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    Ilustração: Carvall

questões maternas

“Mães do canabidiol” lutam por remédio e contra o preconceito

Doações, mercado ilegal e batalha na Justiça fazem parte da rotina de mulheres que tentam obter o medicamento para tratar doenças de seus filhos

Maria Júlia Vieira | 12 maio 2023_17h43
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Antes de Lis nascer, a empresária Carol Calábria, 41, tinha tudo planejado: o quarto, as roupinhas, os passeios que gostaria de fazer quando a pequena viesse ao mundo. Mas, na última ultrassom, quando já estava com 38 semanas de gestação, recebeu a notícia que a fez entender que precisaria recalcular as rotas. O perímetro encefálico da sua bebê não correspondia ao esperado para aquele período da gravidez. Lis nasceria com microcefalia.

O parto aconteceu numa quarta, em janeiro de 2016, no Hospital Memorial São José, Centro do Recife. Àquela altura, Carol já havia entendido que a condição de sua filha estava relacionada à arbovirose contraída no início da gravidez. Lis tem a Síndrome Congênita do vírus Zika, um conjunto de anomalias que pode afetar a visão, a audição e o sistema neuropsicomotor. De acordo com o Ministério da Saúde, entre 2015 e 2019, foram registrados no Nordeste mais de 2 mil casos da síndrome, 62,5% do total do país no período.

Ao chegar em casa, além das dores e do cansaço do pós-parto, Carol viveu o luto da filha idealizada. “A gente passa nove meses imaginando o bebê. Como ele vai ser, quando vai falar, a festa de um ano, até a formatura… Quando vem o diagnóstico, nada disso existe mais.” Foi preciso conhecer as necessidades de Lis para reformular os sonhos e saber que com eles viriam novos desafios. “Eu entrei num mundo completamente desconhecido, não entendia nada, não sabia de nada. Tive que aprender tudo no dia a dia com uma criança no colo”, conta.

Carol e Lis durante um passeio no parque: ” quando vejo que ela tá feliz, automaticamente fico feliz também”. | Foto: Acervo Pessoal

 

Entre aprendizados e conversas com outras mães atípicas, Carol descobriu uma possibilidade de tratamento alternativo para a irritabilidade, a insônia e as convulsões da filha: o óleo de cannabis. O processo não foi fácil. “Todas as vezes que eu ia à neurologista e falava sobre o canabidiol [CBD], ela dizia que não era a favor, que não prescrevia. Não queria nem falar sobre.” Sem a possibilidade de conseguir a receita do medicamento, Carol, mais uma vez, precisou encontrar novos caminhos. Contou com a ajuda de outros pais, que lhe vendiam o óleo a preços razoáveis. A neurologista que acompanhava Lis desde o nascimento foi informada, mas, por não concordar, não deu continuidade ao assunto.

A atitude da médica mudou quando percebeu uma grande diferença nos eletroencefalogramas da criança. A mãe, então, respondeu que a única coisa diferente era o uso do CBD. “Foi um ano de luta. Eu precisei provar a ela, através dos exames, que a situação estava mudando. As convulsões diárias ficaram mais espaçadas, a ponto de Lis passar seis meses sem nenhum episódio.” Só aí elas passaram a conversar mais profundamente sobre a cannabis medicinal. A médica foi estudar, se especializou e passou a receitar o CBD para outras crianças atípicas. 

Para Lis, o canabidiol foi uma alternativa em meio a vários remédios alopáticos. Para Theo Amaral, 7, foi a única. Diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA) aos 3 anos de idade, o pequeno tinha acessos de fúria, não falava nem socializava com outras crianças. Então, seu padrinho, Igor Seco, jardineiro canábico, sugeriu o tratamento e indicou a Santa Cannabis, uma ONG em Santa Catarina que auxilia os pacientes a conseguirem acesso ao medicamento. Em poucos dias, a mudança já era perceptível. Após quatro anos de uso contínuo, a mãe de Theo, Jennifer Amaral, 28, afirma: “Meu filho nunca tinha reparado o céu, o sol, a lua. E também não falava. Eu esperava ansiosa pela primeira vez que ele diria mamãe. Depois do óleo, tudo mudou. Ele tem mais foco, vai à escola. Sabe ler, sabe escrever, sabe a tabuada. Theo é extraordinário.”

Depois do uso do CBD, Theo falou “mamãe” pela primeira vez. Agora, ele e Jenifer observam o mundo, detalhadamente, juntos. | Foto: Acervo Pessoal

 

Atualmente, para conseguir o CBD no Brasil, é preciso ter prescrição médica e autorização da Anvisa. O medicamento pode ser encontrado em farmácias e é distribuído – ou comercializado, a depender da situação financeira da família – por ONGs como a Santa Cannabis e a Abrace Esperança, primeira do país a conseguir a autorização para cultivo e venda da cannabis medicinal. O preço varia de 250 a 2,5 mil reais, nos casos de importação do produto. Apesar de certa facilidade no acesso, o preconceito ainda é uma realidade.

