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    Ilustração: Carvall

questões paulistanas

Madrugada vazia

Com dispersão das cracolândias, restaurantes do Centro de São Paulo fecham mais cedo e reforçam segurança

Leonardo Fuhrmann | 15 jun 2023_15h00
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“Meia-noite/Em pleno Largo do Arouche/Em frente ao Mercado das Flores/Há um restaurante francês/E lá te esperei.” Na música Freguês da meia-noite, de Criolo, o restaurante francês citado é o La Casserole. A diferença entre a música e a realidade atual é que ele quase sempre está fechado nesse horário, assim como a maior parte dos restaurantes tradicionais que sobrevivem no Centro de São Paulo. Fechar mais cedo e reforçar a segurança são estratégias diante do medo provocado pela dispersão da cracolândia, que espalhou por boa parte do Centro pontos de consumo da droga. O medo não é só dos donos e funcionários dos restaurantes, mas principalmente dos clientes, que passaram a evitar a região madrugada adentro. Sem movimento suficiente para justificar as portas abertas até o dia clarear, muitos restaurantes restringiram gradativamente os horários. No caso do La Farina, cantina na Rua Aurora, na outrora boca do lixo, a solução foi o fechamento total. Em outros tipos de comércio, o impacto foi ainda maior. Duas lojas de móveis, um mercado e uma pizzaria fecharam no Largo este ano. 

No caso do La Casserole, a debandada de clientes foi menos grave, como explica Leo Henry, que administra a casa inaugurada em 1954 pelos seus avós. “Temos clientes que saem de casa exclusivamente para vir almoçar a jantar aqui, é diferente de quem depende da circulação de pessoas na região. É um público que valoriza a história do restaurante e gosta que permaneça no mesmo local, com suas antigas vivências”, comenta. Uma clientela não só de moradores da cidade, mas também de turistas, num endereço eternizado antes da música de Criolo. A ideia é permanecer lá. “Não vou falar que jamais sairemos do Largo do Arouche, mas não há intenção de mudança”, diz. 

Morador do Arouche há oito anos, Henry abriu no largo o Térreo Bar em 2019. “Antes da dispersão, eu me sentia mais seguro de andar a pé aqui do que no Pacaembu, onde eu morava com minha família”, diz. Segundo ele, o Térreo sofreu o mesmo impacto de redução da clientela de outros bares e restaurantes próximos: uma queda de 30% no movimento. 

Do lado oposto do Largo, fundado na mesma década de 1950, o italiano O Gato Que Ri reduziu pela metade o seu salão durante a pandemia. O maître Carlos Roberto Rissas, há 35 anos no restaurante, diz que os proprietários aproveitaram o vencimento de um contrato de aluguel durante a pandemia e decidiram não o renovar. “Em seguida veio a dispersão e, apesar de mantermos uma clientela fiel, notamos um medo maior das pessoas de virem para cá”, diz. Para ele, as notícias constantes, em especial em programas policialescos, sobre os problemas acabaram levando um temor maior do que a realidade.

Rissas fala com cátedra. Nascido no Centro, vive na região ao longo dos seus 52 anos de vida. Diariamente faz a pé o caminho de casa para o trabalho e do trabalho para casa, mesmo quando o restaurante fecha mais tarde, já na madrugada. “A gente tem precauções, é claro, mas nunca fui assaltado”, diz. Ele garante nunca ter sentido vontade de deixar o Centro. “Minha família toda mora aqui, eu estudei no Colégio Caetano de Campos, que ficava na Praça da República. Acho que temos de lutar para permanecer e melhorar as condições aqui”, afirma.

Para garantir a volta dos clientes, além do serviço de manobrista, o restaurante passou a manter um segurança na porta. Fernando Alves Machado Vieira trabalha faz três anos no restaurante, mas está faz pouco mais de dez anos como segurança nas imediações. “Os usuários de crack e as pessoas em situação de rua não são nosso maior problema, eu resolvo tudo com eles na base do diálogo. Difícil é lidar com os ladrões de celular da gangue das bikes”, diz. A falta de policiamento, principalmente no período noturno, e a retirada de uma base policial durante a reforma do largo, que nunca foi reinstalada, para ele, agravam o problema.

A 200 metros de lá, o Rei do Filet luta para permanecer aberto, mesmo com problemas que vão além da pandemia e da dispersão da cracolândia. Dívidas antigas e problemas causados por uma briga entre os sócios também ameaçam o centenário Moraes, como é mais conhecido. São 95 anos de existência no atual endereço. “A maioria dos nossos clientes hoje são idosos, não conseguimos renovar a clientela aqui no Centro”, diz Carlos Henrique de Freitas, o atual dono. Entre os problemas estão filiais fechadas na região da Paulista e de Pinheiros, além de problemas decorrentes das dívidas deixadas naqueles endereços.

Para não fechar as portas, ele tomou uma solução radical. Abrir somente para almoço. O novo horário está em uma faixa colocada na porta do restaurante, para tristeza dos fregueses tradicionais. “Se for verdade, minta para mim”, disse ao garçom o premiado fotógrafo carioca Walter Firmo, que almoçava lá no dia desta entrevista. “Como aqui sempre que venho a São Paulo, desde que comecei a trabalhar na revista Realidade, em 1963”, afirma.

