão dos cientistas africanos e como ela deve ou deveria influenciar a política de saúde pública no Brasil, não só as medidas urgentes, mas também como vai ser a nossa convivência com o coronavírus nos próximos meses e talvez anos. 

Doutor Fernando Reinach, vamos falar de um paper que você me indicou aqui, que foi publicado no New England Journal of Medicine, de um estudo feito na África do Sul por pesquisadores sul-africanos de várias universidades e institutos de pesquisas de lá em parceria com ingleses da Universidade de Oxford e até da AstraZeneca, a empresa que fabrica a vacina, uma das que estão sendo usadas no Brasil. Conta pra gente qual foi o resultado.

Fernando Reinach:  Bom, Toledo, a história é a seguinte: a gente passou o ano de 2020 tentando entender o vírus, e nós chegamos ao fim do ano com meia dúzia de vacinas testadas, aprovadas e prontas para serem usadas no começo de 2021. Em 2020, da parte do vírus, o que ele fez: se espalhou pelo mundo inteiro, matou um monte de gente, acabou com a nossa vida, e a gente estava achando que 2021 ia ser o ano da vingança, porque a gente já tem a vacina e, portanto, era uma questão de vacinar a população. Mas bem na virada de 2020 para 2021, surgiram as novas variantes do vírus, e essas novas variantes se espalham mais rápido, como a gente está vendo aqui no Brasil, produzem mais vírus. A gente também já discutiu a variante inglesa, e a gente já sabe que é mais letal do que a variante original. As principais são a inglesa, a da África do Sul, e a brasileira de Manaus, chamada P.1. Então você começou 2021 com o seguinte problema científico: eu tenho um monte de vacinas que foram geradas contra o vírus original e agora eu tenho novas variantes. Então eu preciso saber se as vacinas que eu estou usando hoje são boas contra as novas variantes e para isso tem dois jeitos de fazer. Tem um jeito rápido e menos preciso que é você estudar os anticorpos presentes no sangue das pessoas que foram já vacinadas ou vacinados pela CoronaVac, com a AstraZeneca, com a Pfizer etc.

José Roberto de Toledo: Que é aquele estudo piloto que foi feito na USP pelo grupo da Ester Sabino com oito pacientes e a CoronaVac, não é isso?

Fernando Reinach: Isso. Então como é que ele funciona: eu pego o anticorpo que está no sangue da pessoa vacinada e vejo se ele é capaz de bloquear a entrada do vírus original e da variante em células humanas, in vitro. Eu vejo que o vírus normalmente mata a célula, quando eu ponho um anticorpo para proteger contra o vírus original, ele protege, e quando eu ponho esse mesmo anticorpo das pessoas vacinadas contra uma variante nova, em todos os casos, diminui a capacidade de bloqueio desses anticorpos. Quer dizer que tem menos anticorpos neutralizantes. Ou seja, variedades novas têm mais facilidade de entrar, e todos os resultados mostram que essa diminuição na quantidade de anticorpos neutralizantes varia muito. Estudo da Ester Sabino mostra que contra uma variante de Manaus, a CoronaVac não bloqueia, a Pfizer a mesma coisa, contra várias variedades diminuiu um pouco mas não muito, ainda bloqueia um pouco. E a dúvida das pessoas sempre é a seguinte: tá bom, então in vitro, em tubo de ensaio, os anticorpos gerados por essa vacina bloqueiam menos as novas variedades. Mas o que isso significa na prática, ou seja, o que significa na população mesmo?

José Roberto de Toledo: E aí não é um estudo imunológico, mas um estudo epidemiológico.

Fernando Reinach: Exatamente, aí você tem que fazer um estudo epidemiológico que é basicamente igual aos estudos de fase 3. Você vacina as pessoas com a vacina que foi feita contra a variedade original e essas pessoas ficam num ambiente onde tem a nova variedade. Você tem um grupo que recebeu placebo, um grupo recebeu a vacina e todos foram submetidos à nova variante, e aí você mede de novo a eficácia. O primeiro estudo desse tipo acabou de sair agora no New England Journal of Medicine. Ele é um estudo onde você tenta saber se a vacina da AstraZeneca consegue proteger as pessoas vacinadas contra a variante da África do Sul. Ou seja, você recalcula a eficácia. Vocês devem lembrar que a eficácia da vacina da AstraZeneca contra as variantes da África do Sul foi publicada em dezembro e foi medida na África do Sul também. Foi emitida no Brasil, na Inglaterra, na África do Sul, e naquela época na África do Sul era menor, mas era por volta de 50% e 60%, dependendo do jeito que você faz as contas, contra o vírus original.

José Roberto de Toledo: Reduziu o risco de a pessoa contrair a doença em cerca de 50 ou 60%.