“A gente ainda passa por muito preconceito. A gente, por exemplo, sai de Osasco para fazer o acompanhamento em São Paulo, num hospital de referência nacional, mas os médicos não aceitam”, relata Keila Luenda, 34. Há dois anos, Luenda faz o uso da cannabis medicinal em seu filho, Ayan, 5. Mas não conta isso aos profissionais que o acompanham, por medo de que eles se neguem a continuar o tratamento. 

Ayan não tinha nenhum sintoma até completar 3 anos de idade. Mas, em um final de semana que passou na casa da avó, teve sua primeira crise epiléptica. Luenda ficou apavorada. Não entendia o que tinha acontecido, nem sabia o que fazer. As crises foram se tornando mais comuns, e o garoto chegava a ter cinco em um só dia. As lesões cerebrais causadas pelos episódios convulsivos fizeram com que ele desenvolvesse Síndrome de Lennox, doença rara que consiste em disfunções cognitivas, atraso do desenvolvimento neurológico e psicomotor. 

“Um dos primeiros medicamentos que Ayan tomou foi Gardenal. Foi uma experiência terrível. Ele começou a regredir, ficou agressivo, chorava muito, oscilava de humor o tempo inteiro.” Foi aí que a mãe começou a estudar sobre a cannabis e, por indicação da Abrace, começou o tratamento. Os intervalos entre as crises foram aumentando paulatinamente, e, em dois anos de uso, já são mais de 220 dias consecutivos sem convulsões.

Luenda se viu na responsabilidade de espalhar a boa-nova. Juntou-se ao SUStenta Cannabis, coletivo antiproibicionista que facilita o acesso a consultas médicas e jurídicas para pacientes que desejam tentar tratamentos alternativos com o CBD. Por meio da difusão de informações, a mãe de Ayan busca evitar que outras mães passem pelo que já passou. 

“Na escola, já disseram que o comportamento atípico de Ayan estava relacionado ao ‘uso da maconha’. Eu precisei intervir. As outras mães não entendem, as professoras não aceitam. Apesar dos avanços, ainda existe muito preconceito, e é essa a nossa luta.” Para ela, além de desinformadas sobre a cannabis medicinal, as pessoas não estão preparadas para lidar com crianças que têm algum transtorno de desenvolvimento. 

 

Ser mãe atípica é um trabalho em tempo integral. Além de estarem sempre tentando blindar suas crianças dos preconceitos, precisam acompanhá-las nas mais diversas terapias, ser – ainda mais – presentes nos processos escolares, alimentar, dar banho, ensinar e estudar muito. Tudo isso somado ao malabarismo com as contas da casa. 

“Para sermos atendidas pelo SUS, precisamos ficar na fila. Mas as terapias são semanais. Não dá para esperar. A gente precisa resolver o mais rápido possível”, explica Luenda. O uso da cannabis medicinal também pesa no orçamento. “Da primeira vez que comprei, consegui uma promoção: dois potes por pouco mais de mil reais. Não dá para ter esse gasto mensalmente. Precisamos de outras alternativas.”

O alto custo do tratamento tem levado os pacientes a recorrerem à Justiça para solicitar a autorização para cultivar a cannabis em casa, mas, pela demora, muitos recorrem à ilegalidade. Para Renato Malcher Lopes, professor da UnB, “os casos de sucesso, via uso clandestino do óleo rico em CBD, se multiplicam a cada dia, assim como as angústias em consequência dos impiedosos entraves legais e burocráticos que, contrariando preceitos éticos da medicina e da ciência, dificultam o uso tanto de produtos fitoterápicos quanto de canabinoides isolados, para os quais a biossegurança já é conhecida empiricamente há milênios e ratificada pela ciência moderna.” 

Em abril passado, a oferta de medicamentos à base de canabidiol pelo SUS foi pauta de uma discussão na Comissão de Direitos Humanos no Senado. O projeto de lei é de autoria de Paulo Paim (PT-RS), mas o debate ainda engatinha. A jurista e pesquisadora Camila Feltrin Azevedo, da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), resume: “Estamos discutindo no Brasil se um paciente que sofre, que sente dor, seja ela física ou psíquica, pode ou não utilizar uma planta para aliviar seu sofrimento”. Enquanto a liberação não acontece, o acesso ao medicamento acaba sendo limitado por uma questão de classe social.

Keila sobre Ayan: “Ele me ensinou tudo. Quem eu era antes dele, não existe mais.” | Foto: Matheus Garcia

 

Se grande parte do tempo das mães atípicas envolve preocupações diversas, elas também têm a contar os momentos singulares vividos diariamente com os filhos. Para Carol, poder levar Lis à praia ou à piscina, ver a felicidade da menina, faz os problemas flutuarem para longe. Keila gosta de viajar com Ayan, e a cumplicidade entre os dois lhe dá forças para, apesar de todas as limitações, cruzar fronteiras físicas e simbólicas. Jenifer se sente realizada ao ver os avanços do seu “pequeno gênio”: Théo é apaixonado por números, teorias e livros. Juntos, eles desbravam universos imaginários sem precisar sair do abraço. As mães que lutam pelo acesso ao canabidiol têm algo em comum: o desejo sem limites de proporcionar qualidade de vida aos seus filhos. Só assim podem comemorar esse e todos os outros dias das mães.

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