Histórias desses tempos não faltam. Uma delas diz que Adoniran Barbosa teria composto Trem das Onze, gravada em 1964, em uma das mesas do Moraes. O compositor morava na época na Rua Aurora, a duas quadras de lá. Freitas, que começou a frequentar o restaurante ainda criança, quando seu pai se tornou sócio, lembra de Adoniran ao lado de outros sambistas no restaurante. “Eles ficavam mais no Bandeirante, um bar aqui ao lado, fazendo samba nos copos e em caixas de fósforo”, diz. “Na praça, eles jogavam bingo com as placas dos carros que passavam, quem ganhava não pagava a conta.” Outra presença marcante da época é a do radialista Osvaldo Sargentelli, de quando ele fazia em São Paulo seus famosos shows de samba. “Aquela mesa cheia daquelas belas e jovens mulheres negras era uma festa”, diz.

Garçom do Rei do Filet desde 1974, José Oscar Gonçalves Macedo também guarda muitas lembranças da época. “Eu vim de Montes Claros, no Norte de Minas Gerais, e conheci muita gente aqui que só via na televisão”, fala. Naquela época, ao longo das madrugadas, as mesas eram frequentadas por intelectuais, artistas, políticos e policiais ligados à repressão da ditadura cívico-militar. “Eu vi a Dercy Gonçalves levantar da mesa em que estava para separar uma briga entre outros clientes. Depois da bronca, os dois terminaram de comer calados e saíram sem dar um pio”, conta. O delegado Sérgio Paranhos Fleury, ligado a esquadrões da morte e à tortura, gostava de ficar em uma das mesas do fundo. “Eles interrompiam o assunto sempre que a gente chegava perto da mesa para servir, mas era até melhor não ouvir a conversa deles”, lembra Macedo.

Reconhecido pela Prefeitura de São Paulo por seu valor histórico, assim como o Rei do Filet, o Ponto Chic também reduziu o horário de funcionamento da matriz, no Largo do Paissandu. A lanchonete, conhecida pela criação do sanduíche bauru, passou a fechar às 20 horas. A redução do horário foi gradativa, conta o garçom Miguel Moreira Neto, funcionário de lá desde meados dos anos 1970. “Até os anos 1990, a gente trabalhava aqui até as cinco da manhã. No começo dos anos 2010, passou a fechar à 1 hora”, diz. A mudança, segundo ele, foi causada também pela saída de diversas empresas do Centro. “Na década de 1990, havia fila por mesas aqui”, recorda.

Forte na madrugada, o Boi na Brasa, fundado em meados dos anos 1960, também teve seu horário reduzido desde a pandemia e passou a trabalhar com segurança na porta em seus dois endereços, ambos no mesmo quarteirão da Rua Marquês de Itu. O segundo, no meio do quarteirão, foi fundado nos primeiros anos da década de 1980. Com a mudança, a churrascaria passou a ter dois turnos de trabalho e não mais três. Funcionário desde 1998 e gerente de uma das unidades, José Helano Silva Lopes tem esperança de retomar o horário normal. “Não será de forma abrupta, mas podemos começar a testar uma ampliação gradual”, diz.

Além da dispersão da cracolândia e da pandemia, ele aponta o incêndio no estúdio Gravodisc, em 2019, como um dos motivos da redução da clientela do último turno. “Os artistas costumavam terminar de gravar e vir jantar aqui. Muitos tinham esse hábito desde a época das apresentações no extinto Teatro Záccaro, no Bixiga”, conta. Localizado na Rua General Osório, quase na esquina da Avenida São João, o estúdio recebeu, ao longo de seis décadas, mais de setecentos artistas para gravações de discos, passando por Elis Regina, Caetano Veloso, Almir Sater, Adoniran Barbosa, Exaltasamba, Leandro e Leonardo e Calypso. Genival Lacerda e os irmãos Caju e Castanha são alguns dos que costumavam marcar presença na madrugada.

A churrascaria também atraía os artistas do cinema paulistano, em especial da chamada Boca, localizada na Rua do Triunfo. Um dos mais frequentes era o diretor José Mojica Marins, o Zé do Caixão. “Uma vez, ele deu uma entrevista para a Folha de S.Paulo falando que gostava muito da caipirinha de caju aqui do restaurante. Mas a gente não tinha esse drinque no cardápio. No dia que saiu a reportagem, foi uma correria para comprar cajus e servir aos clientes”, conta.

A esperança de Helano contrasta com o ceticismo de Jorge Moisés Pereira da Costa, um dos sócios da churrascaria. “Faz décadas que eu só vejo o movimento cair. As pessoas falam tanto de criar políticas de valorização do Centro e a situação só piora”, afirma. Segundo ele, o negócio só continua viável porque os sócios são donos dos imóveis onde estão os restaurantes. Junto com a sensação de insegurança, ele aponta o abandono da região como algo que afasta as pessoas do Centro. “Existem problemas de iluminação e calçadas que estão sendo usadas como banheiros a céu aberto”, exemplifica.