Fernando Reinach: Agora eles repetiram esse estudo. Então eles pegaram pessoas vacinadas com a AstraZeneca, pessoas que receberam um placebo e compararam a eficácia dessa vacina agora na África do Sul, numa situação onde o vírus que circula na África do Sul agora é praticamente todo a variante da África do Sul. Ou seja, eles repetiram a fase 3, e o resultado é impressionante. Eles demonstraram de maneira cabal que a vacina da AstraZeneca, depois de duas doses, não oferece proteção nenhuma contra casos leves de Covid-19, leves e moderados. Não dá para falar nada sobre os casos graves porque, como sempre, a amostra pequena envolveu 850 pessoas em cada braço, cada grupo, no grupo controle e no grupo vacinado. Então não tem muitos casos graves.

José Roberto de Toledo: É muito impressionante ver os números, né, Fernando, porque, como você já explicou, você vai eliminando pessoas ao longo do estudo para deixar o resultado mais fidedigno possível. Sobraram do lado de quem recebeu placebo 865; 717 não tinham o anticorpo neutralizante e 141 tinham, o que dá proporção aí de 20%, isso no placebo.

Fernando Reinach: Porque essas pessoas já tinham sido infectadas, provavelmente.

José Roberto de Toledo: No outro lado sobraram 884, das quais 750 deram soronegativo e só 130 soropositivo, tem aí uma sobrinha de quatro casos desse lado e sete do outro lado, mas a proporção é ainda menor, é 17% menor do que entre os que receberam a vacina. A proporção de soropositivos é menor do que entre quem recebeu placebo, ou seja, realmente zero, não é nem um pouquinho.

Fernando Reinach: E aí eles viram quantas pessoas foram infectadas, e tal, fizeram as contas todas, como se fosse a fase 3, e chegaram à conclusão que a eficácia da vacina é por volta de 10%. Mas um intervalo de confiança que vai de zero a alguma coisa, e eles escreveram com todas as letras no fim: a vacina da AstraZeneca original simplesmente não protege contra a variante sul-africana. É a primeira demonstração epidemiológica, um estudo de fase 3 bem feito, de que uma variante pode inutilizar totalmente uma vacina.

José Roberto de Toledo: É impressionante para nós aqui, que não estamos vendo a mesma coisa acontecer, que a própria AstraZeneca e a Universidade de Oxford que criaram a vacina participaram ativamente desse estudo e assinam o estudo.

Fernando Reinach: Na verdade, como é que funciona no mundo das vacinas? O fabricante da vacina é responsável por garantir que a vacina funcione. Então, por exemplo, o Butantan chegou lá na Anvisa e falou: Olha aqui meus dados, essa vacina funciona, e a Anvisa deu uma licença emergencial para ser usada no Brasil. Cabe ao produtor da vacina continuar a investigar se a vacina continua a funcionar com as novas variedades. É isso que a Universidade de Oxford e a AstraZeneca fizeram na África do Sul, muito porque a África do Sul, quando teve os resultados preliminares desse estudo lá atrás, eles simplesmente devolveram as vacinas da AstraZeneca dizendo que não funcionava. Comprovaram que aquela queda tinha capacidade de proteção dos anticorpos que tinha no sangue das pessoas e se reflete, na prática, numa perda total da eficácia da vacina. Isso quer dizer que na África do Sul não dá para usar AstraZeneca, e a África do Sul deixou de usar. Isso vai ser uma realidade em todo o mundo. Você vai ter que provar que a vacina da Pfizer e da AstraZeneca, funcionam contra a cepa inglesa. Você vai ter que provar que a CoronaVac e a AstraZeneca funcionam contra a variante brasileira. Ou provar que não funcionam. Então isso vai ser uma constante, e esse ano vão surgir novas variedades. Você vai ter que ver se a vacina ainda funciona contra elas.

José Roberto de Toledo: No caso brasileiro, depois que a gente gravou um dos programas em que a gente tratou desse assunto, o diretor do Butantan veio a público falar que tinha um estudo preliminar com 37 casos dizendo que indicava possivelmente que a CoronaVac protegia contra a variante de Manaus e tal. Mas saiu algum paper, algum estudo sobre isso?

Fernando Reinach: Olha, no caso do Butantan, a gente não tem nem os dados da fase 3 do original. A fase 3 original da vacina da AstraZeneca foi publicada no ano passado. O Butantan terminou os estudos e submeteu os dados da Anvisa também no final do ano passado, mas até hoje a fase 3 do Butantan não foi publicada e os dados imunológicos da CoronaVac no Brasil contra a cepa original também não foram entregues à Anvisa. A gente tem que esperar agora o Butantan publicar os dados da fase 3 e publicar esses dados. O Dimas Covas falou que existem dados de que a CoronaVac vai funcionar contra a variante de Manaus. Isso vale para a AstraZeneca também. A Fiocruz tem que demonstrar que a vacina da AstraZeneca protege contra a P.1. Neste momento estão começando a aparecer novas possibilidades de comprar outras vacinas, de diversificar o tipo de vacina que a gente está usando no Brasil, é muito importante saber qual a eficácia de cada uma dessas vacinas não só contra o vírus original, mas contra cada uma das variantes. E isso vai continuar. Vai ter a P.3, P.4, do jeito que a pandemia está solta no Brasil, vão surgir novas variedades e, para cada variedade, a gente vai ter que saber se a vacina continua funcionando ou não. Nas vacinas de gripe, a gente sabe que elas perdem, e é por isso que a cada ano você tem que fazer uma nova vacina.

