Elefantes estiveram em pauta, por razões opostas, neste mês de novembro. De um lado, houve a notícia de que o U. S. Fish and Wildlife Service – algo como o Ibama americano – havia derrubado o veto, imposto no governo Obama, à importação de partes de elefantes caçados no Zimbabue (cabeça, chifre de marfim e outros pedaços de corpo que funcionam como troféu entre caçadores). De outro lado, houve a notícia de que o Nonhuman Rights Project – uma ONG americana que luta por direitos de certas espécies – impetrou o primeiro pedido de Habeas Corpus em nome de um paquiderme (na verdade, de três, que vivem num zoológico de Connecticut, estado colado a Nova York).
De início, o fim do veto à importação foi atribuído, por equívoco, ao presidente americano Donald Trump. Seu filho, Donald Trump Jr., é caçador contumaz de animais africanos. “Trump não sabia da decisão de seu governo de suspender a proibição à entrada de troféus até que a notícia surgiu na mídia, e ficou irritado por ser criticado com relação a uma medida sobre a qual nem estava informado”, escreveram os jornalistas Peter Baker e Emily Cochrane no “The New York Times”. Após expressar seu desprazer no Twitter, Trump, para surpresa geral, acabou revogando a decisão. “Assessores do presidente disseram que esse é basicamente o motivo da decisão. Ele gosta de elefantes”, esclareceram os jornalistas.
Já a notícia do Habeas Corpus teve repercussão discreta – mas certamente voltará à pauta ao longo dos próximos meses (ou anos), quando o pedido for julgado. Trata-se de uma ação aberta na justiça comum, só que em nome de Beulah, Karen e Minnie, três elefantes capturados na natureza e levados aos Estados Unidos para trabalhar em circos. O pedido da Nonhuman Rights Project baseia-se em argumentos científicos que atestam a riqueza emocional e social dos elefantes (a NhRP tem um histórico de impetrar pedidos de Habeas Corpus em nome de chimpanzés).
Em termos práticos, uma decisão – a do Fish and Wildlife Service – rebaixava o elefante ao status de um objeto de decoração. Outra – a do Nonhuman Rights Project – elevava o animal ao status jurídico de um humano. O momento, de visões tão radicalmente opostas, me pareceu propício para saber como estavam duas elefantas que acompanhei há cerca de um ano.
“O elefante é um animal superlativo no que tange ao tamanho, à inteligência e à capacidade emocional”, escrevi, em fevereiro, numa longa reportagem publicada na piauí. Reproduzo aqui o restante do parágrafo: “Na natureza, vive em sociedades matriarcais, em que várias fêmeas se ajudam na criação dos mais jovens. Sabe se comportar de maneira altruísta (zela por indivíduos que nem precisam ser da sua espécie) ou vingativa (há relatos de elefantes que aguardaram anos para atacar seus domadores). Faz uso de ferramentas (coça as patas com gravetos) e de sons diversos (comunica-se com seus pares por roncos, gritos e rugidos). Integra, com cetáceos e grandes primatas, o seleto grupo de animais capazes de se reconhecer no espelho (o que significa autoconsciência e pensamento abstrato). Tem uma memória prodigiosa – é capaz de guardar a lembrança de pessoas, de rotas migratórias ou de lugares em que morreram outros elefantes. A morte, não raro, é ritualizada em cerimônias silenciosas – em que folhas e gravetos são depositados sobre o corpo do finado.”
Foi em outubro de 2016 que conheci Maia e Guida, duas elefantas asiáticas que haviam chegado no Brasil em 1975, a bordo de um navio saído da Itália. Trabalharam por 35 anos em circos – seja jogando bola com a tromba, equilibrando-se sobre banquinhos, ou girando ao som de uma valsa – antes de serem apreendidas pelo Ministério Público da Bahia, em 2010, devido a uma denúncia de maus tratos. Os seis anos seguintes foram divididos entre um zoológico em Salvador e um sítio próximo à cidade mineira de Varginha – onde vivam acorrentadas.
Em outubro do ano passado, Maia e Guida foram colocadas em contêineres e transportadas de caminhão até a Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso, onde fica o Santuário de Elefantes Brasil. Acompanhei o processo, que durou uma semana até o momento em que foram “libertadas” em um viveiro de meio hectare (as aspas se justificam porque um santuário, apesar de mais digno e espaçoso, não deixa de ser um cativeiro).
À época perguntei ao americano Scott Blais, diretor-técnico do Santuário, quanto tempo elas levariam para se adaptar. Ele respondeu que elefantes de cativeiro “não exploram a vida, são punidos quando tentam se comunicar, e acabam desistindo de interagir”. Por isso, completou, cada qual precisaria reaprender “a ser um elefante” – o que significava saber-se dona de uma relativa liberdade (a de caminhar, comer e interagir como quisesse, e quando quisesse).
Voltei a falar com Blais por telefone na semana passada. Neste último ano, ele contou, a área disponível para Maia e Guida havia crescido de meio para 18 hectares (cada hectare equivale a um campo de futebol). A notícia ruim era que, por falta de licença – e possivelmente de verba –, elas ainda eram as duas únicas elefantas a morar no Santuário. A chegada de um novo elefante depende de um longo procedimento legal junto ao governo do estado.
Perguntei a Blais como elas estavam. “Excepcionalmente bem”, respondeu. “Algumas coisas são intangíveis, mas é possível perceber que o olhar está mais ameno, por exemplo. A respiração também está mais calma. E há a questão do desenvolvimento muscular.” Blais contou que Maia havia engordado cerca de 100 quilos e Guida, que chegara muito magra, ganhara pelo menos 400. Cada uma pesa mais de três toneladas. Guida também ganhara um apelido – Sweet Rumble (algo como Doce Ronco) – em função do som grave de prazer, parecido com o ronronar de um gato, que passara a fazer de maneira constante.
Apesar de terem vivido grudadas nos últimos 42 anos (ou talvez em função disso), Maia e Guida preferiam não passar tanto tempo juntas no santuário. “O tempo mostrou que elas são amigas, mas não melhores amigas”, explicou Blais. “Socializam, mas ainda assim mantém a independência, o que indica um equilíbrio psicológico. Ficam muito bem vagando separadas.”
Por fim, repetiu o bordão de que a liberdade traz responsabilidades, exemplificando: “No passado, antes da vinda ao Santuário, houve episódios de agressão da Maia contra a Guida. Agora ela aprendeu a ser mais respeitosa.” Perguntei-lhe se “respeito” não era um conceito muito sofisticado. Blais riu e disse de forma didática, como quem precisa repetir uma obviedade: “Claro, mas eu estou falando de um animal altamente sofisticado.”