Apesar dos problemas descritos por Costa, o Centro ainda consegue atrair novos bares e restaurantes. É o caso do Cineclube Cortina, inaugurado no ano passado na Rua Araújo, perto da Praça da República. É um bar, restaurante, cinema e casa de shows aberto no endereço de um antigo estacionamento. “A ideia foi de inverter a lógica da antiga cinelândia paulista, aqui próxima, em que muitos cinemas deram lugar para estacionamentos”, afirma Marcelo Sarti, um dos sócios.

Para Sarti, o Centro tem a diversidade de públicos que levou ele e os sócios a escolher o lugar para criar o cineclube. “Lógico que a gente tem o objetivo do lucro, mas viemos também com o objetivo de participar dessa nova cena do Centro, com outros novos bares, restaurantes e livrarias”, diz. “O Centro não é só história e suas belezas, em qual outra região da cidade é possível fazer um passeio de um dia inteiro fora de um shopping?”, pergunta.

Desde a reforma, os sócios começaram a conhecer os desafios de estar na região. “Um dos meus sócios teve dois celulares roubados pela gangue da bike ainda naquele tempo”, comenta. A situação serviu de alerta para os cuidados com a segurança na frente do prédio. Depois de aberto, eles também perceberam a necessidade de liberar alguns funcionários mais vulneráveis ou que morem mais longe mais cedo e de organizar para que eles fossem liberados em grupos para não irem sozinhos para o metrô. “A gente vai entendendo qual é a realidade do Centro e aprende a conviver com ela. Quem vê de fora se assusta mais do que quem está inserido”, diz.

É a mesma visão de Leo Henry, do La Casserole. Ele diz que o restaurante segue por lá e que boa parte de seu otimismo em relação à região vem das conversas com a mãe, Marie-France. “Ela fala de outros momentos difíceis, como a saída de muitas empresas no fim dos anos 1990, mas que o centro sempre se reinventa”, diz. Para ele, muitos dos problemas atuais com a cracolândia foram provocados por programas contraditórios desenvolvidos pelo poder público. “A prefeitura faz um trabalho de acolhida como o Braços Abertos (gestão Fernando Haddad) e depois joga essa experiência fora e parte para uma linha de ação militar de dispersão (gestões João Doria, Bruno Covas e Ricardo Nunes). O Centro precisa de ações públicas e não de medidas isoladas de governos”, diz. “É preciso estudar os casos de sucesso de outras cidades que enfrentaram problemas parecidos e ver se as estratégias são aplicáveis aqui.”

Há menos tempo na região, o camaronês Victor Macaia prefere seguir acreditando também. Ele vivia no Centro fazia cinco anos quando decidiu abrir, ao lado da esposa, a também camaronesa Melanito Biyouha, o restaurante Biyou’z, em 2007. Criado para atender aos africanos que moram e circulam pela área, o restaurante serve pratos de diferentes regiões da África Subsaariana. Mas o endereço ficou conhecido mesmo quando passou a ser frequentado por outros paulistanos, curiosos por conhecer a culinária do continente.

Macaia conta que, apesar da decisão de montar o restaurante no Centro, por ser uma região mais turística da cidade, o ponto em que estão instalados, na Alameda Barão de Limeira, surgiu quase por acaso. “A gente ficou com o ponto que conseguiu. Quando criamos o restaurante, não havia tantos endereços vazios no Centro como agora”, diz.

Pouco antes do começo da pandemia, eles inauguraram uma filial na Rua Fernando de Albuquerque, da Consolação. “O movimento lá se recuperou depois da pandemia mais rápido do que aqui, principalmente porque um dos novos pontos de usuários de crack após a dispersão ficou a menos de 50 metros de nossa porta”, diz. Os usuários de crack foram removidos de lá no início do mês. Mesmo com as dificuldades, que acredita serem passageiras, Macaia afirma que não pretende desistir do Centro jamais. “Temos a intenção de expandir, abrir em novos endereços, mas a nossa matriz é aqui, é a mãe do negócio”, diz.

À piauí, a Prefeitura de São Paulo afirmou, por meio de nota, que intensificou o patrulhamento comunitário e preventivo, com a ampliação do número de viaturas e motos em pontos estratégicos. Um projeto prevê a instalação de 2.500 câmeras de monitoramento na região central. Disse ainda que iniciou no dia 5 de abril o reforço nas equipes de limpeza no Centro velho, Campos Elíseos, Santa Efigênia, República, Sé e Consolação e mapeamento e fiscalização de descartes irregulares. Segundo a administração municipal, a iluminação está sendo aprimorada com a instalação da tecnologia LED.

A Secretaria de Segurança Pública, também em nota, afirmou que, em abril deste ano, roubos e furtos caíram 5,7% em comparação com o mesmo mês de 2022. Disse ainda que houve a prisão ou apreensão de 540 suspeitos no mês passado, um aumento de 39,5% em comparação com abril de 2022.

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