José Roberto de Toledo: Agora o Chile está vacinando exclusivamente com CoronaVac e está bem mais adiantado que o Brasil na vacinação. Eles vão ser uma espécie de laboratório para a gente da eficácia da CoronaVac contra a cepa original do vírus, mas lá não tem variante P.1.

Fernando Reinach: Não sei se tem P.1 no Chile. Eu não vi nenhum dado sobre isso, mas você tem o Chile e você tem essa cidade no interior de São Paulo, Serrana. Lá eles estão vacinando a população toda com a CoronaVac, então provavelmente eles vão ter a cidade toda vacinada enquanto as outras cidades em volta vão ter 5% de pessoas vacinadas com as duas doses. E aí você vai poder comparar o que acontece em Serrana. Se você monitorar qual é a variante que está infectando em Serrana e nas cidades vizinhas, você vai ter se dado. O problema disso é que isso vai levar mais dois, três meses. Não adianta a gente saber disso em setembro.

José Roberto de Toledo: Na África do Sul, não. Mas no Brasil o vírus está sendo mais rápido do que os brasileiros.

Fernando Reinach: Exatamente. De certa maneira nós estamos usando duas vacinas que podem ser ótimas contra a nova variedade ou podem não funcionar com essa nova variedade. A gente também não sabe. Ou pode ser alguma coisa no caminho. A responsabilidade de provar que o seu produto ainda funciona é do produtor da vacina, e, se ficar demonstrado que um remédio ou uma vacina não funciona, é responsabilidade da Anvisa cortar a licença. Então de certa maneira a Anvisa tem que exigir esses estudos, os fabricantes têm que produzir esses estudos, de modo que a campanha da vacinação seja feita com vacinas que a gente tem certeza que funciona. O problema no Brasil é que tem uma espécie de um conflito de interesses, porque a CoronaVac é associada ao governo estadual, a Fiocruz é um órgão do governo federal, tem uma briga entre o governo federal e estadual. Então isso permeia e distorce toda a divulgação científica e geração de dados etc.

José Roberto de Toledo: Já que a gente não sabe nada, por enquanto… A gente tem pistas, me corrija se estiver errado, mas a impressão que dá é: só temos CoronaVac e AstraZeneca, uma não funciona contra a variante sul-africana e a outra a gente não sabe contra a variante brasileira. Na dúvida, a gente continua vacinando, mas fique em casa, porque a gente não sabe qual a eficácia e quanto essa vacina reduziu o risco.

Fernando Reinach: O que a gente sabe é que contra a variedade original essas duas vacinas funcionam. Isso é uma verdade científica. Então as verdades científicas têm que ser usadas na prática até prova em contrário. Então o certo é todo mundo se vacinar o mais rápido possível. Mas como a gente sabe que a eficácia dessas vacinas é 50% ou 70% só, de qualquer modo só diminui 50% a chance de você pegar a doença, então você tem que continuar em casa de qualquer modo. Mesmo porque a gente tem uma fração mínima da população vacinada. Eu acho que essa discussão que a gente está tendo aqui não é para ninguém mudar seu comportamento, nada. Eu tomei a vacina, pelo menos duas doses, e tomaria de novo depois de ter lido esse paper. Não tem dúvida. E tomaria a AstraZeneca também, porque ninguém sabe se ela funciona ou não contra a cepa brasileira. Isso tem a função mais de alertar que esse é o universo, esse é o ambiente que a gente vai viver em 2021, onde cada vacina vai ter que ser revalidada para cada nova variedade. Isso explica por que os países que estão vacinando e não têm as novas variedades estão fazendo de tudo para não deixar as variedades chegarem lá. Se você tiver certeza de que a vacina que você está usando funciona contra a nova variedade, não precisaria ser tão rígido em fechar as fronteiras. Como você tem dúvida se funciona ou não, melhor é não deixar a variedade chegar lá. A Inglaterra, que está usando extensivamente a vacina da AstraZeneca, não pode se dar ao luxo de ter um espalhamento da cepa da África do Sul na Inglaterra porque eles já sabem que a vacina que eles estão usando não funciona para essa variante.

José Roberto de Toledo: Muito bem. Doutor Fernando Reinach, a gente nem sempre consegue mostrar uma luz no fim do túnel, mas pelo menos a gente consegue dizer que, pelo que a ciência demonstrou até agora, não há nenhuma razão para a gente mudar o nosso comportamento de evitar o contato social.

Fernando Reinach: Ao contrário, dado a loucura que tá no Brasil agora, é absolutamente essencial que todo mundo se isole para o número de casos cair. E vai levar uma ou duas semanas para cair ou para estabilizar, porque demora.

José Roberto de Toledo: Doutor Fernando Reinach, muito obrigado mais uma vez, um abraço.

Fernando Reinach: Um abraço, Toledo. Até logo.

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