A decisão monocrática, do ministro Dias Toffoli, é de quinta-feira da semana passada. Em caráter urgente, o presidente do Supremo Tribunal Federal autorizou a realização de uma audiência pública, no Rio de Janeiro, na qual será discutida a construção de um autódromo sobre o último naco de Mata Atlântica em área plana da cidade. Na decisão, Toffoli explicou que o adiamento da audiência, determinado três meses antes por uma liminar do Tribunal de Justiça do Rio, acarretava em “ameaça de grave lesão à ordem pública”. Só não deixou claro como algo que não se realiza pode ferir a ordem.
A suspensão de tutela provisória de Dias Toffoli é o mais novo capítulo de uma batalha judicial contra um empreendimento que pode sepultar a Floresta do Camboatá – uma área de 2 milhões de metros quadrados, no subúrbio carioca de Marechal Deodoro, onde habitam capivaras, tatus, guaxinins, jacarés, papagaios, corujas e pelo menos 180 mil árvores (há dezoito espécies em extinção, de acordo com uma listagem municipal). Para que a área seja asfaltada, a audiência precisa ser realizada, de forma a haver o escrutínio público do Estudo de Impacto Ambiental encomendado pelo Rio Motorpark, o consórcio responsável pela empreitada.
Se a Floresta do Camboatá fosse um tabuleiro de xadrez, de um lado haveria um projeto de 697 milhões de reais, apoiado pelo prefeito Marcelo Crivella, pelo governador Wilson Witzel, pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo CEO da F1, o empresário americano Chase Carey. Do outro haveria o Ministério Público do estado e um pequeno grupo de ambientalistas do movimento SOS Floresta do Camboatá. Nessa analogia, a audiência pública seria uma das jogadas finais, por representar a última chance de manifestação – e, portanto, de pressão pública – para quem se opõe ao autódromo. Depois disso, o Estudo de Impacto Ambiental deve ser submetido a quinze conselheiros do Inea, o Instituto Estadual do Ambiente, que serão encarregados de dar o veredito final.
Em março, o Movimento SOS Floresta do Camboatá publicou um relatório de 50 páginas criticando duramente o Estudo de Impacto Ambiental. Apontava omissão na contagem de espécies ameaçadas e manipulação na comparação com outras quatro alternativas locacionais para a construção do autódromo: “Tudo indica que o estudo tenha sido feito de trás para frente, ou seja, a alternativa de menor impacto teria que ser a Floresta do Camboatá, então construíram uma matriz de comparação que coadunasse com esse resultado.”
Também em março, reportagem no site da piauí explicava que o governo do Rio de Janeiro acabara de fazer mudanças no Inea e na Secretaria Estadual do Meio Ambiente, que haviam passado para o comando de dois neófitos na área: o administrador Carlos Henrique Vaz e o deputado federal Altineu Côrtes, do Partido Liberal. “Num cenário ideal, a decisão do Inea deveria ser guiada pelos critérios ambientais que dão nome ao instituto. No cenário real, ela será feita por um colegiado subordinado ao governador Wilson Witzel”, dizia a reportagem, antes de contar que a nova dupla recebera integrantes do Movimento Pró Autódromo na Secretaria de Meio Ambiente. Na ocasião, o secretário Côrtes se deixou fotografar segurando uma camisa com a logomarca do grupo, e declarou estar “fazendo um grande esforço, junto às nossas equipes técnicas, para destravar os licenciamentos ambientais”. Xeque-mate.
Faz quatro meses que o governo do estado tenta marcar a audiência pública a respeito do autódromo. “Primeiro eles tentaram emplacar uma audiência presencial no meio da pandemia, violando um decreto contra aglomerações que havia sido publicado pelo próprio governo. Acabaram desistindo por pressão pública e por uma recomendação contrária do Ministério Público do estado”, lembrou o engenheiro florestal Beto Mesquita, do movimento que defende a floresta. “Depois tentaram emplacar uma audiência virtual, que foi impedida por uma liminar expedida na primeira instância, e confirmada no Tribunal de Justiça.”
O caso permaneceu em banho-maria até o começo deste mês, quando JR Pereira – um empresário com um histórico de calotes, que está à frente do consórcio Rio Motorpark – fez uma visita ao Palácio do Planalto. “Always a pleasure to have a conversation with our president”, postou em inglês em seu perfil no Instagram, junto com uma foto de seu encontro com o presidente Jair Bolsonaro. Dias depois, a Procuradoria Geral do Município do Rio de Janeiro entrou com um recurso no Supremo Tribunal Federal. “A gente até imaginava perder no plenário do Tribunal de Justiça, o que nos obrigaria a levar o caso ao STJ. Mas ninguém pensou que haveria esse salto do TJ diretamente para o Supremo”, disse Mesquita. O recurso foi parar nas mãos de Dias Toffoli, um aliado bissexto de Bolsonaro que, célere, proferiu sua decisão no dia seguinte à distribuição do documento no Supremo. Indicou não caber ao Judiciário “decidir aspectos técnicos relacionados à administração pública” – isso num país em que o Judiciário impede até posse de ministro da Casa Civil e de chefe da Polícia Federal.
A audiência pública ficou agendada para cerca de duas semanas (a data exata ainda não foi definida pelo Inea). Como o decreto de Witzel continua valendo, o encontro vai ocorrer em caráter virtual, a exemplo do que foi feito em maio, para discutir o impacto de uma linha de transmissão a ser construída no município de Macaé. “A diferença é que a linha de transmissão tem urgência, por ser uma infraestrutura essencial, o que não é o caso do autódromo”, explicou Beto Mesquita. “Além disso, o impacto gerado pelo autódromo é muito maior, assim como a fragilidade da Floresta do Camboatá.” Há ainda um percalço de ordem social: a audiência virtual parte do pressuposto de que todo cidadão tem acesso de qualidade à internet – e os bairros de Deodoro, Guadalupe e Ricardo de Albuquerque – que rodeiam a Floresta do Camboatá – têm baixos índices de renda.
O Ministério Público do estado deve recorrer da decisão de Toffoli. O problema é que o primeiro recurso tem que ser feito ao próprio Toffoli. É grande a chance de a audiência ser realizada antes. “O MPRJ, por meio do Grupo de Atuação Especializada em Meio Ambiente, ingressou com ação visando a impedir a realização da audiência pública em formato exclusivamente virtual”, respondeu o MP, por meio de sua assessoria de imprensa, explicando que a ação civil pública ajuizada em maio também pede a nulidade da audiência pública virtual, caso ela venha a ser realizada. Ou seja: como todas as decisões, mesmo a de Dias Toffoli, foram feitas em caráter liminar, resta a esperança de uma sentença favorável à floresta. O risco, no entanto, é que isso ocorra muito tarde.